domingo, 15 de setembro de 2024


88. Verdi: Requiem |


O Requiem de Manzoni, escrito por Verdi (para Rossini) e o nó no estômago que a humanidade, em uníssono, decidiu herdar.






Para quem sentimos ao nosso lado.
Por sugestão de um deles.





A escolha de um Requiem para assinalar um dia de convívio festivo, poderá, à primeira vista, ser pouco consensual. A maioria atribuir-lhe-á o pesar das cerimónias fúnebres, esquecendo que só o entendimento do limite poderá fazer usufruir o presente de forma plena. Há que aproveitar o momento, por isso, caros ouvintes de requiens, aproveitemos.
Como todos os requiens, aquele que Verdi (1813-1901) viria a compor, partiria, também ele, do acontecimento trágico ocorrido no início de Maio de 1873, enquanto Alessandro Manzoni, o maior escritor italiano vivo, caía dos degraus da igreja da sua preferência, sendo levado para casa inconsciente. A fragilidade física dos seus oitenta e nove anos de uma vida de emoções plenamente vividas, não mais o faria regressar, vindo a falecer duas semanas depois, no dia 22 desse mês, para profunda tristeza de Giuseppe Verdi, o maior compositor italiano vivo.
Manzonni seria uma espécie de herói pessoal de Verdi, que o considerava um exemplo de talento, virtude e nobreza desde os dias, na flor da juventude, em que lera I promessi Sposi, a obra-prima de Manzonni publicada em 1827, que captaria o espírito progressista daquela época, utilizando uma linguagem bela, simples e directa, de um italianismo puro que pudesse ser lido e apreciado por todos. A unificação italiana seria o movimento do século e a história contada no I promessi Sposi viria a ser um importante unificador, sendo talvez por isso que Verdi não a considerasse apenas um mero conto, mas como "a consolação para toda a humanidade" escrita por um homem santo, um julgamento que aquele rapaz de catorze anos iria manter durante os seus oitenta e oito anos de uma vida, também ela, de emoções plenamente vividas.
Apesar da esposa de Verdi já ter sido apresentada a Manzoni e este lhe ter oferecido uma fotografia sua, com a dedicatória "Para a glória de Itália", Verdi continuaria a refrear as tentativas de o conhecer, mesmo quando a maioria dos seus compatriotas considerassem as duas figuras como as glórias gêmeas de Itália. A realidade é que ambos prezavam imenso a sua vida privada, pelo que Verdi privaria com Manzoni apenas por uma vez, em 1868, tendo Manzoni supostamente proferido: "Verdi, você é um grande homem.", ao que Verdi prontamente respondeu: "Mas você é um homem santo.".
O funeral de Manzoni seria uma ocasião de luto nacional, na qual Verdi se juntaria de forma sincera, embora não tivesse encontrado a força necessária para participar nas cerimónias, preferindo, por sua vez, visitar a sepultura mais tarde e prestar os seus respeitos sozinho. O seu estado de espírito ficaria registado numa carta ao seu editor Ricordi, no dia seguinte à morte de Manzoni: "Estou profundamente triste com a morte do nosso grande homem, mas não irei a Milão, porque não possuo o coração para assistir ao funeral. Irei em breve visitar o seu túmulo, sozinho e sem ser visto, e talvez (depois de reflectir mais e ter medido as minhas forças) propor alguma coisa para honrar a sua memória.".
Teria sido por essa altura que a possibilidade de compor um requiem teria surgido, e, com ela, o plano que ligaria para sempre a memória de Manzoni à de Rossini, o compositor mais reverenciado por Verdi, que havia falecido em 1868.
O sentimento de perda associado aqueles dois homens estaria na cabeça de Verdi desde a sua carta para a condessa Clarina Maffei, uma amiga comum com Manzoni: "Quando o outro como ele já não existir, o que é que nos sobra?", tendo Verdi sugerido a composição de uma Missa de Requiem para lembrar o primeiro aniversário da morte de Rossini.
Os momentos musicais desta missa deveriam ser escritos de forma independente por doze compositores italianos diferentes, sendo Verdi um deles, e sem qualquer tipo de pagamento, pelo que seria considerado como um tributo à memória do mestre. Apesar do entusiasmo inicial e da ampla divulgação, esta obra seria um fiasco (na realidade só viria a ser estreada a 11 de Setembro de 1988, por Helmuth Rilling, no Festival Europeu de Música de Estugarda), transformando-se o gesto nobre de Verdi numa humilhação pública, salvando-se apenas a contribuição do compositor, o magnífico Libera Me, que mais tarde serviria de ponto de partida, núcleo e conclusão deste seu Requiem para Manzoni.
Com efeito, esta experiência faria com que Verdi aprendesse a não fazer anúncios públicos prematuros e a não confiar na boa vontade dos outros. A 3 de Junho de 1873 escreveria de novo a Ricordi, propondo-lhe escrever um Requiem à memória de Manzoni, que seria apresentado no primeiro aniversário da morte do escritor, em Milão, a sua terra natal. Verdi oferecer-se-ia para dirigir esse concerto, mas pediria a Ricordi para obter o acordo do município de Milão para o pagamento dos músicos, tendo recebido uma resposta entusiástica. O Requiem de Verdi estrearia, assim, no dia 22 de Maio de 1874 na Igreja de S. Mateus, em Milão, sendo depois repetido por três vezes no La Scala com estrondoso sucesso.
Se, de repente, for perguntado a um comum ouvinte se este se lembra do Requiem de Verdi, a resposta mais certa será porventura uma evocação à terrível ferocidade do Dies Irae. Esta secção, presente no início da obra, a meio e no Libera me final, estaria já presente na missa de 1868, e Verdi, um homem conhecedor do teatro como ninguém, estaria consciente do seu poder dramático, suspeitando-se que o compositor teria introduzido uma secção completa deste Dies Irae logo ao início para causar um impacto máximo na sala; seguramente prodigioso na plateia letrada e desconcertante no balcão mais temerário a Deus, como só aquele fff subito em allegro agitato após o tranquilo Christie eleison a desvanecer-se, poderia provocar no sensível estômago humano.
Muito desta obra seria esculpido pelos hábitos operáticos do compositor. Os papeis dos solistas seriam traçados como o poderiam ser numa ópera, não apenas no caracter assumido de cada voz, mas também na apropriação de cada ária e na variedade dos conjuntos. Verdi possuiria o sentimento inato para o canto, usando as vertentes lírica e declamatória para contrastar, uma ressonância rica e a capacidade de nos emocionar pela beleza do timbre (aquele Requiem aeternam final como se o escutássemos às portas do Céu...) e estreita humanidade (aquele Hostias que nos aperta o coração...).
Talvez fosse por isso que este Requiem seria apupado de "operático", por quem se julgasse capaz de emitir uma opinião fundamentada, ou designado de "a sua maior ópera", por quem se sentisse particularmente espirituoso. Na verdade, a obra iria encontrar vários adversários. O célebre maestro Hans von Bülow condená-la-ia num artigo do Allgemeine Zeitung de 21 de Maio de 1874 (antes mesmo de ouvir qualquer nota, portanto...), referindo-se a Verdi como o "Átila da laringe", o Vaticano publicaria uma encíclica a banir este tipo de música para uso eclesiástico, enquanto os notáveis da música britânica alegavam que Verdi não havia escrito música religiosa, mas sim uma ópera com textos sagrados, que, neste caso, se dividiria em sete partes e vinte e uma secções, constituindo-se magnificamente pelo: Requiem e Kyrie (Requiem aeternam [1] e Kyrie Eleison [2]), Sequenza (Dies irae [3], Tuba mirum [4], Mors stupebit [5], Liber scriptus-Dies irae [6], Quid sum miser [7], Rex tremendae [8], Recordare [9], Ingemisco [10], Confutatis-Dies irae [11] e Lacrymosa [12]), Offertorio (Domine Jesu Christe [13] e Hostias [14]), Sanctus [15], Agnus dei [16], Lux aeterna [17] e Libera me (Libera me, Domine [18], Dies irae [19], Requiem aeternam [20] e Libera me, Domine [21]).
No entanto, ninguém poderia prever um melhor futuro para este Requiem. Todas as capitais europeias queriam ouvi-lo, de preferência dirigido pelo próprio compositor. As salas estavam sempre cheias, ou a abarrotar se por acaso se visualizasse Verdi no pódio, e assim continuaria até aos nossos dias, sendo hoje considerado um produto de um génio maduro, que utiliza todo o seu poder criativo e força emocional para, de forma inteligente, respeitar a mensagem e o valor do texto através dos mais fabulosos sons.
Hans von Bülow viria, mais tarde, a pedir-lhe perdão pelo infame acto jornalístico, tendo recebido um eloquente: "Para além disso, quem sabe? Talvez até tenha tido razão dessa vez!". A irreflectida peça de imprensa havia provocado tamanho estrilho, que até um outro génio da música haveria de sentir necessidade de estudar a partitura para si próprio. Johannes Brahms fá-lo-ia com seriedade, tendo chegado a uma singela conclusão: "Bülow errou e fez papel de tolo para todo o sempre. Um trabalho deste tipo só poderia ser escrito por um génio.". Mais uma vez de um lirismo taxativo, o nosso caro Brahms.
Para quem quiser duvidar, é só ouvir e repetir para comprovar.
Eu aposto que não se irão fartar.


