terça-feira, 8 de junho de 2021


55. V. Williams: sinfonia nº 1, "Uma Sinfonia do Mar" |

"Uma Sinfonia do Mar", pelo visionário Ralph Vaughan Williams. Haverá mais marés que marinheiros? Sim e não... se cada um aportar a sua visão, com particular imaginação.






Para a Sociedade Musical Alvarense (Banda Alvarense), da vila de Ulvario, um oásis na raia de Spinelle, encostada à milenar Ederoni.
Obrigado por me teres mostrado a imensidão dos oceanos a partir da sala de ensaio.

Afinal, só podemos ser alguma vez aquilo que já sonhámos um dia.






A poesia do norte-americano Walt Whitman (1819-1892), com a sua liberdade formal característica (uma mais valia para os compositores, na medida em que não imporia qualquer rigidez métrica), pouco convencional pelas suas ideias sobre sexo e religião, e de um humanismo profundo gerado pela experiência vivida na Guerra Civil Americana, viria a trazer uma lufada de ar fresco aos círculos literários britânicos e à própria vida musical britânica, que se reveriam não só na tragédia, mas também no heroísmo daqueles textos, numa época de preocupações com a ameaça de conflito, que já se viriam a acumular desde o tempo da 1ª Guerra dos Boers. Na realidade, seriam vários os compositores ingleses daquele virar de século que iriam musicar os seus poemas, entre eles os professores de Ralph Vaughan Williams (1872-1958), Charles Stanford e Charles Wood, e dois dos seus amigos mais próximos, William Bell e Gustav Holst (com o qual teria, aliás, uma relação forte, suportada no encorajamento mútuo e na critica honesta, desde os tempos de estudante no Royal College of Music), para além de Hamilton Harty e, sobretudo, de Frederick Delius, cuja música Vaughan Williams admirava enormemente (um bom exemplo disso seria a peça coral Sea Drift, com poemas da obra com o mesmo nome, estreada em Essen em 1905).
Vaughan Williams terá conhecido a poesia de Walt Whitman através de um colega estudante na Universidade de Cambridge, o futuro filósofo e livre-pensador Bertrand Russel, curiosamente no ano da morte do poeta, em 1892. Esse contacto teria deixado o compositor impressionado, o que o levaria mais tarde, em 1903, a seleccionar alguns textos para um projecto musical de escala considerável, envolvendo vozes solistas, coro e orquestra. Em 1906, porém, escreveria Toward the Unknown Region, uma obra mais pequena para coro e orquestra baseada no poema Darest thou now O Soul, de Whitman, composta inicialmente no âmbito de uma competição privada com Holst, e que seria estreada com grande sucesso no Festival de Leeds, em 1907. A paixão pelos poemas de Whitman continuaria em 1908 com a criação de Three Nocturnes para barítono, pequeno coro e orquestra (uma obra que, no entanto, nunca viria a publicar), ao mesmo tempo que desenvolvia a sua ideia original de um ciclo de canções marítimas para uma obra em quatro andamentos, para dois solistas, coro e orquestra, à qual chamaria inicialmente de Songs of the Sea, passando depois a denominar-se Ocean Symphony até chegar, finalmente, à conhecida A Sea Symphony (Uma Sinfonia do Mar), a sua primeira sinfonia, concluída em 1909 (e que, entretanto, seria revista em 1910, 1918 e 1924).
A Sea Symphony apresentar-se-ia como uma obra ambiciosa, que ilustraria a magnitude e o esplendor natural do próprio mar, e, simultaneamente, do mar como metáfora da alma humana na sua viagem para a eternidade, permanecendo extraordinariamente comovente pela sua nobreza, um reflexo da própria personalidade de Vaughan Williams, também ele um homem sensível e generoso. Seria estreada pelo próprio compositor no dia do seu 38º aniversário, a 12 de Outubro de 1910, novamente no Festival de Leeds, com a participação da soprano Cicely Greeson-White e do barítono Campbell McInnes, numa apresentação com estrondoso sucesso que, seguramente, seria a melhor prenda que Ralph poderia ter desejado naquele dia festivo. Com efeito, ao nervosismo antecipado do compositor, tranquilizado, no entanto, pelo comentário que o timpaneiro (sempre os mesmos...) lhe terá oferecido: "Tu só nos dás um bom quadrado de quatro tempos e nós fazemos o resto!" (...outra boa prenda de anos, aquela maravilhosa confiança!), seguir-se-ia o tremendo som libertado aos primeiros compassos com Behold the Sea itself, que Vaughan Williams recordaria num: "Eu quase caí abaixo do pódio!", uma prenda oferecida, neste caso, pela totalidade das almas que habitavam aquele palco, ou eventualmente melhor, que atracavam aquele cais. Ora, se o experiente Vaughan Williams ficou neste estado, tentem imaginar como se terão sentido os respectivos espectadores, possuidores, até aí, de uma audição imaculadamente virgem daquelas sonoridades... Nem conseguimos imaginar... mas poderíamos seguramente perguntar ao seu grande amigo George Butterworth, que se encontraria habitualmente na plateia, ou ao seu primo, o dedicatário Ralph Wedgwood, que se posicionaria num lugar supostamente mais destacado. Ambos diriam, evidentemente, que foi brutal... de bom!
