23. Mahler: A Canção da Terra |
Uma "Canção da Terra", o receptáculo da tristeza de Gustav Mahler e da esperança de todos os outros.
Para os meus "Káusticos" amigos e à memória de uma noitada fonográfica no nº 4 da Rua Serra da Estrela (...já passou tanto tempo!), onde esta obra foi rainha.
(E à lembrança de um "Das Lied von der Erde" por Petra Lang, Keith Lewis e o mestre Jeffrey Tate, com a OSP, no CCB [7-6-2004])
O segundo semestre de 1907 seria um dos mais terríveis da vida do compositor austríaco Gustav Mahler (1860-1911), e há semelhança da sua "Das Lied von der Erde" (A Canção da Terra), o 1908 que se seguiria promoveria uma renovação.
Em Junho de 1907, inicia umas férias de Verão em Maiernigg (que utilizava para compor), que ficariam eternamente marcadas pela morte da sua filha mais velha, Maria, levada pela febre escarlate a 5 de Julho, aos 4 anos de idade, seguido do diagnóstico médico de que sofreria de uma doença cardíaca potencialmente fatal e do consequente aconselhamento de que não poderia manter os seus hábitos de natação e ciclismo, que praticava frequentemente para o equilíbrio do corpo e do espírito.
Nesse Verão, Gustav refugiar-se-ia no interesse pela literatura oriental que lhe teria sido apresentada pelo padrasto da sua esposa Alma (na intenção de proporcionar algum alívio na dor dilacerante que o genro sentiria), sob a forma de uma coletânea de poesia chinesa intitulada "A flauta chinesa", traduzida e adaptada para o alemão pelo epicurista Hans Bethge, que teria sido editada recentemente.
Nestes poemas, Mahler encontraria a expressão da inevitabilidade da morte e da sua filosofia de vida ("...as belezas da natureza renovam-se ano após ano e, por isso, enquanto o homem a aprecia por um breve momento e acaba, a terra volta a florescer..."), e, eventualmente inspirado pelas palavras que Bethge usaria para resumir as suas reacções na leitura desses poemas ("...sinto delicadeza, lirismo trémulo, um querer simbólico, algo carinhoso, adocicado..."), escolheria seis deles, bastante separados na idade e propósito artístico, com a ideia de os musicar, o que mais tarde viria a dar fama ao tradutor, que em reconhecimento lhe dedicará a colecção que publica em 1922, "O florescer dos pessegueiros na China: recriações da lírica chinesa", com a correspondente (... e merecida) inscrição no manuscrito: "Para Gustav Mahler, o Criador da Canção da Terra, in memoriam" (...ao que acrescento o meu apoio ao "C" maiúsculo presente na palavra "Criador", que Bethge decidiu aplicar).
A composição d' "A Canção da Terra" iniciar-se-ia no final do Verão desse ano de 1907, em Schluderbach, no Tirol, a orquestração básica ficaria terminada um ano depois, a 1 de Setembro de 1908, em Toblach nas Dolomitas (onde Gustav passaria o Verão com Alma e a filha Anna), sendo que este seu ciclo de canções sinfónicas, a que inicialmente daria o epiteto de sinfonia (a nº 9... de certa forma inusual face aos seis andamentos que apresenta, onde o último duraria tanto como os cinco anteriores todos juntos... mas mudando de ideias mais tarde, porventura na tentativa de enganar o Deus de Beethoven, Schubert e Bruckner...), seria finalmente concluído no início de 1909, já em Nova Iorque, onde Gustav era o Director da Metropolitan Opera local (desde a sua estreia à frente do "Tristão e Isolda", no dia do ano novo de 1908... a esperada renovação), posto que teria ocupado após a sua saída da direcção da Ópera de Viena em Outubro de 1907, ao comando de um último "Fidélio", e de uma Viena que sentiria já a chegada do antissemitismo que se viria infelizmente a confirmar (também por Mahler), na apresentação histórica da sua sinfonia nº 2 "Ressurreição", a 9 de Dezembro (a que se seguiria a despedida pelo seu até então assistente, Bruno Walter, e por um compreensivo Arnold Schoenberg... na estação de comboios vienense...).
Na sua obra mais pessoal (como aliás diria ao amigo e seu maior defensor, Bruno Walter), o compositor viria a utilizar uma grande formação orquestral (com uma secção aumentada de percursão e alguns instrumentos mais exóticos como a celesta e o bandolim), mas tratá-la-ia como se na realidade fosse um vasto conjunto de música de câmara, com vários apontamentos solísticos nas madeiras e nos metais. Desta forma, a exultação e o êxtase, a ironia, a solidão e a paixão, ficariam expressos de forma genial nos seis andamentos para tenor (três) e contralto ou barítono (três), resultantes: [1] Canção Báquica da tristeza da Terra (música heroica, desesperante e um tenor exuberante... porventura fruto de eventual intoxicação...), [2] Sozinho no Outono (delicado e profundo), [3] Da juventude (mais relaxado, como o título faria suspeitar...), [4] Da beleza (... e um feitiço quebrado por marchas sonoras), [5] O ébrio na Primavera (melancolia e sons da natureza... mais Primavera que embriaguez, portanto) e [6] A despedida (...a aparente imobilidade no eco do tam-tam inicial, e o sinal de esperança da celesta no que a eternidade trará... ao som dos versos finais, escritos por Mahler: “em todo o lado a bela terra floresce na Primavera e cresce verde de novo... para sempre").