Nuno Oliveira




"Messa da Requiem"


✨ Extractos que proponho para audição:
  • Luba Orgonasova, Anne Sofie von Otter, Luca Canonici, Alastair Miles
  • Orchestre Révolutionnaire et Romantique, Monteverdi Choir
  • John Eliot Gardiner
  • Philips, 442 142-2 PH2
"o belo": toda a obra (Expressividade a tender para o infinito numa interpretação em
                instrumentos de época próxima da perfeição. Solistas escolhidos a dedo,
                sonoridade rica e penetrante. Daqueles para levar para a ilha deserta.)
                     [1-2]: tutti, aos 0:00-2:15 e 3:43-5:29 ("o belo" mistério da passagem para a outra
                margem.) [youtube]
                [3]: tutti, aos 0:00-1:17 ("o belo" ícone que é esta ira de Deus e as...) [youtube]
                [4-5]: metais e coro, aos 0:00-1:40 (...fanfarras do apocalipse!) [youtube]
                [6]: [youtube]
                [7]: solistas e fagote, aos 0:00-3:41 ("o belo" lamento na voz, acompanhado pela
                suave bondade de uma palheta dupla.) [youtube]
                [8]: [youtube], [9]: [youtube]
                [10]: tenor e oboé, aos 0:00-3:20 (Súplica na voz e na madeira.) [youtube]
                [11]: tutti, aos 3:31-4:19 ("o belo" ícone que é esta ira de Deus: meio.) [youtube]
                [12]: solistas, aos 0:00-5:43 (Quarteto em oração.) [youtube]
                [13-14]: tenor e baixo, aos 4:26-5:56 e 6:21-6:46 ("o belo" registado numas
                Hostias que nos alimentam a alma, mas apertam o coração.) [youtube]
                [15]: [youtube],[16]: [youtube], [17]: [youtube]
                [18-21]: soprano e fagotes, aos 1:01-2:22 (Agitação e mistérios, com um
                cheirinho ao Hogwarts britânico a pairar no ar); tutti, aos 2:23-4:00 ("o belo"
                ícone que é esta ira de Deus: fim.); soprano, aos 4:40-7:51 ("o belo" que se escuta
                às portas do céu.); soprano e tutti, aos 11:45-12:08 (Fúria divina e suspensão
                estratosférica![youtube]