Na realidade, o enorme sucesso desta A Sea Symphony, acompanhado do impacto que a sua Fantasia sobre um tema de Thomas Tallis teria causado, cinco semanas antes, no Festival dos Três Coros na Catedral de Glouchester, estabeleceriam Vaughan Williams como um dos principais compositores britânicos do seu tempo.
Por outro lado, e apesar da intensa actividade musical que levava a cabo naquela altura (membro do Bach Choir, direcção do agrupamento de música antiga Palestrina Society, violetista em agrupamentos de música de câmara e orquestra, direcção do Leith Hill Musical Festival), o tempo considerável que despenderia para compor esta sua primeira sinfonia (seis anos, recordo) coincidiria com a assumida crise de confiança no desenvolvimento das suas capacidades (revelada pela correspondência trocada com Holst), o que o levaria inclusive a partir em 1908 para Paris, cidade onde passaria alguns meses a estudar de forma intensiva com Maurice Ravel, uma personalidade três anos mais nova e da qual ficaria amigo para toda a vida.
Com efeito, os conhecimentos de orquestração que ganharia com Ravel reflectir-se-iam grandemente nesta A Sea Symphony, numa obra onde a escrita coral, por outro lado, ganharia forma com o aprendido com Parry, Stanford e Elgar, seguindo até Handel e à fonte da tradição coral inglesa. Em boa verdade, a decisão de designar esta obra como uma sinfonia teria sido um claro sinal de ambição, na medida em que seriam raros os precedentes de sinfonias totalmente corais, apesar de existirem importantes obras orquestrais com a presença de um coro final, como seriam a Sinfonia nº 9 de Beethoven, a Sinfonia nº 2, "Lobgesang", de Mendelssohn, ou a Sinfonia Fausto de Liszt (a Sinfonia nº 8, "Dos Mil", de Mahler, só seria dada a conhecer também em 1910).
Esta extraordinária sinfonia apresentar-se-ia, deste modo, com os quatro andamentos pretendidos desde o inicio. O primeiro chamar-se-ia Song for all Seas, all Ships [1] e utilizaria poemas do Sea Drift de Whitman que celebrariam os intrépidos marinheiros e a natureza indomável da alma humana, para além de fazer uma referencia a outra obra do poeta, a Song of the Exposition, com o impacto que podemos constatar aos primeiros compassos, sempre positivo se estivermos comodamente sentados ou eventualmente deitados (as soluções frugais que evitam possíveis quedas)... mas obrigatoriamente atentos. Este andamento dividir-se-ia, ainda, em cinco quadros distintos: Behold, the sea itself (1), Today a rude brief recitative (2), Flaunt out, O sea, your separate flags of nations! (3), Token of all brave captains (4) e A pennant universal (5). Seguir-se-iam os segundo e terceiro andamentos, um Lento e um Scherzo respectivamente, que utilizariam outros poemas de Sea Drift, também. O segundo, On the Beach at Night, Alone [2], nocturnal e meditativo sobre as similaridades que ligam todas as coisas do universo, repartir-se-ia em On the beach at night, alone (6) e A vast similitude interlocks all (7), enquanto que o terceiro, Waves [3] (8), descreveria a exaltação de uma tempestade no mar e o vibrante avistamento de um navio a romper as ondas. A sinfonia terminaria com o quarto andamento final, The Explorers [4], que apresentaria uma selecção de textos escolhidos criteriosamente das três últimas secções do poema Passage to India, igualmente de Whitman, na qual uma viagem marítima serviria de metáfora para a última jornada da alma humana. Este andamento, longo e predominantemente lento, ser-nos-ia apresentado em sete quadros inspiradores: O vast Rondure, swimming in Space (9), Down from the gardens of Asia descending (10), O we can wait no longer (11), O thou transcendent (12), Greater than stars or suns (13), Sail forth (14) e, finalmente, O my brave Soul! (15).
Neste Dia Mundial dos Oceanos, a proposta pouco habitual de Ralph Vaughan Williams para a conclusão da "viagem" dá particularmente que pensar... É como se vislumbrássemos aquela embarcação a desaparecer, pouco-a-pouco, no horizonte... rumo ao desconhecido; sonhado por visionários, temido por todos os outros... espiritual ou não.

