70. Mendelssohn: sinfonia nº 4, "Italiana" |
Mendelssohn e a "Italiana" do seu descontentamento... além da recordação de um lugar que se escuta, aquém do âmago de uma terra que se sente.
E para o Joca não vai nada, nada, nada?
Vai...! Uma "Italiana"!?
"7A! Uiiiiiiiii que bom!".
O interesse pela grande música ter-me-á surgido na adolescência (lembro-me de adormecer incontáveis noites com os auscultadores gigantescos nas orelhas ao som dos LPs da Classical Experience) e, com ele, o fascínio pela obra do fenómeno alemão chamado Felix Mendelssohn (1809-1847). À semelhança de um outro fenómeno de adoração universal chamado Wolfgang Amadeus Mozart, o nosso Felix estaria, também ele, destinado à grandiosidade desde tenra idade. Antes dos catorze anos ele não só já se revelaria um compositor talentoso, com uma cantata e duas operetas no portfólio, e um pianista instintivo capaz de tocar de memória todas as sinfonias de Beethoven (desde os oito!) e o "Cravo bem temperado" de Bach, como ainda dominava vários dialectos e era também admirado pelas suas aguarelas. É claro que detrás do destino de grandiosidade do filho estariam seguramente os seus abastados pais, também eles destinados à fundamental tarefa de providenciar as necessárias experiências a viver e o obrigatório caminho a percorrer para se alcançar tal destino (...que um dia se confundiria com Itália... Vida de maravilha!). A mãe, Lea, proporcionar-lhe-ia o contacto com Goethe, Hegel e muitos outros artistas e pensadores do seu tempo, enquanto que o pai, Abraham, decidiria que uma vasta viagem pela Europa lhe abriria horizontes, pelo que, pouco tempo depois de completar vinte anos de idade, iniciaria uma jornada que lhe viria a ocupar grande parte dos cinco anos seguintes e a providenciar uma considerável fonte de inspiração.
"Por fim Itália!", exclamaria Felix numa carta enviada à família em 1830, após ter partido em Outubro desse ano para "A terra onde os limoeiros florescem", o lugar do poema do seu estimado Goethe e um dos destinos mais apetecidos dos deambulantes daquela época (Um apetite que no meu caso continua por saciar, embora já lhe tenha tomado o gosto com uma entrada à muitos anos atrás. A fome pelo prato principal, essa, porém, permanece pela falta do necessário "tempo" que este rectângulo a oeste nos permite adquirir... honestamente.). Como um turista fascinado por tudo o que observa, Felix repetiria os passos românticos da "Viagem a Itália" de Goethe, percorrendo aquele país de Norte a Sul, desde Milão até Sorrento, visitando Veneza e os seus canais, depois Bolonha e Florença com os seus palácios, até chegar a Roma, cidade onde passaria vários meses a descobrir Rafael e a viver o peso da história durante uma Semana Santa sumptuosa após a coroação do Papa Gregório XVI, testemunhando com detalhe as cerimónias religiosas e a música utilizada nas celebrações. Passaria depois o mês de Abril em Nápoles antes de retornar à Alemanha em Julho de 1831, via Suíça, permanecendo ainda em Génova e Milão antes disso. A partir de Nápoles escreveria: "Esta é outra terra, e cada planta e arbusto recorda-nos disso". Com efeito, Felix ficaria enfeitiçado pela vista desde a baía de Nápoles até Capri e Ischia, um olhar que registaria a carvão no seu caderno de esboços, pelo cheiro das acácias e das árvores de fruto, pelos passeios por caminhos empedrados e pelo pulsar da vida Napolitana.
