58. R. Strauss: Assim falava Zaratustra, Don Juan |
"Assim falava Zaratustra" e "Don Juan": mais que dois poemas de Richard Strauss, duas obras-primas do Super Homem de Alice, Christian e Richard.
À memória de Abel Augusto Pereira, o meu avô que desapareceu neste dia com a idade que tenho hoje.
Conheci-o através dos que conviveram com ele e dos fascículos da revista Conhecer que colecionava com paixão.
Dizem-me que tenho muita coisa dele.
Eu, cada vez mais, penso que isso é verdade.
Ao olharmos para trás com o devido recuo podemos hoje facilmente acreditar que nenhum outro grande filósofo teria uma relação mais próxima da música do que o alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), e que nenhuma outra obra filosófica inspiraria um maior número de peças musicais do que a sua Assim falava Zaratustra.
Nietzsche, também ele um compositor amador, defensor de Wagner e o seu contrário (por vezes o pensamento filosófico leva-nos a mudar de direcção a meio do caminho), estaria eventualmente longe de pensar que a sua obra mais famosa, que viria a publicar em 1892, serviria um dia de fonte de inspiração para as canções de Schoenberg, Medtner e Taneyev, ou de obras de maior envergadura orquestral, como as de Mahler (Sinfonia nº 3), Delius (Uma Missa da Vida) e Richard Strauss (1864 - 1949).
A narrativa desta Assim falava Zaratustra, repleta de imagens extraordinárias e jogos de palavras, é inusualmente poética para um livro de filosofia. É composta por quatro partes que se dividem em oitenta secções mais curtas, cada uma delas apresentando os pensamentos ficcionados do profeta persa do séc. VII AC, Zaratustra (ou Zoroastro na literatura grega), conhecido por ter sido o fundador do Masdeísmo ou Zoroastrismo, supostamente a primeira religião monoteísta ética da história. Estes pensamentos cobririam diversos assuntos e cada secção terminaria com o termo "Assim falava Zaratustra". Zaratustra (ou, melhor, Nietzsche) falaria da "Morte de Deus" e da necessidade do homem em se transcender para se tornar no "Super Homem", quebrando a inércia e o condicionamento cultural característico da natureza humana. Por esse motivo, não seria surpreendente que tivesse atingido o estatuto de obra de culto nos países de língua alemã, particularmente nas gerações mais novas que se reveriam nesta quebra filosófica de final de século, centrada na crença do progresso pela ciência e na revelação da hipocrisia por detrás da máscara das virtudes cristãs, terminando com a especulação metafísica pela proclamação de que o "Deus está morto". Até aqui, mesmo discordando, pouco poderia ser censurado. Todavia, e como é frequente acontecer com os "livros de culto", a então intitulada "Doutrina do Super Homem" seria muitas vezes tratada de forma arbitrária e superficial, sendo referida de forma literal segundo as conveniências e distorcendo de tal forma a mensagem ao ponto de vir a ser uma das obras preferidas de Adolf Hitler (imagine-se o nível de distorção), com as consequências que conhecemos e que nos ferem recordar. E isso deveria ter sido impossível aceitar.
Na realidade, se à Assim falava Zaratustra de Friedrich Nietzsche se dava, então, o mérito de um tratado filosófico, já à de Richard Strauss se atribuiria, por outro lado, a "simplicidade" de um poema sinfónico baseado apenas numa ideia recorrente na obra literária. Com efeito, o compositor viria a referir isso mesmo após a apresentação da obra em Berlim, em Dezembro de 1896: "Eu não tive intenção de escrever música filosófica ou retratar musicalmente a grande obra de Nietzsche. Apenas pretendi colocar em música uma ideia sobre a evolução da raça humana, desde a sua origem, através das várias fases de desenvolvimento, do religioso ao científico, até à ideia do Super Homem de Nietzsche". Ora, atendendo a estas palavras, poder-se-ia admissivelmente defender a ideia, de que: quanto mais se souber sobre o livro de Nietzsche menos se compreenderá a partitura de Strauss... Uma percepção que poderia ter evitado alguns equívocos éticos e correspondentes dissabores morais a Richard Strauss alguns anos mais tarde, uma desconfiança de que nem o subtítulo com que teria batizado a obra: "Livremente segundo Nietzsche", lhe teria valido (...nem tão pouco os esforços que aplicara para manter a salvo dos campos de concentração, Alice, a sua nora judia, e os seus netos Christian e Richard, abrigando-os em Garmish-Partenkirchen até ao final da guerra).
No fundo, esta música mostrar-se-ia relevante pela sua estrutura orgânica independente e desfrutável pelos seus atributos puramente musicais, com uma riqueza e variedade orquestral, desde a opulência dos metais, tímpanos e órgão da abertura celebrizada por Stanley Kubrick no filme 2001-Odisseia no espaço (também ele de culto, logo cuidado...), de 1968, até aos apontamentos intimistas de música de câmara, numa dicotomia não resolvida entre a Natureza e o Espírito do Homem, afastados entre si pelas tonalidades de Dó e Si... Maiores e menores. Tratar-se-ia do sexto poema sinfónico do compositor, escrito entre o Verão e o Outono de 1896, e estreado sob a sua direcção a 27 de Novembro desse ano, em Frankfurt.
