terça-feira, 15 de abril de 2025


89. Dvorák: Danças eslavas |


As "Danças eslavas" de Dvorák e os sons que acompanham os montes e vales do nosso caminho.






Por 25 anos de danças de roda.
O tempo passa depressa quando acertamos no par.






Se o exercício de ligação de uma síntese de vida a dois com a boa música alguma vez se proporcionar, então é bem provável que nos ocorra uma colectânea de danças para a ilustração sonora de uma caminhada sinusoidal de tranquilidade e inquietação, comum a tantos mortais e particularmente adequada a este que aqui vos escreve.
A ser verdade esta hipótese, então a escolha da opção musical que varresse os diversos estados do sossego ao frenesim, pareceria óbvia (pelo menos para mim) com as famosas "Danças eslavas, op. 46 e op. 72", do genial Antonin Dvorák (1841-1904). Pareceria e efectivamente...
...seria com as primeiras danças eslavas (as op. 46) que Dvorák, aos trinta e sete anos de idade, alcançaria finalmente algum êxito como compositor após tantos anos de luta inglória, apesar das seis óperas e cinco sinfonias que já possuía no seu portfólio criativo. A perseverança e forte determinação tinham-no levado a escrever essas obras maiores, mas também muita música de câmara e canções, mesmo quando as hipóteses de execução eram menos que escassas e o caminho para o sucesso se afastava do seu percurso de vida.
Os dois anos que tinha passado na Escola de Órgão de Praga ter-lhe-iam fornecido as aptidões necessárias para se tornar um bom músico de igreja, mas pouco ou nada lhe haviam ensinado acerca da composição de música sinfónica ou para o palco. Na realidade, a extrema necessidade em alguém com esta tenacidade, haveria de lhe aguçar o engenho tão intensamente, levando-o ao limite de se ensinar a si próprio através do estudo de partituras que ia adquirindo com dificuldade, e a absorver tudo o que podia a partir da cadeira da viola que desempenhava na Orquestra do Teatro Provisional de Praga. A vida difícil que levava naquela época era fraca amiga do encorajamento, mas o divino estava atento e a sua cantata patriótica "Os herdeiros da Montanha Branca", haveria de lhe trazer o primeiro vislumbre do sucesso em 1873. Cerca de um ano depois, ele aproveitaria esta obra, juntamente com outras duas sinfonias, aberturas, música de câmara e algumas canções, para concorrer à recém-criada "Bolsa de Estudo do Estado Austríaco para artistas jovens, pobres e talentosos", que residissem no extremo ocidental do império. O júri, composto nada mais nada menos por Johannes Brahms (um magnífico veículo de transporte ao firmamento), o crítico Eduard Hanslick (de potência muito inferior, como é óbvio) e o maestro e director da Ópera Imperial, Johann Herbeck (certamente de menor cilindrada também), viriam a atribuir-lhe uma bolsa de 400 gulden e a agraciá-lo por mais duas vezes nos anos que se seguiriam.
Na verdade, o seu futuro ficaria traçado logo após ter ganho esta bolsa pela última vez. Dvorák teria concorrido com a sua sinfonia nº 5, e, entre outros trabalhos, com os seus "Duetos da Morávia", uma obra que teria sido já publicada através de uma pequena edição financiada por um amigo. Em dezembro de 1877, Brahms, encantado com estes duetos, recomendá-los-ia ao seu editor Fritz Simrock. O editor concordaria em publicá-los e, ao mesmo tempo, encomendaria a Dvorák uma colectânea de oito danças para piano a quatro mãos, na expectativa de que o compositor produzisse algo similar às populares "Danças Húngaras" de Johannes Brahms, uma decisão editorial que mais tarde se provaria totalmente acertada.