Assim, não seria de estranhar que o natural surto criativo promovido pelas inúmeras fontes de inspiração disponíveis (italianas, recordo), levassem Mendelssohn a trabalhar a partir de Itália naquela que viria a ser a sua Sinfonia nº 4, em lá maior, op. 90, "Italiana". Para além disso, será porventura interessante referir também, que o compositor trataria presumivelmente da sua "Escocesa" (terceira sinfonia, op. 56) e "Italiana" ao mesmo tempo (seguramente uma carga de trabalhos para os mais inexperientes), não nos surpreendendo, por isso, algumas semelhanças entre as duas peças, como são exemplos as tonalidades (não confundir com tons de pele) e os ritmos (não confundir com movimentos corporais) escolhidos. Esta suposição faria sentido pela carta que escreveria a 20 de Dezembro de 1830 a partir de Roma, referindo a pretensão de "escrever várias coisas para piano e possivelmente uma sinfonia de alguma espécie, que tenho duas que me andam a perseguir o cérebro" (pode perfeitamente acontecer...), sendo que, e apesar da incoerência do número de opus no catálogo, seria todavia a Italiana a primeira das duas a ficar resolvida, o que aconteceria a 13 de Março de 1833, num bom exemplo de preferência das silhuetas mediterrânicas aos contornos das terras altas.
Na realidade, Mendelssohn receberia, em Novembro de 1832, uma encomenda da Sociedade Filarmónica de Londres para escrever algumas peças para a temporada de 1833, entre elas uma sinfonia, pelo que esta obra viria a ser estreada pelo próprio compositor e a Orquestra Filarmónica a 13 de Maio desse ano, no Hanover Square Rooms de Londres, com tremendo sucesso.
A verdade, porém, é que apesar da aparente espontaneidade, esta sinfonia teria causado múltiplos problemas e dado muito trabalho ao compositor até que fosse considerada satisfatória e se materializasse na obra que chegaria a descrever à sua irmã Fanny como: "a peça mais alegre que compus até agora". Ao que parece, e embora fosse considerada satisfatória para a apresentação londrina, esta ainda não seria, contudo, perfeita ao olhar de Felix Mendelssohn, um facto porventura incompreensível aos ouvidos do comum espectador atendendo à excelente qualidade da música. Aparentemente faltaria algum polimento a uma obra repleta de brilho, sol mediterrânico e energia sem fronteiras (para lá deste mar, pelo menos... até chegar a um outro, o do Norte Escocês), justificação que levaria o compositor a revisões constantes a partir de 1834, mas que em nada melhorariam a obra. Essa é pelo menos a sensação com que fico, que acredito ser admissível se tomarmos em conta o registo de John Eliot Gardiner referido em baixo, onde, neste caso, o colorido do olhar original é de facto superior à cópia registada a preto e branco no caderno de esboços. As dúvidas artísticas de Mendelssohn fariam ainda com que adiasse sucessivamente a publicação da obra e não permitisse a sua apresentação na Alemanha durante o seu tempo de vida, levando o público alemão a conhecer esta sinfonia apenas em 1851, quatro anos depois da sua morte, e após a publicação levada a cabo pelo pianista e maestro Ignaz Moscheles, que lhe atribuiria o consequente op. 90 final.
Felix Mendelssohn talharia os quatro andamentos da sua Sinfonia "Italiana" com o mesmo pensamento com que escreveria uma carta para os pais em Janeiro de 1831: "Porque é que a Itália continua a insistir em ser o país das artes, quando na realidade é o país da natureza que delicia todos os corações!". Esta Itália reconhecer-se-ia logo aos primeiros compassos, com a explosão do calor e da azáfama mediterrânica no Alegro Vivace [I], seguido da procissão de Roma que inspiraria o Andante [II] e da graciosidade rural do Minueto (Con moto moderato) [III], até se chegar ao rápido e furioso Saltarello [IV] a fazer recordar a vitalidade Napolitana.