  • Angela Gheorghiu, Daniela Barcellona, Roberto Alagna, Julian Konstantinov
  • Berliner Philharmoniker, Swedish Radio Chorus, Orfeón Donostiarra
  • Claudio Abbado
  • EMI, 7243 5 57168 2 8
"o belo": (Sonoridade gigante ao vivo, com um início a mostrar imediatamente a visão
                 magnética do mestre Abbado. Solistas de eleição, coro fresco e cristalino. Um
                 registo fabuloso e simplesmente imperdível.)
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  • Susan Dunn, Diane Curry, Jerry Hadley, Paul Plishka
  • Atlanta Symphony Orchestra & Chorus
  • Robert Shaw
  • Telarc, CD-80152
"o belo": (Interpretação viva, com destaque para a luminosidade coral e a excelência
                 dos solistas. O som orquestral poderá ser menos exuberante, mas o coro é uno
                 e único. Uma magnífica escolha, também a não perder.)
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  • Michèle Crider, Markella Hatziano, Gabriel Sadé, Robert Lloyd
  • London Symphony Orchestra & Chorus
  • Richard Hickox
  • EMI, CDC 5 56563 2
"o belo": (Registo intenso e pormenorizado, com um início arrepiante. Metais perfurantes
                 e solistas de grande qualidade, com timbres um pouco diferentes do habitual,
                 nomeadamente o do baixo. A sonoridade global é luxuriante, como se fosse
                 gravada no próprio céu. Estupenda opção.)
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  • Joan Sutherland, Marilyn Horne, Luciano Pavarotti, Martti Talvela
  • Wiener Philharmoniker, Wiener Staatsopernchor
  • Georg Solti
  • Decca, 411 944-2 DH2
"o belo": (Interpretação electrizante e com uma sonoridade brilhante. Destaque para a
                 acutilância dos metais, a providenciar Um Dies irae e Tuba mirum épicos, e
                 para a fragilidade e espiritualidade da voz de Pavarotti num Hostias de ir às
                 lágrimas. Uma fantástica escolha também.)
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  • Cheryl Studer, Marjana Lipovsek, José Carreras, Ruggero Raimondi
  • Wiener Philharmoniker, Konzertvereinigung Wiener Staatsopernchor
  • Claudio Abbado
  • Deutsche Grammophon, 435 884-2 GH2
"o belo": (Um registo ao vivo, tenso, com o poder sonoro e a majestosidade interpretativa
                 de mãos dadas. Metais redondos, a tuba está nos seus "Dies iraes". Coro e solistas
                 expressivos, com Studer a nos oferecer um Requiem aeternam realmente divino.
                 Uma gravação de excelência, e seguramente a favorita de muitos ouvintes.)
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  • Cheryl Studer, Dolora Zajic, Luciano Pavarotti, Samuel Ramey
  • Coro & Orchestra del Teatro Alla Scala, Milano
  • Riccardo Muti
  • EMI, CDS 7 49390 2
"o belo": (A visão operática de Muti gravada ao vivo no Teatro Alla Scala. Massa sonora
                 aberta e poderosa, com forte impacto coral. Extraordinário grupo de solistas,
                 bem visível num Hostias com elevada carga emocional. Uma opção de qualidade
                 a ter em conta também.)
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  • Renée Fleming, Olga Borodina, Andrea Bocelli, Ildebrando d'Arcangelo
  • Kirov Orchestra & Chorus, Mariinsky Theatre, St. Petersburg
  • Valery Gergiev
  • Philips, 289 468 079-2 PH2
"o belo": (Interpretação direta e teatral, com uma sonoridade atmosférica e reverberante.
                 Provavelmente o mais electrizante Dies irae e Tuba mirum que existe. Fleming
                 sublime no Libera me, o começo da Lacrymosa com Borodina é outra loiça.
                 Uma escolha sofisticada e luxuriante.)
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✰ Outras sugestões:
  • Sharon Sweet/Florence Quivar/Vinson Cole/Simon Estes/Carlo Maria Giulini/Berliner Philharmoniker/Ernst-Senff-Chor/Deutsche Grammophon, 423 674-2 GH2 (Sonoridade calorosa a baixa rotação. Coro poderoso e solistas expressivos, com timbres marcantes. Uma interpretação diferente do habitual para descobrir), [1-2] [youtube], [3] [youtube], [4] [youtube], [7] [youtube], [11] [youtube], [13-14] [youtube], [18-21] [youtube]




  • Alessandra Marc/Waltraud Meier/Placido Domingo/Ferruccio Furlanetto/Daniel Barenboim/Chicago Symphony Orchestra & Chorus/Erato, 4509-96357-2 (Interpretação polida e sonoridade calorosa, com contrastes menos vincados. Boa opção.), [1-2] [youtube], [3] [youtube], [4] [youtube], [7] [youtube], [11] [youtube], [13-14] [youtube], [18-21] [youtube]




  • Anna Tomowa-Sintow/Agnes Baltsa/José Carreras/José van Dam/Herbert von Karajan/Wiener Philharmoniker/Konzertvereinigung Wiener Staatsopernchor/Chor der Nationaloper Sofia/Deutsche Grammophon, 415 091-2 GH2 (Interpretação operática e algumas idiossincrasias que parecem provocar desequilíbrio nas dinâmicas. O bombo do primeiro Dies irae poderia ser um pouco menos contrastante e o timbre melhor escolhido. Bom naipe de solistas.), [1-2] [youtube], [3] [youtube], [4-5] [youtube], [7] [youtube], [11] [youtube], [13-14] [youtube], [18-21] [youtube]






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Giuseppe Verdi (sentado, ao centro) rodeado de familiares e amigos [Sant'Agata, 1900]




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A preparação para a prova vínica...

Da esq. para a dir.: Tiago, João Nuno, Paulo, João, Nuno, André (em pé), Ivo e Rui [Folhadal, Nelas, 07-09-2024]




... e alguns momentos proporcionados por "Jovens Enólogos do Dão"







Vinhos da prova "Jovens Enólogos do Dão" [Feira do Vinho do Dão, Nelas, 07-09-2024]

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domingo, 7 de julho de 2024


87. Prokofiev: Pedro e o lobo |


O "Pedro e o Lobo" de Sergei Prokofiev e os reflexos sonoros das circunstâncias, na vida dum artista.






Para os que enganam o infortúnio.






