domingo, 27 de fevereiro de 2022


66. Bruckner: sinfonia nº 4, "Romântica" |


A Sinfonia nº 4 de Anton Bruckner, "Romântica" de nome, "Reflexão íntima" de apelido.





Em homenagem ao povo livre ucraniano.
Para o João que está de parabéns e para a "Trompa mágica do... padrinho".

(...ainda guardo na memória a minha última 4ª, um sonho oferecido pela Orquestra do Real Concertgebouw de Amesterdão e o maestro Mariss Jansons. Foi em 2014, estava em Paris.)






Quando num dia de Inverno de 1873 um dos alunos de Anton Bruckner (1824-1896), genuinamente preocupado com a visível falta de conforto no apartamento do mestre, no nº 41 da Währinger Strasse, lhe aconselhou a casar, o compositor replicaria com aquela pacatez que lhe era peculiar: "Não tenho tempo meu querido amigo. Tenho a minha quarta sinfonia para compor.". E assim seria sempre, ano após ano, até à derradeira nona.
Com efeito, o compositor viria a completar a sua Sinfonia nº 4, "Romântica", a única obra à qual atribuiria um subtítulo, em Novembro de 1874, mas teria ainda de esperar mais sete anos até à calorosa recepção do público vienense, ocorrida na estreia de 20 de Fevereiro de 1881, pela Orquestra Filarmónica de Viena e o maestro Hans Richter.
Apesar dos seus cinquenta e seis anos de idade, Bruckner não seria um compositor mimado pelo sucesso e a aprovação mais generalizada da sua música só se tornaria um pouco mais visível a partir do lançamento da sua sétima sinfonia alguns anos mais tarde. Ainda assim, as experiências de má memória que teria tido com a apresentação ao público de obras anteriores não o desencorajariam a escrever mais uma sinfonia, facto a que deve ser dada a devida importância, inegável relevância e o profundo respeito pela resiliência desta rocha solitária no centro da praia artística vienense que era o nosso Anton.
Também nesta criação, a famosa insegurança de Anton Bruckner ver-se-ia compensada pela procura obsessiva da perfeição. De facto, depois de 1874, o autor viria ainda a revisar a obra em 1878 e a reescrever o final entre 1879 e 1880. Modificá-la-ia de novo entre 1886 e 1888, mas seria a versão de 1878-1880 aquela que chegaria aos nossos dias como a mais interpretada, apesar dos cortes e reorquestrações perpetrados pelos seus bem-intencionados amigos editores e antigos alunos, Josef Schalke e Ferdinand Loewe, que teria sido obrigado a tolerar, e cujo resultado verificar-se-ia aparentemente infeliz, demonstrando a incapacidade do duo para a compreensão da genialidade do compositor de Linz e exemplificando a máxima de que "quem não sabe não deve mexer". 
O subtítulo de "Romântica" surgiria apenas em 1876, tendo o autor inclusive adicionado um programa literário de acompanhamento, programa esse que viria a ser negligenciado desde o dia em que nasceu tendo em conta que também o próprio Anton se encontraria um pouco desencontrado com aquilo que andava a fazer e a sentir por aquela altura. Isso mesmo pode ser de certa maneira atestado pela narrativa escolhida para o primeiro andamento: "Uma cidadela da Idade Média. Amanhecer. Acordar com o som da torre. As portas abrem-se. Cavaleiros e carregadores orgulhosos saem do forte. A magia da natureza rodeia-os.", e pela afirmação naïve e refrescante sobre o quarto (andamento...): "No último andamento esqueci-me completamente do quadro que tinha em mente"... Ora, no final nada disto haveria de importar para Anton e para os seus fieis admiradores, ou não fosse uma peça de "música absoluta"  funcionar por si só como o próprio nome indica: "música absoluta" (entendi por bem sublinhar a ideia depois de escutar pela enésima vez a última intervenção da trompa de Philip Myers no final desta obra-prima... quem fizer o mesmo perceberá porquê).
Os quatro andamentos da obra percorrem os trilhos da natureza e da espiritualidade, tocando-se e fundindo-se entre si naqueles cruzamentos facilmente identificáveis pela pele de galinha que provoca aos ouvintes um pouco por todo o mundo. Abre [I] com um tema misterioso na trompa acompanhado por trémulos suaves nas cordas (uma das aberturas do reportório sinfónico mais belas da história), que depois se desenvolve num dos andamentos mais majestosos da obra de Bruckner. O segundo andamento, Andante [II], surge a seguir com as suas melodias distantes e o maravilhoso entrelaçar dos temas, replecto de misticismo e a fazer lembrar uma marcha fúnebre. Segue-se-lhe o terceiro andamento, um Scherzo [III] com o notório realismo, brilho e energia de uma atmosfera de caça, com os metais em grande destaque como seria de esperar, e o último andamento, Finale [IV], a vaguear pelo tempo e pelo espaço na busca da tranquilidade fundamental para as deliberações sensatas do homem, mais importantes do que nunca por estes dias. E acaba como começa; no nosso pensamento permanece o som meditativo da trompa com as novas e incomparáveis cores, o amarelo do sol germinador da vida e o azul do céu que ambicionamos um dia alcançar... "but not yet".
Slava Ukraini!

(PS: a sinfonia nº 4 de Bruckner foi interpretada em Berlim a 12 de Abril de 1945, num concerto pela Orquestra Filarmónica de Berlim dirigida por Robert Heger. Dias mais tarde o opressor caiu.)