Esta obra extraordinária dividir-se-ia em nove partes. Começaria pela Introdução [1], com o famoso Nascer do Sol como elemento representativo da Natureza (em dó... Maior) que retrataria o momento em que Zaratustra sai da caverna nas montanhas remotas, lugar onde já se encontraria há dez anos afastado dos Homens à procura da sabedoria, e a sua decisão em partilhá-la com o Mundo (lá em baixo...). Seguir-se-ia Dos Homens do Mundo ultraterreno [2], onde escutaríamos, pela primeira vez, o tema do Homem (em si... menor) no adeus à fé ingénua em Deus e à crença no além. Da Aspiração Suprema [3] surgiria depois, num Magnificat sobre as visões e memórias da juventude do profeta. Em quarto lugar chegar-nos-iam os sons desenfreados Das Alegrias e das Paixões [4]. Seguir-se-ia O Canto Fúnebre [5], em harmonias que reflectem o espírito de auto-abnegação do Homem, e a obra continuaria através Da Ciência [6], com fugas, cromatismos e contrastes tonais simbolizando a erudição e as diferenças entre o Homem e a Natureza. O Convalescente [7] chegaria agora com a dança libertadora dos laços da superstição, dando depois lugar à A Canção da Dança [8], uma valsa vienense parodiada pelo autor, conhecida como a "Dança do Super Homem", até que surge finalmente A Canção do Vagueante Nocturno [9]. Os "Sinos da Meia-Noite" assinalam agora o retorno de Zaratustra às montanhas, com a Natureza a ter a última palavra, numa solução escolhida por Strauss contrária à do próprio Nietzsche, pelo que mais "Livremente" que isto seria difícil.
...Provavelmente uma boa aposta de Strauss para o final, a da imposição da Natureza ao Espírito do Homem... ou não tivéssemos muito a aprender com as "estatísticas" do último ano.
Oxalá tenhamos mais a ensinar pelo mesmo motivo...
Já Don Juan, o segundo poema sinfónico escrito por Richard Strauss, causaria tamanha sensação na noite de estreia de 11 de Novembro de 1889, em Weimar, que o compositor de 25 anos de idade se tornaria mundialmente famoso logo a partir do pódio onde se encontrava a dirigir a Orquestra da Ópera daquela cidade, da qual era maestro assistente. Uma estreia tumultuosa que faria com que fosse considerado o mais importante compositor alemão depois de Wagner, facto que poderemos ensaiar compreender pelos comentários que escreve ao seu pai, o trompista Franz Strauss, no dia a seguir, referindo que a orquestra tinha apreciado a nova peça apesar das muitas dificuldades: "Eu lamento realmente pelas pobres trompas e trompetes. Eles sopravam até ficarem com as faces azuis" (Quem melhor me conhece saberá o quanto eu acho isto d' "o belo"...).
Nesta obra sumptuosa, Strauss evoca o maior personagem romântico da história, tentando retratar o carácter do amante insaciável, que conquista os objectos da sua adoração umas vezes através do frenesim selvagem da paixão, outras pela suave sedução, pelo que é admissível que, no momento da criação (da obra, naturalmente...), o jovem compositor se encontrasse sob a influência (Domínio?) amorosa da jovem soprano Pauline de Ahna, que mais tarde iria tornar-se sua esposa (Domínio, por certo...), se bem que há quem julgue que a temática escolhida (desavergonhadamente erótica) teria sido o resultado da forte paixão que sentia por Dora Wihan, a alienada esposa de um violoncelista famoso daquela época (o reconhecidamente teimoso Hanus, a quem Dvorák dedicaria o seu concerto para violoncelo). Considerando que as sonoridades desenvolvidas (naquele poema sinfónico, depreenda-se) se terão aparentemente inspirado em múltiplos episódios de luxúria, então o mais provável é que qualquer uma destas suposições seja de igual modo válida. Adiante...
Embora o drama de Don Juan tivesse já aparecido por inúmeras vezes na literatura e na música europeia, Strauss, todavia, encontraria a inspiração necessária não nas conhecidas óperas ou no famoso poema de Lord Byron, mas sim na obra inacabada do poeta austríaco de origem húngara, Nikolaus Lenau (1802-1850), publicada em 1851. A versão de Lenau revelaria o caracter psicológico de um homem devoto à procura idealística da mulher perfeita, vangloriando-se do prazer usufruído a cada conquista amorosa, até ao momento em que se apercebe que cada um dos seus sucessos infligiria um grande mal a todos os envolvidos, um facto que tornaria a sua existência um fardo cada vez mais difícil de suportar, levando-o finalmente à morte. Com efeito, desafiado para um duelo pelo filho de uma das mulheres que seduzira (um dos danos colaterais seria, de igual modo, o pai, que entretanto se suicidara), o protagonista permitir-se-ia atirar a espada para longe após a submissão do seu opositor, porque consideraria aquela vitória "tão aborrecida como a própria vida", um momento imediatamente aproveitado pelo seu oponente, que de um único golpe poria um fim à sua carreira de sedutor... e a, eventualmente, diversas outras carreiras também, ou a estocada não tivesse atingido, de forma fulminante, aquele coração libertino.