A história sussurra-nos ao ouvido que nem toda a música erudita haveria de ser composta da forma mais ou menos séria e para o consumo de um público mais ou menos adulto. Houve alturas em que as circunstâncias da vida dos compositores haveriam de definir o rumo mais ou menos intelectual ou inovador das suas criações, umas vezes privilegiando-se a vontade do outro à vontade do próprio, outras vezes preterindo-se o gosto individual em favor do gosto colectivo.
O Pedro e o Lobo de Sergei Prokofiev (1891-1953) seria porventura um desses casos, uma testemunha da passagem da procura, quase insana, do progresso e da novidade artística, para a satisfação com a tradição bem conhecida de todos os camaradas.
Depois de quase vinte anos vividos maioritariamente entre São Francisco e Paris, Prokofiev tomaria a decisão de retornar definitivamente à Rússia, alegadamente devido às saudades que sentiria do seu país. Juntamente com a família, Sergei reiniciaria a vida em Moscovo em 1936, apenas para sofrer uma perseguição política que o faria repensar a atitude perante tais, claro está, circunstâncias.
Depois da condenação oficial da sua ópera Lady MacBeth de Minsk e do falhanço na apresentação de uma produção de sucesso do seu bailado Romeu e Julieta, Prokofiev jogaria agora pelo seguro, compondo uma série de pequenas peças de sedução fácil, muitas delas destinadas ao público infantil. Naquelas circunstâncias, seria prudente fazer-se de morto, evitando-se, assim, uma eventual escalada de acontecimentos que fizesse mudar o modo verbal. Com efeito, o contrário da velha máxima popular lusa imperaria aqui: certamente que seria melhor parecê-lo do que (possivelmente) sê-lo.
Este nosso "conto musical para crianças", como Sergei dizia, nasceria a partir daqui.
O repto à criação chegaria de Natalia Satz, a directora do Teatro Infantil de Moscovo nesse ano de 1936. O teatro ter-se-ia mudado para as suas novas instalações em Março, e a ideia da directora era comemorá-lo com uma "história de encantar sinfónica" que pudesse apresentar os vários instrumentos da orquestra às crianças, tendo proposto esse desafio ao compositor.
O Teatro Infantil de Moscovo era já um velho conhecido de Prokofiev. Produzia óperas, concertos e bailados para crianças, muitos deles interpretados por crianças também, tendo o compositor, inclusivamente, já ali apresentado algumas das suas canções por diversas ocasiões.
As circunstâncias e o lugar familiar acenariam de forma positiva ao desafio proposto, e o resultado seria assim este Pedro e o Lobo. A vertente didática era obrigatória, pelo que a conclusão passaria por encontrar imagens na narrativa que pudessem ser facilmente identificáveis com cada um dos instrumentos: "E que tal uma flauta para um passarinho?", sugeria ela; "Completamente, camarada!", concordaria ele...
As "trocas de impressões" levariam ainda à escolha de um oboé para um pato, de um clarinete para um gato, de um trio de trompas para um lobo, da percussão para uns tiros de espingarda e de um fagote para um avô. Já o casting para o protagonista da história viria a resultar num quarteto de cordas, entendendo-se que o Pedro, como ser humano que era, "haveria de ter mais facetas no seu carácter". Curiosamente, as sempre existentes falhas (de carácter) não teriam aqui voto na matéria, e muito bem, pois como podemos observar no final da história, a intenção de fazer usufruir do jardim zoológico preterindo o céu dos animais, seria a mais humana e acertada.
Por outro lado, Prokofiev considerava que a história era importante apenas como meio de persuadir os mais novos a ouvir a música, e que as palavras e os personagens deveriam ajudar os ouvintes a compreenderem a música e não a separá-los dela. Nesse sentido, o compositor "decidiria" rejeitar o uso da narrativa em verso "sugerida" inicialmente, para escrever, ele próprio, o texto da história. O enredo, que seria desenhado para ser arrepiante e atrair a atenção dos mais pequenos, apresentar-se-ia mais ou menos assim:



"Cada personagem desta história é representado por um instrumento da orquestra:
Pedro, pelo quarteto de cordas.
O pássaro, por uma flauta.
O pato, pelo oboé.
O gato, pelo clarinete.
O avô de Pedro, pelo fagote.
O lobo, por três trompas.
Os tiros dos caçadores, pelos instrumentos de percussão.

Deste modo, todos poderão distinguir a sonoridade de cada instrumento durante a narração desta história.

Uma manhã, bem cedo, Pedro abriu o portão do jardim e toca a passear pelos grandes campos verdes.
No ramo de uma árvore estava empoleirado um passarinho, amigo de Pedro.
– Está tudo tão calmo. - chilreou divertido o passarinho.
E eis que bamboleando apareceu um pato. O pato estava todo contente porque Pedro tinha-se esquecido de fechar o portão, e assim ele pôde tomar um belo banho no pequeno, mas profundo lago.
Ao ver o pato, o passarinho resolveu voar para a relva e foi pousar junto dele, encolhendo os ombros.
– Se não sabes voar, que espécie de pássaro és tu?
E o pato respondeu-lhe:
– E tu, se não sabes nadar, que espécie de pássaro és tu? – e depois de dizer isto, deu um mergulho no pequeno lago.
Discutiram e voltaram a discutir. O pato a nadar no lago e o passarinho a saltitar na margem.
Subitamente algo despertou a atenção de Pedro. Era um gato que rastejava entre a relva.
O gato pensou:
– O passarinho está tão entretido com a discussão que vou apanhá-lo – com as suas patas de veludo foi-se aproximando, muito sorrateiramente.
– Cuidado! – gritou o Pedro. E o passarinho voou imediatamente para cima da árvore; enquanto o pato grasnava muito zangado para o gato, mas de dentro do lago.
O gato deu uma volta à árvore e pôs-se a pensar:
- Valerá a pena eu trepar até tão alto. Quando lá chegasse já o pássaro teria voado para bem longe.
Aparece o avô de Pedro, que está muito zangado com ele por ter ido para o campo.
– É um lugar perigoso. O que farias se te aparecesse aqui um lobo?
Mas Pedro não prestou nenhuma atenção às palavras do seu avô. Oh, rapazes como ele não têm medo nenhum dos lobos.
Mas o avô pegou na mão de Pedro, fechou o portão do jardim e levou-o para casa.
Mal Pedro tinha partido, apareceu saído da floresta um enorme lobo cinzento.
Num abrir e fechar de olhos, o gato trepou para a árvore.
O pato grasnava, e no meio de tanta confusão, atarantado, saltou para a margem do lago.
Mas por mais que corresse, não conseguia livrar-se do lobo. O lobo aproximava-se, aproximava-se, cada vez mais próximo!
E então apanhou o pobre pato, e de um só trago, engoliu-o.
Neste momento a situação é esta:
O gato sentado num ramo da árvore.
O passarinho noutro, mas não muito perto do gato.
E o lobo dando voltas à árvore e lançando-lhes um olhar voraz.
Entretanto, por detrás do portão do jardim, Pedro, sem qualquer medo, observava toda esta cena.
Correu para dentro de casa, pegou numa corda muito forte e saltou para cima do muro de pedra que era muito alto.
Um dos ramos da árvore que o lobo rondava, estendia-se para cima do muro.
Pedro agarrou-se ao ramo, e agilmente trepou para o cimo da árvore.
Pedro, virando-se para o pássaro disse:
– Voa lá para baixo e dá a volta em torno da cabeça do lobo. Mas tem cuidado senão ele apanha-te.
As asas do pássaro quase que tocavam na cabeça do lobo, que estava furioso, dando dentadas para a esquerda e para a direita.
O pássaro não parava de irritar o lobo, e o lobo mortinho por apanhá-lo. Mas o pássaro era bem mais esperto, e o lobo não tinha outro remédio se não ficar cada vez mais irritado.
Entretanto, Pedro fez um laço com a corda, e com muito cuidado fê-la descer.
Apanhou o lobo pela cauda e puxou a corda com toda a força que tinha.
Sentindo-se apanhado, o lobo começou a dar grandes pulos para ver se conseguia libertar-se, mas o Pedro atou a outra ponta da corda à árvore... e os pinotes do lobo só faziam com que a corda lhe apertasse ainda mais a cauda.
Precisamente nesta altura... os caçadores saíram da floresta. Vinham na pista do lobo enquanto davam tiros.
Mas Pedro, empoleirado em cima da árvore gritou-lhes:
– Não disparem! Eu e o passarinho apanhámos o lobo. E agora ajudem-nos a levá-lo para o jardim zoológico.
Façam uma pequena ideia do cortejo triunfal!
O Pedro ia à frente.
E logo a seguir, iam os caçadores com o lobo.
E sabem quem ia a fechar o cortejo? Era o avô e o gato.
O avô abanava descontente a cabeça, enquanto pensava com os seus botões:
– Se o Pedro não tivesse apanhado o lobo... Que teria acontecido?
Por cima deles voava o passarinho, que chilreava:
– Vejam como eu e o Pedro fomos corajosos! Vejam o que nós apanhámos!
E agora, se escutarem com muita, muita atenção, ainda conseguem ouvir o pato a grasnar dentro da barriga do lobo. É que o lobo, com aquela pressa toda, tinha engolido o pobre pato... vivo."