O tão desejado reconhecimento começava a despontar naquele ano estival de 1878. Dvorák começa a escrever as suas "Danças Eslavas, op. 46" na primavera, concluindo-as em agosto. A versão para piano e a versão para orquestra seriam publicadas no outono e as primeiras apresentações apareceriam no inverno. O sucesso revelar-se-ia meteórico, ajudado também, é certo, pela crítica favorável do influente crítico Louis Ehlert, no jornal Nationalzeitung de Berlim: "Eu pressinto que estas "Danças Eslavas" sejam uma obra cuja fama mundial iguale a das "Danças Húngaras" de Brahms.". Haveriam de ser tocadas em Praga e Dresden por aqueles dias, e no espaço de um ano já muito público as tinha ouvido e aplaudido na Alemanha, França, Grã-Bretanha e Estados Unidos, tornando-se Dvorák conhecido internacionalmente a partir desse momento.
A história das suas segundas danças eslavas (as op. 72) começaria logo a seguir.
O astuto Simrock, percebendo o potencial económico desta música (os 300 marcos alemães que teria pago ao compositor pelos direitos da obra, mostravam-se insignificantes face ao lucro obtido), pede a Dvorák, numa carta de 14 de fevereiro de 1880, para compor uma nova colectânea de danças: "ao estilo da primeira" (terá dito; "lucrativa como a primeira", terá previsivelmente pensado).
Acredita-se que o compositor terá informado o editor de que concordava com o seu pedido, embora não o fosse atender naquela ocasião. Em boa verdade, Dvorák não teria a intenção de adiar os inúmeros projectos que teria em mãos naquele momento, para dar prioridade a mais um trabalho que seria uma mina de ouro para Simrock, para além de que, como ele próprio afirmaria: "fazer a mesma coisa duas vezes seguidas é diabolicamente difícil".
Os anos passariam e sabe-se que quando as duas personagens se encontraram em junho de 1885, em Karlsbad (o famoso destino termal), a segunda colectânea de danças ainda não existiria. O compositor, provavelmente a banhos de fortalecimento ósseo, estaria totalmente focado na composição de "Sta. Ludmila", a oratória que queria levar ao festival de Leeds do ano seguinte; enquanto o editor, eventualmente a ingerir minerais benéficos à azia, ansiava fortemente por um novo filão daquela mina de ouro criativa. Ainda assim, a elegância característica dos frequentadores dos SPA da moda imperaria nesta situação, e as posições, aparentemente extremadas, não chegariam a vias de facto devido à promessa do compositor ao editor, de que as novas danças estariam prontas no espaço de um ano (tendo ficado finalmente concluídas em janeiro de 1887).
Apesar das diferenças entre as duas colectâneas, a segunda seria um grande sucesso também.
O primeiro conjunto já se teria mostrado bastante diferente das "Danças Húngaras" escritas por Brahms, a sua fonte de inspiração. A congénere húngara trataria as melodias e danças tradicionais com novos arranjos, enquanto as escritas por Dvorák, utilizariam na maior parte das vezes, os ritmos e perfis das danças tradicionais, nomeadamente da Boémia, Morávia e Servia, para criar melodias novas e originais, com a intenção de, como ele próprio dizia: "preservar e traduzir na música o espírito das pessoas, distinto nas suas melodias e canções tradicionais.". Talvez tivesse sido também por isso, que a sua popularidade ultrapassasse as fronteiras locais e fosse apreciada aonde quer que chegasse.
De igual modo, o segundo conjunto de danças seria marcadamente diferente do primeiro. Não só se haviam passado oito anos entre os dois, como a alegria e vivacidade das primeiras melodias se converteriam na poesia e profundidade emocional das segundas, as mesmas que agora haviam escutado o folclore checo da região de Praga, o jugoslavo, o búlgaro e o ucraniano. Dvorák, então um compositor mais maduro e experiente, seria o primeiro a reconhecê-lo, tendo escrito isso mesmo ao seu editor: "...elas são bem diferentes (sem brincadeira ou ironia!).".
Sejam mais bem-humoradas ou mais melancólicas, o que é certo é que aquele homem de origens humildes, que tinha passado por tantas dificuldades apesar do seu talento precoce, acabava de nos deixar uma música de tal ordem irresistível, que ainda hoje provoca em quem a ouve a sensação superlativa sentida por quem pela primeira vez a tocou. "Elas soam como o diabo.", disse ele. "Elas ecoam a voz de deus.", respondo eu.