Gustav morreria a 18 de Maio de 1911, seis meses antes de ver estreada a sua obra, a 20 de Novembro em Munique, por Bruno Walter. O modo como a terá deixado em cima da sua secretária, no dia em que não mais conseguiu enganar o seu frágil coração, não indiciaria que acreditasse que as suas maravilhosas canções viessem a ser cantadas, muito menos que viria a ser uma das obras mais importantes do séc. XX. Ainda bem que se enganou.
"Das lied von der Erde"
✨ Extractos que proponho para audição:
Bernstein, com uma Wiener Philharmoniker como eu nunca ouvi, numa gravação
de Abril... de 1966), com especial destaque para os quadros 1, 5 e 6;
I: Canção Báquica da tristeza da Terra - tutti (... brindes tingidos de negro e
sonoridade sumptuosa, com um twist glaciar de trompete aos 5:04!) [youtube]
II: Sozinho no Outono - tutti (...reflexões ao cair da folha...) [youtube]
III: Da juventude - tutti (...quando se abre o frasco a alegria sai isto!) [youtube]
IV: Da beleza - tutti (...balsamos para uma pele madura.) [youtube]
V: O ébrio na Primavera - tutti (O consumo dos abafados da última colheita!) [youtube]
VI: A despedida - tutti (Será esta a "melancolia do adeus"?) [youtube]
Para os meus "Káusticos" amigos e à memória de uma noitada fonográfica no nº 4 da Rua Serra da Estrela (...já passou tanto tempo!), onde esta obra foi rainha.
(E à lembrança de um "Das Lied von der Erde" por Petra Lang, Keith Lewis e o mestre Jeffrey Tate, com a OSP, no CCB [7-6-2004])
O segundo semestre de 1907 seria um dos mais terríveis da vida do compositor austríaco Gustav Mahler (1860-1911), e há semelhança da sua "Das Lied von der Erde" (A Canção da Terra), o 1908 que se seguiria promoveria uma renovação.
Em Junho de 1907, inicia umas férias de Verão em Maiernigg (que utilizava para compor), que ficariam eternamente marcadas pela morte da sua filha mais velha, Maria, levada pela febre escarlate a 5 de Julho, aos 4 anos de idade, seguido do diagnóstico médico de que sofreria de uma doença cardíaca potencialmente fatal e do consequente aconselhamento de que não poderia manter os seus hábitos de natação e ciclismo, que praticava frequentemente para o equilíbrio do corpo e do espírito.
Nesse Verão, Gustav refugiar-se-ia no interesse pela literatura oriental que lhe teria sido apresentada pelo padrasto da sua esposa Alma (na intenção de proporcionar algum alívio na dor dilacerante que o genro sentiria), sob a forma de uma coletânea de poesia chinesa intitulada "A flauta chinesa", traduzida e adaptada para o alemão pelo epicurista Hans Bethge, que teria sido editada recentemente.
Nestes poemas, Mahler encontraria a expressão da inevitabilidade da morte e da sua filosofia de vida ("...as belezas da natureza renovam-se ano após ano e, por isso, enquanto o homem a aprecia por um breve momento e acaba, a terra volta a florescer..."), e, eventualmente inspirado pelas palavras que Bethge usaria para resumir as suas reacções na leitura desses poemas ("...sinto delicadeza, lirismo trémulo, um querer simbólico, algo carinhoso, adocicado..."), escolheria seis deles, bastante separados na idade e propósito artístico, com a ideia de os musicar, o que mais tarde viria a dar fama ao tradutor, que em reconhecimento lhe dedicará a colecção que publica em 1922, "O florescer dos pessegueiros na China: recriações da lírica chinesa", com a correspondente (... e merecida) inscrição no manuscrito: "Para Gustav Mahler, o Criador da Canção da Terra, in memoriam" (...ao que acrescento o meu apoio ao "C" maiúsculo presente na palavra "Criador", que Bethge decidiu aplicar).
A composição d' "A Canção da Terra" iniciar-se-ia no final do Verão desse ano de 1907, em Schluderbach, no Tirol, a orquestração básica ficaria terminada um ano depois, a 1 de Setembro de 1908, em Toblach nas Dolomitas (onde Gustav passaria o Verão com Alma e a filha Anna), sendo que este seu ciclo de canções sinfónicas, a que inicialmente daria o epiteto de sinfonia (a nº 9... de certa forma inusual face aos seis andamentos que apresenta, onde o último duraria tanto como os cinco anteriores todos juntos... mas mudando de ideias mais tarde, porventura na tentativa de enganar o Deus de Beethoven, Schubert e Bruckner...), seria finalmente concluído no início de 1909, já em Nova Iorque, onde Gustav era o Director da Metropolitan Opera local (desde a sua estreia à frente do "Tristão e Isolda", no dia do ano novo de 1908... a esperada renovação), posto que teria ocupado após a sua saída da direcção da Ópera de Viena em Outubro de 1907, ao comando de um último "Fidélio", e de uma Viena que sentiria já a chegada do antissemitismo que se viria infelizmente a confirmar (também por Mahler), na apresentação histórica da sua sinfonia nº 2 "Ressurreição", a 9 de Dezembro (a que se seguiria a despedida pelo seu até então assistente, Bruno Walter, e por um compreensivo Arnold Schoenberg... na estação de comboios vienense...).