A obra ficaria concluída num espaço de duas semanas e seria estreada a 2 de Maio de 1936, numa tarde de concerto da Sociedade Filarmónica de Moscovo.
Segundo relatos do próprio compositor, esta apresentação não teria sido boa e a obra atrairia poucos comentários. Seriam necessários três dias e uma nova apresentação, neste caso no Teatro Infantil, para que a mesma provasse o seu sucesso e a sua popularidade se espalhasse rapidamente. Gravações discográficas haveriam de ser feitas, companhias de dança dançá-la-iam, teatros de marionetas levá-la-iam à cena e até o próprio Walt Disney haveria de fazer o filme Pedro e o Lobo uma década depois.
Poucos dias após a estreia, Prokofiev, o famoso "compositor das crianças", seria contactado pelo Comissário Soviético das Provisões, Anastas Mikoyan, com uma proposta inesperada: "Quererá o camarada participar num programa inovador de popularização de canções infantis, poemas e contos de fadas, através da escrita de uma pequena melodia a ser impressa nos embrulhos coloridos dos chocolates, brinquedos e guloseimas?".
O camarada Prokofiev ainda desconfiaria, mas seria por pouco tempo. As circunstâncias pareciam mudar, e o acordo chegou logo depois com a percepção de que a sua nova canção iria embrulhar a marca de chocolates que ainda recordava daquela infância feliz, passada longe dali, na sua Sontsovka ucraniana. Aqueles eram os seus favoritos, mas, se calhar, as circunstâncias também seriam outras.


Nuno Oliveira




"Pedro e o lobo, op. 67"


✨ Extractos que proponho para audição: (ver também publicações nº 19, 56 e 79)
  • John Gielgud
  • Academy of London
  • Richard Stamp
  • Virgin, VC 7 90786-2
"o belo": toda a obra (Sonoridade atmosférica e detalhada. Interpretação impetuosa, com
                solistas de excelência e a voz teatral de Sir Gielgud que dá gosto escutar. Uma
                gravação equilibrada, adequada para todos, sejam eles mais ou menos novos.)
                    [I-IX]: narrador, aos 0:00-28:21 (A voz que prende o ouvido do princípio ao fim
                da história.); cordas, aos 2:06-2:58 e 10:10-10:34 (Jovem primavera.); flauta, aos
                3:10-3:40 (Dar asas ao imaginário infantil.); narrador e flauta, aos 7:53-8:05
                (O pulo da criança assustada em cada ouvinte.); trompas, aos 11:22-12:40 (Trio de
                predadores.); tutti, aos 21:23-22:50 (Amigos da marcha.) [youtube]






  • Edna Everage
  • Melbourne Symphony Orchestra
  • John Lanchbery
  • Naxos, 8.554170
"o belo": (Sons instrumentais que descrevem bem os seus inquilinos e uma narrativa
                popular que ajuda as crianças a entrarem no mundo da música clássica.
                Dame Edna faz lembrar a maneira de contar da nossa avó. Um dos registos
                favoritos dos mais novos.)
                [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube], [V] [youtube],
                [VI] [youtube], [VII] [youtube], [VIII] [youtube], [IX] [youtube]










  • Christopher Lee
  • English String Orchestra
  • Yehudi Menuhin
  • Nimbus, NI 5192
"o belo": (Flautas vivíssimas, oboé doméstico, clarinete furtivo, fagote preocupado com
                as cordas joviais, trompas ferozes e a voz marcante de "Saruman". Uma leitura
                fluida e irresistível para os menos novos.)
                [I-IX] [youtube]









  • Romy Schneider
  • Philharmonia Orchestra
  • Herbert von Karajan
  • EMI, CDZ 25 2201 2
"o belo": (A majestosidade do mestre e a voz entusiástica de uma jovem de dezoito anos
                que até parece que testemunhou os acontecimentos na primeira pessoa. Não
                costuma ser-me fácil sentir a frescura em língua alemã. Com Romy eu sinto-a.)
                [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube], [V] [youtube],
                [VI] [youtube], [VII] [youtube], [VIII] [youtube], [IX] [youtube]










  • Marius Müller-Westernhagen
  • Orchestre de L'Opéra de Lyon
  • Kent Nagano
  • Erato, 4509-91733-2
"o belo": (Interpretação orquestral apelativa, com pormenores deliciosos na visão
                individual do mestre Nagano. Narrativa para adultos, a fazer lembrar uma
                homilia sagrada alemã. Um registo diferente para descobrir.)
                [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube], [V] [youtube],
                [VI] [youtube], [VII] [youtube], [VIII] [youtube], [IX] [youtube]
                [X] [youtube], [XI] [youtube], [XII] [youtube]