   
Nuno Oliveira

                          


"Sinfonia nº 1, "Uma Sinfonia do Mar""


✨ Extractos que proponho para audição: (ver também publicações nº 6, 47 e 84)
  • Fellicity Lott, Jonathan Summers
  • The London Philharmonic Orchestra and Choir, Cantilena
  • Bernard Haitink
  • EMI, CDC 7 49911 2
"o belo": toda a obra (Interpretes empenhados na visão lúcida e detalhada do mestre Haitink,
                que demonstra aqui o seu domínio do "idioma inglês". Solistas extraordinários e um
                coro e orquestra especialistas nesta obra. Interpretação avassaladora, a não
                perder!)com alguns destaques a seguir;
                [1] - tutti, aos 0:00 - 3:21 (Contemplemos, pois, a vastidão d"o belo" Mar!) [youtube (1)],
                barítono, aos 3:21 - 5:37 ("Verões" viciantes, não!?) [youtube (2)][youtube (3)], coro,
                aos 11:51-16:39 (O espelho da tradição coral inglesa!) [youtube (4)][youtube (5)]
                [2] - (Noite e solidão...[youtube (6)][youtube (7)]
                [3] - (Um hino composto pela agitação das ondas...) [youtube (8)]
                [4] - tutti, aos 0:00 - 4:17 (Terá Copland mergulhado aqui, n'"o belo" Mar?) [youtube (9)],
                [youtube (10)], [youtube (11)][youtube (12)][youtube (13)], [youtube (14)], tutti (O Mar
                é calmo... no Fim (?)) [youtube (15)]    






  • Heather Harper, John Shirley-Quirk
  • London Symphony Orchestra and Chorus
  • André Previn
  • RCA, 60580-2-RG
"o belo": (Paisagens sonoras poderosas, riqueza do detalhe e interpretação refrescante.
                Uma conquista e uma referência na carreira discográfica de André Previn.
                Presença obrigatória nas melhores colecções.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube], [4] [youtube]






  • Isobel Baillie, John Cameron
  • The London Philharmonic Orchestra and Choir
  • Adrian Boult
  • Belart, 450 144-2 10
"o belo": (Intensidade e inspiração num registo clássico por excelência, supervisionado
                 pelo próprio compositor no ano remoto de 1952. A concentração e o fervor
                britânico dos protagonistas são perceptíveis através de uma gravação MONO de
                extraordinária qualidade. Vale a pena adquirir pela história e por tudo o resto.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube], [4] [youtube],






  • Benita Valente, Thomas Allen
  • Philharmonia Orchestra and Chorus
  • Leonard Slatkin
  • RCA, 09026-61197-2
"o belo": (Solistas expressivos e uma interpretação apaixonante dos músicos londrinos,
                dirigidos magistralmente pelo mestre norte-americano. Um registo admirável e
                a ter em conta também.)
                [1-4] [youtube]






  • Joan Rodgers, William Shimell
  • Royal Liverpool Philharmonic Orchestra, Liverpool Philharmonic Choir
  • Vernon Handley
  • EMI, CD-EMX 2142
"o belo": (Som quente e interpretação sensível, por uma orquestra de grande nível e
                vozes de qualidade. O passo é majestoso e emocionante, o início do 4º and.
                justifica uma lágrima. O mestre Handley merece o nosso aplauso por este
                magnífico registo.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube], [4] [youtube]





  
   
✰ Outras sugestões:
  • Amanda Roocroft/Thomas Hampson/Andrew Davis/BBC Symphony Orchestra and Chorus/Teldec, 4509-94550-2 (A interpretação dos músicos da BBC e do mestre Andrew Davis com detalhes interessantes que merecem ser escutados. Os apontamentos iniciais da harpa são um bom exemplo disso.) [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube], [4] [youtube]






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Vaughan Williams [1ª década 1900]




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Ulvario (Casal de Álvaro), Ederoni (Oronhe) e Espinhel (Spinelle).




A Banda Alvarense nas escadas do Palácio de Justiça de Águeda [anos 70].




Um músico da Banda Alvarense [Anos 90].




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