Na sua obra mais pessoal (como aliás diria ao amigo e seu maior defensor, Bruno Walter), o compositor viria a utilizar uma grande formação orquestral (com uma secção aumentada de percursão e alguns instrumentos mais exóticos como a celesta e o bandolim), mas tratá-la-ia como se na realidade fosse um vasto conjunto de música de câmara, com vários apontamentos solísticos nas madeiras e nos metais. Desta forma, a exultação e o êxtase, a ironia, a solidão e a paixão, ficariam expressos de forma genial nos seis andamentos para tenor (três) e contralto ou barítono (três), resultantes: [1] Canção Báquica da tristeza da Terra (música heroica, desesperante e um tenor exuberante... porventura fruto de eventual intoxicação...), [2] Sozinho no Outono (delicado e profundo), [3] Da juventude (mais relaxado, como o título faria suspeitar...), [4] Da beleza (... e um feitiço quebrado por marchas sonoras), [5] O ébrio na Primavera (melancolia e sons da natureza... mais Primavera que embriaguez, portanto) e [6] A despedida (...a aparente imobilidade no eco do tam-tam inicial, e o sinal de esperança da celesta no que a eternidade trará... ao som dos versos finais, escritos por Mahler: “em todo o lado a bela terra floresce na Primavera e cresce verde de novo... para sempre").
Gustav morreria a 18 de Maio de 1911, seis meses antes de ver estreada a sua obra, a 20 de Novembro em Munique, por Bruno Walter. O modo como a terá deixado em cima da sua secretária, no dia em que não mais conseguiu enganar o seu frágil coração, não indiciaria que acreditasse que as suas maravilhosas canções viessem a ser cantadas, muito menos que viria a ser uma das obras mais importantes do séc. XX. Ainda bem que se enganou.
Nuno Oliveira
"Das lied von der Erde"
✨ Extractos que proponho para audição:
- Dietrich Fischer-Dieskau, James King
- Wiener Philharmoniker
- Leonard Bernstein
- Decca, 452 301-2 DCS
Bernstein, com uma Wiener Philharmoniker como eu nunca ouvi, numa gravação
de Abril... de 1966), com especial destaque para os quadros 1, 5 e 6;
I: Canção Báquica da tristeza da Terra - tutti (... brindes tingidos de negro e
sonoridade sumptuosa, com um twist glaciar de trompete aos 5:04!) [youtube]
II: Sozinho no Outono - tutti (...reflexões ao cair da folha...) [youtube]
III: Da juventude - tutti (...quando se abre o frasco a alegria sai isto!) [youtube]
IV: Da beleza - tutti (...balsamos para uma pele madura.) [youtube]
V: O ébrio na Primavera - tutti (O consumo dos abafados da última colheita!) [youtube]
VI: A despedida - tutti (Será esta a "melancolia do adeus"?) [youtube]
- Maureen Forrester, Richard Lewis
- Chicago Symphony Orchestra
- Fritz Reiner
- RCA, GD60178
esta música se faz é mais que compensatória. Cantores magníficos, com
sensibilidade e heroísmo, orquestra em topo de forma e a mestria de Reiner.
Os 15 segundos de trompete logo aos 5 minutos dizem tudo.)
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puderam assistir ao vivo.)
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✰ Outras sugestões:
- Christa Ludwig, Fritz Wunderlich
- Philharmonia Orchestra, New Philharmonia Orchestra
- Otto Klemperer
- EMI, CDM 5 66892 2
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- Brigitte Fassbaender, Francisco Araiza
- Berliner Philharmoniker
- Carlo Maria Giulini
- Deutsche Grammophon, 413 459-2 GH
Destaque para a sensibilidade das vozes e para o cuidado interpretativo da
mítica orquestra alemã. A escolha dos amantes do "lado luminoso da força".)
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- Peter Seiffert, Thomas Hampson
- City of Birmingham Symphony Orchestra
- Simon Rattle
- EMI, CDC 5 56200 2
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- Waltraud Meier; Siegfried Jerusalem
- Chicago Symphony Orchestra
- Daniel Barenboim
- Erato, 2292-45624-2
puderam assistir ao vivo.)
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- Kathleen Ferrier; Julius Patzak
- Wiener Philharmoniker
- Bruno Walter
- Decca, 414 194-2 DH
mas o magnetismo inultrapassável de Ferrier também.)
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- Agnes Baltsa/Klaus König/Klaus Tennstedt/London Philharmonic Orchestra/EMI, CDC 7 54603 2, I [youtube], II [youtube], III [youtube], IV [youtube], V [youtube], VI [youtube]
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"Amigos Káusticos"
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