  • André Previn
  • Royal Philharmonic Orchestra
  • André Previn
  • Telarc, CD-80126
"o belo": (Sonoridade rica e sumptuosa, cordas suaves e metais polidos, com detalhes
                que chamam à atenção. É pena a narrativa monocórdica e menos colorida,
                mais do género documental do que de um "era uma vez". Gravação de qualidade,
                virada para os que preferem o canal National Geographic ao canal Panda.)
                [I] [youtube], [II-IX] [youtube]










   
✰ Outras sugestões:
  • Eunice Munõz/Álvaro Cassuto/Nova Filarmonia Portuguesa/Movieplay, 3-11013 (Som frágil nas cordas e metais, cristalino nas madeiras e a voz inconfundível de Eunice Munõz, numa maravilhosa "hora do conto" para as crianças que falam português.), [I-IX] [youtube]









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    Família Prokofiev. Da esq. para a dir.: Sergei, Sviatoslav, Oleg e Lina [Moscovo, 1936]





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    A Dissimulação também faz parte do ADN felino

    Colecção Joan Miró, Casa de Serralves [Fundação de Serralves, Porto, 28-10-2016]


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    quarta-feira, 1 de maio de 2024


    86. Berlioz: Sinfonia Fantástica |


    A "Symphonie Fantastique" de Hector Berlioz, "l'esprit d'avant-garde" francês.






    Para a "Citroën de Mangualde".
    Pelos 25 anos de uma história em comum, apaixonante e desafiante como esta Fantástica francesa.






    Assim como me é quase automática a nomeação do legado de André Citroën como "l'esprit d'avant-garde" da indústria automóvel francesa (embora os que nunca ouviram falar de um Boca de Sapo ou de um 2 Cavalos sejam livres de contestar esta afirmação), também a escolha da "Sinfonia Fantástica, op. 14, Episódio da vida de um artista", de Hector Berlioz (1803-1869), para a obra musical que melhor pudesse representar o pico da irreverência romântica francesa, poder-se-á comparar a um acto reflexo (artístico) da minha parte.
    Berlioz partiria aos dezassete anos de La Côte-Saint-André para Paris, com o objectivo de estudar medicina e, deste modo, continuar o legado familiar. O seu pai Louis, que era doutor, fazia gosto que o filho pudesse compreender as noções de acupunctura pelas quais era um conhecido apaixonado, enquanto que o filho, Hector, haveria de preferir a frequência do Conservatoire e da Òpera de Paris à da École de Médicine e do Hôpital de la Pitié, realidade essa que, depois de conhecida em La Côte-Saint-André, provocar-lhe-ia alguns amargos de boca e reduções na mesada, uma precaridade que só viria a ser recomposta em 1828, após ter finalmente alcançado algum reconhecimento com a atribuição do segundo lugar no Prémio de Roma, depois de duas tentativas falhadas. Há terceira teria sido de vez, como diz a regra popular, mas seguramente que a sua determinação, dedicação e paixão pela composição, presentes na sua vida desde o fascínio com a revelação em criança da música de Gluck, muito terão contribuído também para essa "sorte" (que em 1830 se viria ainda a reflectir na obtenção do primeiro prémio naquele conceituado concurso).
    O ponto alto da programação de 1827 do Théâtre de l'Odéon, seria a temporada das obras de Shakespeare representadas por uma companhia de teatro inglesa. A curiosidade ter-se-ia alastrado por Paris, tendo um grupo de jovens românticos ocorrido ao Odéon na expectativa de descobrir para onde recairíam as suas próprias inclinações, após experimentarem o que o genial inglês lhes teria para oferecer. Nesse grupo estariam, entre outros, a futura tríade do romantismo francês, composta por Victor Hugo, Engène Delacroix e Hector Berlioz, o dia seria o 11 de Setembro e a peça seria o Hamlet, com o papel de Ophelia a ser representado pela actriz irlandesa Harriet Smithson.
    O espírito do romantismo teria seguramente baixado em Berlioz nessa noite, tendo o compositor ficado irremediavelmente (para não dizer obsessivamente) apaixonado pela actriz e refém do amor que o iria inspirar a escrever, entre 1829 e 1830, a sua famosa Sinfonia Fantástica.
    Berlioz já seria conhecedor da obra de Beethoven por essa altura (teria ouvido as suas terceira, quinta, sexta e sétima sinfonias, em concertos da Societé des Concerts du Conservatoire) e embora a música do compositor alemão tivesse chegado como uma revelação para os jovens românticos parisienses da era pós-napoleónica, a sua maior influência teria sido no encorajamento à inovação orquestral, na experimentação de narrativas intencionais e na procura de novas cores e texturas sonoras (embora também se possa eventualmente apontar a Pastorale de Beethoven como um bom exemplo para esta Fantástica, com os seus também cinco andamentos a expressar, de igual modo, a paixão humana e a glória da natureza).
    O compositor rejeitaria, assim, a forma tradicional da sinfonia a favor de uma sequência autobiográfica dramática em cinco quadros, que traçaria a progressão do herói (ele próprio) de uma época de ternura até ao declínio final, fazendo-se acompanhar ao longo da obra por um tema repetitivo que o compositor chamaria de "idée fixe". Seria a primeira vez que um compositor se autorretrataria através do seu trabalho, com a amada, representada pela "idée fixe", a ser, claro está, a fria actriz irlandesa, que durante todos aqueles anos se havia recusado a receber o apaixonado Hector (uma recusa entretanto suavizada pelo amparo da jovem pianista Camille Moke, que a seguir o deixaria para passar a chamar-se Camille Pleyel, esposa do renomado fabricante de pianos com esse apelido... conta-se que terá havido intenções de duelo, assassinatos e eventual suicídio), mas que aceitaria casar com ele a 3 de Outubro de 1833, para logo se separar em 1841 após um relacionamento desastroso, levado por sentimentos de inveja e ciúmes da fama do compositor (um desastre entretanto minimizado pelo afago da cantora Marie Recio, que o acompanharia por toda a Europa e com quem voltaria a acreditar no sacramento do matrimónio em 1854...). Há episódios na vida de um "artista" que são mesmo assim...
    Nos dois primeiros anos após aquela récita de Hamlet, a paixão do compositor francês mantinha-se forte (louca até) enquanto a da actriz irlandesa se mostrava indiferente, demonstrando que a suposta intuição feminina ainda teria funcionado por algum tempo. As terríveis reacções aos seus avanços levá-lo-iam ao desespero (daí o "louca até"), como podemos perceber pelas palavras que escreveria a um amigo após a partida de Harriet de Paris: "Ela está em Londres e mesmo assim eu sinto-a à minha volta. Sinto o coração a saltar e o seu bater parecem as pancadas do êmbolo de um motor a vapor. Cada músculo do meu corpo treme de dor. Inútil! Assustador!". Palavras que o comum dos mortais poderia perfeitamente compreender e o André Citroën perfeitamente exemplificar.
    Assim, é fácil prever que este estado febril por um amor inacessível originasse todo o drama colocado nesta Sinfonia Fantástica, com a volumosa orquestra a tornar-se o palco e os diferentes temas musicais as personagens, com cada um dos seus humores a serem caracterizados pelos diferentes timbres e dinâmicas instrumentais do mais variado que alguém poderia imaginar em Paris... à excepção de Hector Berlioz. De facto, apesar das incoerências técnicas da partitura que haveriam de ofender os mais puristas, a sua originalidade e espírito inovador seriam reconhecidos e esta Sinfonia Fantástica passaria rapidamente a ser considerada o símbolo sonoro do romantismo francês.
    A obra estrearia a 5 de Dezembro de 1830, em Paris, com direcção de François-Antoine Habeneck (o maestro que já anteriormente lhe havia proporcionado escutar as sinfonias de Beethoven), sendo acompanhada por um programa autobiográfico escrito pelo próprio compositor, que focaria mais ou menos isto: Rêveries - Passions [I], um jovem músico, dotado de uma imaginação fértil, conhece a mulher dos seus sonhos e é constantemente assolado por pensamentos sobre ela, a "idée fixe" (flautas e violinos) surge pela primeira vez no Allegro, enquanto o artista se vê submetido a correntes de ternura, paixão, ciúmes, fúria e medo; Un bal [II], o artista encontra-se num baile parisiense, o ambiente é elegante, com candeeiros de cristal e dançarinos rodopiantes, "ela (?!)" (oboé e flauta) aparece e desaparece por duas vezes entre os pares; Scéne aux champs [III], após grande agitação, o jovem encontra a esperança e acredita que os seus sentimentos serão correspondidos, ouve no campo a melodia tocada por dois pastores (oboé e corne inglês) que recolhem uma manada de gado, isto fá-lo mergulhar num sono reconfortante, voltando a escutar-se a "idée fixe", mas a dúvida assalta-o novamente, permanecendo depois o silêncio; Marche au supplice [IV], rejeitado pela mulher que ama, o artista tenta cometer suicídio através do consumo de ópio, mas a dose é insuficiente, fazendo-o, por sua vez, mergulhar num sonho alucinante, ele sonha que mata aquela que ama, que é sentenciado à morte e que testemunha a sua própria execução, no último momento volta a vê-"la", mas a sua imagem é cortada violentamente pela lâmina fatal; Songe d'une nuit de Sabbat [V], o artista vê-se no meio de um sabbat de bruxas, rodeado de espectros e monstros de todo o tipo reunidos para o seu funeral, a sua amada junta-se depois à "festa" e com ela a sua melodia, que deixa de ser nobre e graciosa para se transformar numa canção grotesca, o clímax da imaginação delirante de Berlioz chega depois com os sinos fúnebres a soarem no Dies Irae (do juízo) final.
    Apesar de ter sido bem recebida, esta obra só alcançaria definitivamente o reconhecimento com a excelente crítica de Robert Schumann no jornal alemão Neue Zeitschrift für Musik e a transcrição para piano de Franz Liszt. Nada mais apropriado, pois, que uma alma atormentada e um ilusionista (do piano) para celebrar esta música única. Nada mais esperado, também, que a defesa do resultado sonoro (um deles...) de um amor julgado impossível, partisse do sofredor mor do romantismo europeu e da testemunha do seu casamento com a belíssima Harriet Smithson, aquela menina de olhos negros, cheveux doux... and heart of stone.