Se para Felix o desenho era a resposta imediata à captação de uma cena (as suas ilustrações de Itália possuem uma simplicidade apelativa), já o "apanhar do momento" só poderia ser reflectido por palavras (as cartas que escreveria desde Itália formariam um documento de leitura obrigatória) ou pelos sons que a sua profissão lhe obrigaria a perseguir. A conciliação de uma resposta romântica a um balanço de forma clássico constituiria a dureza do seu labor e o principal motivo de descontentamento pessoal... e esta Italiana mostrar-se-ia bastante rija até se apresentar como uma das mais belas peças de música alguma vez escritas por um compositor cativado pelos sons e formas dela... d'"a bela" Itália, de língua dominada desde os catorze, de corpo envergonhado até ao último suspiro.
Nuno Oliveira
"Sinfonia nº 4, em lá maior, op. 90, "Italiana""
✨ Extractos que proponho para audição: (ver também publicações nº 48, 50 e 82)
- Berliner Philharmoniker
- Claudio Abbado
- Sony, SK 62600
onde se destacam a excelência da orquestra alemã e a ligação à música do
maestro italiano. Luminosidade individual e musicalidade colectiva dos músicos
berlinenses desde o primeiro compasso. Interpretação superlativa do mestre
Abbado. Uma proposta obrigatória!)
[I]: tutti, aos 0:00-1:12 e 2:51-4:01 (Onde é que eu já ouvi isto...?!); oboé, aos
2:35-2:44 (Belcanto nas madeiras...) [youtube]
[II]: tutti, aos 2:05-2:39 e 5:45-6:15 (Abbado!) [youtube]
[III]: trompas, aos 2:20-3:09 e 3:31-3:57 (... e belcanto nos metais!) [youtube]
[IV]: tutti, aos 2:30-3:13 (Reacção em cadeia!) [youtube]
- London Symphony Orchestra
- Claudio Abbado
- Deutsche Grammophon, 415 974-2 GH
de novo, aqui acompanhado pela orquestra londrina, numa interpretação
dinâmica e expressiva. Sonoridade maravilhosa e a sensação dos pormenores
da música na ponta dos dedos. Imperdível.)
- Gewandhausorchester Leipzig
- Kurt Masur
- Teldec, 8573-80970-2
pode oferecer. Sonoridade atmosférica da Gewandhaus e interpretação
jovial e distinta do mestre Masur. Um ícone.)
- Berliner Philharmoniker
- James Levine
- Deutsche Grammophon, 427 670-2 GH
americano, num magnífico exemplo da sonoridade sumptuosa aliado à
energia e graciosidade interpretativa. Uma aposta de excelência e uma
escolha a não perder também.)
[I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]
- London Classical Players
- Roger Norrington
- Virgin, 5 61735 2
dos intérpretes escuta-se e a alegria sente-se. Um registo incontornável para
os entusiastas das interpretações historicamente informadas e uma fabulosa
escolha também.)
[I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]
✰ Outras sugestões:
- Wiener Philharmoniker
- John Eliot Gardiner
- Deutsche Grammophon, 459 156-2 GH
de Viena que se notam. A disponibilização da versão revista de 1834 apresenta
um interesse histórico suplementar. Uma versão a descobrir e uma opção a ter
em conta.)
Revisão 1834: [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]
- Wiener Philharmoniker
- Georg Solti
- Deutsche Grammophon, 448 945-2 DH
de Viena. Uma escolha de qualidade que deve ser considerada também.)
- The Hanover Band
- Roy Goodman
- Nimbus, NI 1765-5526
de excelência e interpretação esclarecida do mestre Goodman. Uma visão
a conhecer.)
- Charles Mackerras/Orchestra of the Age of Enlightenment/Virgin, VC 7 90725-2 (A proposta em instrumentos de época do mestre Mackerras a ter em conta.), [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]
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"Falta de pena no carro da "Porca"" [Coimbra, Queima das Fitas, Maio/1997]
"A outra música de Mendelssohn, Bruckner e Tchaikovsky" [Águeda, algures no pré-pandemia]
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