Nuno Oliveira




"Danças eslavas, op. 46 e op. 72"


✨ Extractos que proponho para audição: (ver também publicações nº 36 e 53)
  • Chamber Orchestra of Europe
  • Nikolaus Harnoncourt
  • Teldec, 8573-81038-2
"o belo": toda a obra (Interpretação excitante e apaixonante, onde o "The need for speed"
                está bem presente. Orquestra de excelência e direcção do mestre Harnoncourt a
                condizer. Imperdível.)
                    Op. 46: [I] ("o belo" shot de fúria e serenidade a abrir o baile.) [youtube],
                             [II] ("o belo" som de trovas sussurradas ao ouvido e um corrupio de
                             arrepio.) [youtube],
                             [III] (Um apontamento de charme a partir do trompete, em mais uma
                             que fica no ouvido.) [youtube],
                             [IV] ("o belo" riacho e flora a combinar, acompanham o alegre par.) [youtube],
                             [V] (E virou!...) [youtube],
                             [VI] (... depois valsou...) [youtube],
                             [VII] (... e no fim canonizou...) [youtube],
                             [VIII] (... até à próxima rodada d' "o belo" shot!) [youtube]
                    Op. 72: [I] (Aqui o baile é outro. Menos furor e mais graciosidade... porque a idade
                             não perdoa.) [youtube],
                             [II] ("o belo" que é o amor espelhado nesta paleta de sons lendária.) [youtube],
                             [III] (Recordação da juventude em forma de dança de roda.) [youtube],
                             [IV] (Para os que preferem cocktails sem álcool, mas que também picam no
                             palato...) [youtube],
                             [V] (... e para os saudosistas doutro tempo, num mix de iluminismo e paradas
                             militares.) [youtube],
                             [VI] (O discurso artístico em doses minimalistas.) [youtube],
                             [VII] (Muito perto d' "o belo" shot dos bailes de juventude.) [youtube],
                             [VIII] (Quando o coração é maduro, isto é "o belo" op. 72, nº 8.) [youtube]







  • Cleveland Orchestra
  • George Szell
  • Sony, SBK 48 161
"o belo": (Pura alegria, puro som, puro Szell-Cleveland Orchestra. Um registo intenso
                e lendário que não podemos deixar de ter.)
                    Op. 46: [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube], [V] [youtube],
                             [VI] [youtube], [VII] [youtube], [VIII] [youtube]
                    Op. 72: [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube], [V] [youtube],
                             [VI] [youtube], [VII] [youtube], [VIII] [youtube]







  • Cleveland Orchestra
  • Christoph von Dohnányi
  • Decca, 430 171-2 DH
"o belo": (Sonoridade rica e interpretação cuidada e elegante. O salão está cheio e uma
                boa sincronização dos pares evita acidentes na pista de dança. Excelente escolha.)
                    Op. 46: [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube], [V] [youtube],
                             [VI] [youtube], [VII] [youtube], [VIII] [youtube]
                    Op. 72: [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube], [V] [youtube],
                             [VI] [youtube], [VII] [youtube], [VIII] [youtube]







  • Royal Philharmonic Orchestra
  • Antal Dorati
  • Decca, 417 749-2 DM
"o belo": (Uma interpretação veloz, bem marcada e mais directa, que mostra que os
                britânicos sabem dançar. Pode "doer" menos, mas também sabe bem. Um registo 
                clássico a não perder.)
                    Op. 46: [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube], [V] [youtube],
                             [VI] [youtube], [VII] [youtube], [VIII] [youtube]
                    Op. 72: [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube], [V] [youtube],
                             [VI] [youtube], [VII] [youtube], [VIII] [youtube]







  • Russian National Orchestra
  • Mikhail Pletnev
  • Deutsche Grammophon, 447 056-2 GH
"o belo": (Um registo muito diferente dos restantes, mas nem por isso de menor
                qualidade. Som espectacular e performance com enorme graciosidade e
                requinte. Apenas lhe falte alguma agitação para os mais inquietos. Eu gosto
                e aconselho)
                    Op. 46: [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube], [V] [youtube],
                             [VI] [youtube], [VII] [youtube], [VIII] [youtube]
                    Op. 72: [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube], [V] [youtube],
                             [VI] [youtube], [VII] [youtube], [VIII] [youtube]












   
✰ Outras sugestões:




    • John Farrer/Royal Philharmonic Orchestra/ASV, CD DCA 730 (Interpretação fresca e sonoridade brilhante. Seduz-nos pelo contraste e diferença. Boa opção.)[discogs], [allmusic]












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    Antonín Dvorák [c1878]





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    Um.

    Nós na Capela da Universidade de Coimbra [Coimbra, 15-04-2000]

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