    Nuno Oliveira




    "Sinfonia fantástica, op. 14, Episódio da vida de um artista"


    ✨ Extractos que proponho para audição: (ver também publicação nº 83)
    • San Francisco Symphony
    • Michael Tilson Thomas
    • RCA, BG2 68930
    "o belo": toda a obra, principalmente o primeiro e último andamento (O registo memorável
                    do mestre Tilson Thomas que seguramente ficará para a história. Som glorioso,
                    alucinante, selvagem. Orquestra virtuosa e interpretação simplesmente imbatível.
                    Este é um dos poucos luxos que se podem adquirir por pouco dinheiro.)
                        [I]: tutti, aos 0:00-4:28 (Lição de expressividade no seio d"o belo".) e 9:38-10:14
                    (Lição de métrica na ordem dentro do caos.) [youtube]
                    [II]: tutti, aos 0:00-... (Dança para fadas ou para outros seres mágicos que gostem
                    de dar ao pé.) [youtube]
                    [III]: tutti, aos 0:00-... (O virtuosismo instrumental que expressa a serenidade
                    natural.) [youtube]
                    [IV]: tutti e fagote, aos 0:00-... (Mistério e brilhos de archote... perdão, fagote.);
                    tutti, aos 4:41-... (Poderoso suplício (o contrário é que não poderia ser).[youtube]
                    [V]: tutti, aos 0:00-...; flautas, aos 0:26 e 1:08; clarinete, aos 1:24 e 1:43; fagote, aos
                    1:51; metais, aos 1:31, 2:28, 5:46, 7:40, 8:37 e 9:00; sinos, aos 2:48; oficleide, aos
                    3:12 e cordas, aos 8:07 (O caso em que o pecado é "o belo". No ouvinte o sonho é
                    alucinante e de São Francisco a realidade até parece virtual.[youtube]






    • Royal Concertgebouw Orchestra
    • Colin Davis
    • Philips, 454 530-2
    "o belo": (A gravação que dominou o catálogo durante décadas. Sonoridade sumptuosa e
                     interpretação excitante. Inesquecível embalo maternal no primeiro andamento e
                     um Dies irae de fazer tremer no último. Um registo lendário e a referência para
                     muitos admiradores desta obra.)
                     [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube], [V] [youtube]






