87. Prokofiev: Pedro e o lobo |
O "Pedro e o Lobo" de Sergei Prokofiev e os reflexos sonoros das circunstâncias, na vida dum artista.
Para os que enganam o infortúnio.
A história sussurra-nos ao ouvido que nem toda a música erudita haveria de ser composta da forma mais ou menos séria e para o consumo de um público mais ou menos adulto. Houve alturas em que as circunstâncias da vida dos compositores haveriam de definir o rumo mais ou menos intelectual ou inovador das suas criações, umas vezes privilegiando-se a vontade do outro à vontade do próprio, outras vezes preterindo-se o gosto individual em favor do gosto colectivo.
O Pedro e o Lobo de Sergei Prokofiev (1891-1953) seria porventura um desses casos, uma testemunha da passagem da procura, quase insana, do progresso e da novidade artística, para a satisfação com a tradição bem conhecida de todos os camaradas.
Depois de quase vinte anos vividos maioritariamente entre São Francisco e Paris, Prokofiev tomaria a decisão de retornar definitivamente à Rússia, alegadamente devido às saudades que sentiria do seu país. Juntamente com a família, Sergei reiniciaria a vida em Moscovo em 1936, apenas para sofrer uma perseguição política que o faria repensar a atitude perante tais, claro está, circunstâncias.
Depois da condenação oficial da sua ópera Lady MacBeth de Minsk e do falhanço na apresentação de uma produção de sucesso do seu bailado Romeu e Julieta, Prokofiev jogaria agora pelo seguro, compondo uma série de pequenas peças de sedução fácil, muitas delas destinadas ao público infantil. Naquelas circunstâncias, seria prudente fazer-se de morto, evitando-se, assim, uma eventual escalada de acontecimentos que fizesse mudar o modo verbal. Com efeito, o contrário da velha máxima popular lusa imperaria aqui: certamente que seria melhor parecê-lo do que (possivelmente) sê-lo.
Este nosso "conto musical para crianças", como Sergei dizia, nasceria a partir daqui.
O repto à criação chegaria de Natalia Satz, a directora do Teatro Infantil de Moscovo nesse ano de 1936. O teatro ter-se-ia mudado para as suas novas instalações em Março, e a ideia da directora era comemorá-lo com uma "história de encantar sinfónica" que pudesse apresentar os vários instrumentos da orquestra às crianças, tendo proposto esse desafio ao compositor.
O Teatro Infantil de Moscovo era já um velho conhecido de Prokofiev. Produzia óperas, concertos e bailados para crianças, muitos deles interpretados por crianças também, tendo o compositor, inclusivamente, já ali apresentado algumas das suas canções por diversas ocasiões.
As circunstâncias e o lugar familiar acenariam de forma positiva ao desafio proposto, e o resultado seria assim este Pedro e o Lobo. A vertente didática era obrigatória, pelo que a conclusão passaria por encontrar imagens na narrativa que pudessem ser facilmente identificáveis com cada um dos instrumentos: "E que tal uma flauta para um passarinho?", sugeria ela; "Completamente, camarada!", concordaria ele...
As "trocas de impressões" levariam ainda à escolha de um oboé para um pato, de um clarinete para um gato, de um trio de trompas para um lobo, da percussão para uns tiros de espingarda e de um fagote para um avô. Já o casting para o protagonista da história viria a resultar num quarteto de cordas, entendendo-se que o Pedro, como ser humano que era, "haveria de ter mais facetas no seu carácter". Curiosamente, as sempre existentes falhas (de carácter) não teriam aqui voto na matéria, e muito bem, pois como podemos observar no final da história, a intenção de fazer usufruir do jardim zoológico preterindo o céu dos animais, seria a mais humana e acertada.
Por outro lado, Prokofiev considerava que a história era importante apenas como meio de persuadir os mais novos a ouvir a música, e que as palavras e os personagens deveriam ajudar os ouvintes a compreenderem a música e não a separá-los dela. Nesse sentido, o compositor "decidiria" rejeitar o uso da narrativa em verso "sugerida" inicialmente, para escrever, ele próprio, o texto da história. O enredo, que seria desenhado para ser arrepiante e atrair a atenção dos mais pequenos, apresentar-se-ia mais ou menos assim:
"Cada personagem desta história é representado por um instrumento da orquestra:
Pedro, pelo quarteto de cordas.
O pássaro, por uma flauta.
O pato, pelo oboé.
O gato, pelo clarinete.
O avô de Pedro, pelo fagote.
O lobo, por três trompas.
Os tiros dos caçadores, pelos instrumentos de percussão.
Deste modo, todos poderão distinguir a sonoridade de cada instrumento durante a narração desta história.