Nuno Oliveira
"Assim falava Zaratustra, op. 30"
"Don Juan, op. 20"
✨ Extractos que proponho para audição: (ver também publicações nº 8, 18 e 37)
- Symphonieorchester des Bayerischen Rundfunks
- Lorin Maazel
- RCA, 09026 68225 2
Strauss. Nenhuma outra é mais intensa, basta escutar os primeiros dois minutos e
percebe-se porquê. Sonoridade extraordinária dos músicos Bávaros e uma visão
fresca do mestre Maazel. É simplesmente brutal!), com alguns destaques,
identificados a seguir;
[1]: tutti (Difícil ouvir melhor "o belo" poder do Nascer do Sol! Trompas de arrepiar
[1]: tutti (Difícil ouvir melhor "o belo" poder do Nascer do Sol! Trompas de arrepiar
os cabelos aos 1:20! De culto ("cuidados extras" não necessários...)!) [youtube]
[2]: tutti (Sensibilidade, bom senso e o intimismo da música de câmara...) [youtube]
[3]: tutti (Prefácio da sumptuosidade!) [youtube]
[4]: metais, aos 0:00-2:10 (Sonoridade luxuriante à maneira de D. Juan!) [youtube]
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[2]: tutti (Sensibilidade, bom senso e o intimismo da música de câmara...) [youtube]
[3]: tutti (Prefácio da sumptuosidade!) [youtube]
[4]: metais, aos 0:00-2:10 (Sonoridade luxuriante à maneira de D. Juan!) [youtube]
[5] [youtube], [6] [youtube], [7] [youtube]
[8]: violino e tutti (Descompressão e danças de salão a acompanhar...) [youtube]
[9]: metais, cordas e madeiras (...até que a noite cai e os pensamentos vagueiam na
escuridão da Herculessaal...) [youtube]
[D. Juan]: tutti, aos 0:00-0:55 (Inicio das peripécias...); oboé, aos 6:45-8:03 (Falinhas
mansas neste "o belo" idílio de amor!); trompas, aos 10:03-10:47 e 14:43-15:03
("o belo" que é ficar com os cabelos (e outras extremidades, ou não se tratasse do
D. Juan...😀) em pé!); tutti (No final, o fechar de um olhar trespassado pela
espada...) [youtube]
- Chicago Symphony Orchestra
- Fritz Reiner
- RCA, 09026 60930 2
inacreditável, a qualidade de uma gravação realizada em 1954 e que chega aos
nossos dias repleta de intensidade e humanidade. Acústica calorosa, sonoridade
atmosférica e balanço extraordinário. Um registo lendário e imperdível.)
- Berliner Philharmoniker
- Herbert von Karajan
- Deutsche Grammophon, 439 016-2 GH
numa interpretação de referência de von Karajan. A sensibilidade ao cair a "noite"
numa escolha incontornável para estas obras.)
[1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube], [4] [youtube], [5] [youtube], [6] [youtube],
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[7] [youtube], [8] [youtube], [9] [youtube], [D. Juan] [youtube]
- Chicago Symphony Orchestra
- Georg Solti
- London, 430 445-2 LM
Solti confunde-se nesta poderosa visão. Brilhantemente interpretada, a não perder.)
- Berliner Philharmoniker
- Georg Solti
- Decca, 452 603-2 DH
o caracteriza também. Sonoridade orquestral de encher o ouvido, detalhe, cordas
deslumbrantes e metais bem presentes. Magnífico Till Eulenspiegels como bónus.)
- Wiener Philharmoniker
- Herbert von Karajan
- Decca, 417 720-2 DM
Interpretação replecta de energia e heroísmo, cordas voluptuosas e metais
acutilantes. Um registo "lendário" a não perder também.)
- Wiener Philharmoniker
- André Previn
- Telarc, CD-80167
Uma magnífica opção a ter em conta.)
[1-9] [youtube]
- Seattle Symphony Orchestra
- Gerard Schwarz
- Delos, D/CD 3052
interpretação formidável da Orquestra de Seattle. Uma excelente escolha.)
- Scottish National Orchestra
- Neeme Järvi
- Chandos, CHAN 8538
excelente grupo escocês. Uma escolha a ter em conta também.)
- Vladimir Ashkenazy/The Cleveland Orchestra/Decca, 425 941-2 DH, [D. Juan] [youtube]
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"Violinista. Desenhador. Alguém que ambicionava saber mais."
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