    • Orchestre de l'Opéra Bastille
    • Myung-Whun Chung
    • Deutsche Grammophon, 445 878-2 GH
    "o belo": (A proposta dos nativos franceses assente numa acústica penetrante, a chegar
                     perto da overdose fatal. Rotação elevada e expressividade com vários graus de
                     liberdade. Sinos majestosos. Os trompetes estalam, mas a loucura juvenil é
                     mesmo assim: nua e crua. Escolha de excelência.)
                     [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube], [V] [youtube]






    • Orchestre Symphonique de Montréal
    • Charles Dutoit
    • Decca, 414 203-2 DH
    "o belo": (Destaque para a expressividade inesquecível aos primeiros compassos e a
                     ferocidade do último andamento. Sonoridade orquestral luxuriante, embora
                     a escolha dos sinos pudesse ter sido mais bem pensada. Não há amor perfeito,
                     mas este chega lá perto.)
                     [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube], [V] [youtube]






    • The London Philharmonic
    • Zubin Mehta
    • Teldec, 4509-90855-2
    "o belo": (Extraordinário primeiro andamento, com um início delicado, para logo
                    depois nos oferecer um romantismo arrebatador. Sinos grandiosos e percussão
                    bem marcada. Metais majestosos, com uma sonoridade polida e acolhedora.
                    Uma escolha espectacular para os que gostam de espectacularidade.)
                    [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube], [V] [youtube]






    • Radio-Sinfonieorchester Stuttgart des SWR
    • Roger Norrington
    • Hänssler, CD 93.103
    "o belo": (Gravação ao vivo de um concerto que bem poderia ter soado como o da
                    estreia da obra. Registo muito interessante, com a sonoridade natural típica
                    dos instrumentos de época e a interpretação viva e excitante a merecerem
                    destaque. Uma escolha de eleição para quem valoriza a diferença e sonoridades
                    mais antigas. Eu adoro.)
                    [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube], [V] [youtube]






    • Orchestre de Paris
    • Semyon Bychkov
    • Philips, 438-939-2 PH
    "o belo": (Início suave e emotivo, sonoridade orquestral aconchegante, metais redondos
                    e final estonteante. Um registo equilibrado, de que poucos falam. Aqui fica a
                    proposta para a sua descoberta.)
                    [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube], [V] [youtube]






    • Royal Philharmonic Orchestra
    • Enrique Bátiz
    • ASQ, CD DCA 590
    "o belo": (Interpretação calorosa e sonoridade bem equilibrada, com um início sedutor
                    e um final intenso. Madeiras persuasivas e metais poderosos a arriscar tropeçar.
                    Uma magnífica opção a ter em conta também.)
                    [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube], [V] [youtube]






    • Orchestre du Capitole de Toulouse
    • Michel Plasson
    • EMI, CDC 7 54010 2
    "o belo": (Registo de autor, com o mestre Plasson a demonstrar o profundo conhecimento
                    da obra e algumas idiossincrasias, como os glissandos das cordas no segundo
                    andamento. Início delicioso, com pianíssimos refinados e a sonoridade gulosa
                    das madeiras. Os metais poderão ser menos exuberantes, mas o esforço global
                    da equipa vale bem a pena.)
                    [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube], [V] [youtube]






    • New York Philharmonic Orchestra
    • Zubin Mehta
    • Decca, 400 046-2 DH
    "o belo": (Leitura directa e honesta do mestre Mehta, com destaque para a performance
                    brilhante e sonoridade exuberante da orquestra norte-americana. Cordas e
                    madeiras de eleição, fabuloso timbre dos sinos. Excelente escolha também.)
                    [I-V] [youtube]






    • The Philadelphia Orchestra
    • Riccardo Muti
    • EMI, D 154244
    "o belo": (Tensão interpretativa e performance orquestral irrepreensível. A temperatura e
                    o timbre poderão não ser para todos, mas a "vida do artista" está bem presente.)
                    [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube], [V] [youtube]






       
    ✰ Outras sugestões:
    • Roger Norrington/The London Classical Players/EMI, D 120760 (A sonoridade fina dos instrumentos de época, numa interpretação umas vezes viva, outra vezes recatada, sem lugar para excessos românticos. Para descobrir.), [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube], [V] [youtube]




    • Pierre Boulez/The Cleveland Orchestra/Deutsche Grammophon, 453 432-2 GH (A preferência da racionalidade à excentricidade na visão do mestre Boulez. O casamento do romantismo com a precisão só poderia dar um resultado diferente, mas a qualidade está lá.), [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube], [V] [youtube]
















    • Colin Davis/Wiener Philharmoniker/Philips, 432 151-2 PH (Registo que privilegia a poesia e o lirismo, pelo que os que o preferem ficarão felizes. Para mim, faltará talvez um pouco mais de loucura e uma escolha dos sinos mais feliz.), [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube], [V] [youtube]




    • Daniel Barenboim/Berliner Philharmoniker/CBS, MK 39859 (Interpretação sem rodeios do mestre Barenboim, com destaque para a sonoridade da orquestra berlinense, a escutar-se como uma família unida, mas afastada da vizinhança.), [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube], [V] [youtube]




    • Christoph Eschenbach/Orchestre de Paris/Naïve, V 4935 (A sensibilidade feminina do primeiro andamento liga bem com a capa. Velocidades mais elevadas, ao gosto do mestre alemão.), [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube], [V] [youtube]




    • Georges Prêtre/Wiener Philharmoniker/Vienna Philharmonic Records, WPH-L-GP-2013/1/2 (Registado ao vivo em 2013, tensão visível, começo hesitante e pensativo. O segundo andamento é vivido sem pressas. Seria uma excelente opção não fosse algum desequilíbrio e uma plateia ruidosa.)[Vienna Philharmonic Records]






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        Harriet Smithson [c. 1825-1830]                                                               Hector Berlioz [c. 1839]





    "Un concert à mitraille" [caricatura de Grandville, 1846]




    Programa da "Sinfonia Fantástica" autografado [Paris, 1830]




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    Paixões e desafios [Maio/1999 - Maio/2024]

    Lançamento dos novos Citroën Berlingo e Peugeot Partner [PSA Mangualde, Sector Ferragem, Novembro/2009]


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