Uma manhã, bem cedo, Pedro abriu o portão do jardim e toca a passear pelos grandes campos verdes.
No ramo de uma árvore estava empoleirado um passarinho, amigo de Pedro.
– Está tudo tão calmo. - chilreou divertido o passarinho.
E eis que bamboleando apareceu um pato. O pato estava todo contente porque Pedro tinha-se esquecido de fechar o portão, e assim ele pôde tomar um belo banho no pequeno, mas profundo lago.
Ao ver o pato, o passarinho resolveu voar para a relva e foi pousar junto dele, encolhendo os ombros.
– Se não sabes voar, que espécie de pássaro és tu?
E o pato respondeu-lhe:
– E tu, se não sabes nadar, que espécie de pássaro és tu? – e depois de dizer isto, deu um mergulho no pequeno lago.
Discutiram e voltaram a discutir. O pato a nadar no lago e o passarinho a saltitar na margem.
Subitamente algo despertou a atenção de Pedro. Era um gato que rastejava entre a relva.
O gato pensou:
– O passarinho está tão entretido com a discussão que vou apanhá-lo – com as suas patas de veludo foi-se aproximando, muito sorrateiramente.
– Cuidado! – gritou o Pedro. E o passarinho voou imediatamente para cima da árvore; enquanto o pato grasnava muito zangado para o gato, mas de dentro do lago.
O gato deu uma volta à árvore e pôs-se a pensar:
- Valerá a pena eu trepar até tão alto. Quando lá chegasse já o pássaro teria voado para bem longe.
Aparece o avô de Pedro, que está muito zangado com ele por ter ido para o campo.
– É um lugar perigoso. O que farias se te aparecesse aqui um lobo?
Mas Pedro não prestou nenhuma atenção às palavras do seu avô. Oh, rapazes como ele não têm medo nenhum dos lobos.
Mas o avô pegou na mão de Pedro, fechou o portão do jardim e levou-o para casa.
Mal Pedro tinha partido, apareceu saído da floresta um enorme lobo cinzento.
Num abrir e fechar de olhos, o gato trepou para a árvore.
O pato grasnava, e no meio de tanta confusão, atarantado, saltou para a margem do lago.
Mas por mais que corresse, não conseguia livrar-se do lobo. O lobo aproximava-se, aproximava-se, cada vez mais próximo!
E então apanhou o pobre pato, e de um só trago, engoliu-o.
Neste momento a situação é esta:
O gato sentado num ramo da árvore.
O passarinho noutro, mas não muito perto do gato.
E o lobo dando voltas à árvore e lançando-lhes um olhar voraz.
Entretanto, por detrás do portão do jardim, Pedro, sem qualquer medo, observava toda esta cena.
Correu para dentro de casa, pegou numa corda muito forte e saltou para cima do muro de pedra que era muito alto.
Um dos ramos da árvore que o lobo rondava, estendia-se para cima do muro.
Pedro agarrou-se ao ramo, e agilmente trepou para o cimo da árvore.
Pedro, virando-se para o pássaro disse:
– Voa lá para baixo e dá a volta em torno da cabeça do lobo. Mas tem cuidado senão ele apanha-te.
As asas do pássaro quase que tocavam na cabeça do lobo, que estava furioso, dando dentadas para a esquerda e para a direita.
O pássaro não parava de irritar o lobo, e o lobo mortinho por apanhá-lo. Mas o pássaro era bem mais esperto, e o lobo não tinha outro remédio se não ficar cada vez mais irritado.
Entretanto, Pedro fez um laço com a corda, e com muito cuidado fê-la descer.
Apanhou o lobo pela cauda e puxou a corda com toda a força que tinha.
Sentindo-se apanhado, o lobo começou a dar grandes pulos para ver se conseguia libertar-se, mas o Pedro atou a outra ponta da corda à árvore... e os pinotes do lobo só faziam com que a corda lhe apertasse ainda mais a cauda.
Precisamente nesta altura... os caçadores saíram da floresta. Vinham na pista do lobo enquanto davam tiros.
Mas Pedro, empoleirado em cima da árvore gritou-lhes:
– Não disparem! Eu e o passarinho apanhámos o lobo. E agora ajudem-nos a levá-lo para o jardim zoológico.
Façam uma pequena ideia do cortejo triunfal!
O Pedro ia à frente.
E logo a seguir, iam os caçadores com o lobo.
E sabem quem ia a fechar o cortejo? Era o avô e o gato.
O avô abanava descontente a cabeça, enquanto pensava com os seus botões:
– Se o Pedro não tivesse apanhado o lobo... Que teria acontecido?
Por cima deles voava o passarinho, que chilreava:
– Vejam como eu e o Pedro fomos corajosos! Vejam o que nós apanhámos!
E agora, se escutarem com muita, muita atenção, ainda conseguem ouvir o pato a grasnar dentro da barriga do lobo. É que o lobo, com aquela pressa toda, tinha engolido o pobre pato... vivo."
A obra ficaria concluída num espaço de duas semanas e seria estreada a 2 de Maio de 1936, numa tarde de concerto da Sociedade Filarmónica de Moscovo.
Segundo relatos do próprio compositor, esta apresentação não teria sido boa e a obra atrairia poucos comentários. Seriam necessários três dias e uma nova apresentação, neste caso no Teatro Infantil, para que a mesma provasse o seu sucesso e a sua popularidade se espalhasse rapidamente. Gravações discográficas haveriam de ser feitas, companhias de dança dançá-la-iam, teatros de marionetas levá-la-iam à cena e até o próprio Walt Disney haveria de fazer o filme Pedro e o Lobo uma década depois.
Poucos dias após a estreia, Prokofiev, o famoso "compositor das crianças", seria contactado pelo Comissário Soviético das Provisões, Anastas Mikoyan, com uma proposta inesperada: "Quererá o camarada participar num programa inovador de popularização de canções infantis, poemas e contos de fadas, através da escrita de uma pequena melodia a ser impressa nos embrulhos coloridos dos chocolates, brinquedos e guloseimas?".
O camarada Prokofiev ainda desconfiaria, mas seria por pouco tempo. As circunstâncias pareciam mudar, e o acordo chegou logo depois com a percepção de que a sua nova canção iria embrulhar a marca de chocolates que ainda recordava daquela infância feliz, passada longe dali, na sua Sontsovka ucraniana. Aqueles eram os seus favoritos, mas, se calhar, as circunstâncias também seriam outras.
Nuno Oliveira
"Pedro e o lobo, op. 67"
✨ Extractos que proponho para audição: (ver também publicações nº 19, 56 e 79)
- John Gielgud
- Academy of London
- Richard Stamp
- Virgin, VC 7 90786-2
solistas de excelência e a voz teatral de Sir Gielgud que dá gosto escutar. Uma
gravação equilibrada, adequada para todos, sejam eles mais ou menos novos.)
[I-IX]: narrador, aos 0:00-28:21 (A voz que prende o ouvido do princípio ao fim
da história.); cordas, aos 2:06-2:58 e 10:10-10:34 (Jovem primavera.); flauta, aos
3:10-3:40 (Dar asas ao imaginário infantil.); narrador e flauta, aos 7:53-8:05
(O pulo da criança assustada em cada ouvinte.); trompas, aos 11:22-12:40 (Trio de
predadores.); tutti, aos 21:23-22:50 (Amigos da marcha.) [youtube]
- Edna Everage
- Melbourne Symphony Orchestra
- John Lanchbery
- Naxos, 8.554170
popular que ajuda as crianças a entrarem no mundo da música clássica.
Dame Edna faz lembrar a maneira de contar da nossa avó. Um dos registos
favoritos dos mais novos.)
- Christopher Lee
- English String Orchestra
- Yehudi Menuhin
- Nimbus, NI 5192
as cordas joviais, trompas ferozes e a voz marcante de "Saruman". Uma leitura
fluida e irresistível para os menos novos.)
[I-IX] [youtube]
- Romy Schneider
- Philharmonia Orchestra
- Herbert von Karajan
- EMI, CDZ 25 2201 2
que até parece que testemunhou os acontecimentos na primeira pessoa. Não
costuma ser-me fácil sentir a frescura em língua alemã. Com Romy eu sinto-a.)
- Marius Müller-Westernhagen
- Orchestre de L'Opéra de Lyon
- Kent Nagano
- Erato, 4509-91733-2
individual do mestre Nagano. Narrativa para adultos, a fazer lembrar uma
homilia sagrada alemã. Um registo diferente para descobrir.)
- André Previn
- Royal Philharmonic Orchestra
- André Previn
- Telarc, CD-80126
que chamam à atenção. É pena a narrativa monocórdica e menos colorida,
mais do género documental do que de um "era uma vez". Gravação de qualidade,
virada para os que preferem o canal National Geographic ao canal Panda.)
- Eunice Munõz/Álvaro Cassuto/Nova Filarmonia Portuguesa/Movieplay, 3-11013 (Som frágil nas cordas e metais, cristalino nas madeiras e a voz inconfundível de Eunice Munõz, numa maravilhosa "hora do conto" para as crianças que falam português.), [I-IX] [youtube]
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Família Prokofiev. Da esq. para a dir.: Sergei, Sviatoslav, Oleg e Lina [Moscovo, 1936]
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A Dissimulação também faz parte do ADN felino
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