Nuno Oliveira




"Sinfonia nº 4, em mi bemol maior, "Romântica""


✨ Extractos que proponho para audição:
  • Wiener Philharmoniker
  • Karl Böhm
  • Decca, 448 098-2 DF2
"o belo": toda a obra (ed. Nowak, 1878-1880: Mistério e grandiosidade no registo de
                referência desde 1973. Há quem diga que há este e depois todos os outros... e
                na realidade é quase assim. Magnífico e simplesmente imperdível!)
                [I]: trompa e tutti, aos 0:00-2:40 (Ambiente misterioso, sons cristalinos na trompa
                e o clímax que dá a entender o que aí vem...); violoncelos, aos 3:33-3:51 e
                16:13-16:31 (Um "pormaior" na voz.); tutti, aos 10:03-11:33 (Órgão de tubos
                orquestral!); cordas, aos 11:34-12:34 (A canção "Romântica" num minuto.);
                trompas, aos 19:27-20:03 (A verdadeira puxada!) [youtube]
                [II]: violoncelos, aos 0:00-0:31 e 8:07-8:38 (A beleza de uma canção.) [youtube]
                [III]: trompas e metais, aos 0:00-10:58 (Está aberta a época de caça!) [youtube]
                [IV]: tutti, aos 1:24-2:49, 5:44-6:47 e 11:14-12:43 (Poder orquestral supremo!); tutti
                aos 3:04-5:02 e 15:19-17:12 (A fonte onde Mahler bebeu...); trompa e tutti, aos
                18:03-21:00 ("o belo" solo de trompa e o mistério da apoteose final!) [youtube]






  • New York Philharmonic
  • Kurt Masur
  • Teldec, 4509-93332-2
"o belo": (ed. Haas, 1878-1880: Concentração extraordinária num registo ao vivo
                repleto de beleza e inspiração. Direcção vibrante do mestre alemão e a
                beleza sonora da trompa de Philip Myers, com "o belo" vibrato a abrir e a
                fechar o pano que nos atinge como um raio! Sublime e a não perder.)
                [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]






  • Berliner Philharmoniker
  • Eugen Jochum
  • Deutsche Grammophon, 449 718-2 GOR
"o belo": (ed. Nowak, 1878-1880: Visão fluida e reflectida do mestre Jochum, onde
                se sente a consciência da grandiosidade desta música. Marco histórico e
                único. Uma fabulosa escolha.)
                [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]






  • Berliner Philharmoniker
  • Herbert von Karajan
  • Deutsche Grammophon, 415 277-2 GH
"o belo": (ed. Haas, 1878-1880: Poder e poesia de mãos dadas numa performance
                de estatura histórica como só o mestre von Karajan poderia proporcionar.
                Uma escolha de referência.)
                [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]






  • Los Angeles Philharmonic
  • Esa-pekka Salonen
  • Sony, SK 63301
"o belo": (versão de 1878-1880: Proposta muito pessoal do mestre finlandês, com
                pormenores que se percebem de forma clara e virtuosa. Sonoridade
                exuberante e interpretação imaculada dos músicos da costa do Pacífico.
                Uma proposta de excelência a não perder também.)
                [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]






  • Chicago Symphony Orchestra
  • Georg Solti
  • Decca, 410 550-2 DH
"o belo": (ed. Nowak, 1878-1880A versão directa, brilhante e poderosa de Georg
                Solti... e os metais são de Chicago! Sem dúvida uma das preferidas dos
                amantes dos decibéis.)
                [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]






  • Berliner Philharmoniker
  • Daniel Barenboim
  • Teldec, 8573-81787-2
"o belo": (ed. original, 1878-1880: Registo ao vivo maravilhosamente interpretado
                pelo mestre Barenboim e os músicos berlinenses. Uma boa opção.)
                [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]






  • Wiener Philharmoniker
  • Claudio Abbado
  • Deutsche Grammophon, 431 719-2 GH
"o belo": (ed. Nowak, 1878-1880: Registo onde sobressaem a sonoridade polida e a
                expressividade da batuta do mestre italiano. Uma boa escolha também.)
                [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]






   
✰ Outras sugestões:
  • Günter Wand/Kölner Rundfunk-Sinfonie-Orchester/RCA, GD 60079 (ed. Haas, 1878-1880: A visão de um dos maiores interpretes desta obra.), [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]




  • Riccardo Muti/Berliner Philharmoniker/EMI, CDC 7 47352 2 (ed. Nowak, 1878-1880: Sensualidade e clímaces bem construídos numa gravação a descobrir.), [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube] 




  • Marek Janowski/Orchestre Philharmonique de Radio France/Virgin, VC 7 91206-2 (ed. Nowak, 1878-1880: Registo directo e assertivo, com destaque para as madeiras suaves e metais acutilantes. Final excitante.), [I-IV] [discogs] 




  • Simon Rattle/Berliner Philharmoniker/EMI, 3 84723 2 (ed. Nowak, 1886: Um exemplo da elegância de Rattle com um final inspirador.), [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]




  • Riccardo Chailly/Royal Concertgebouw Orchestra/Decca, 425 613-2 DH (ed. Nowak, 1878-1880: A sonoridade exuberante do Concertgebouw que se destaca.), [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]










∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞






Anton Bruckner [Viena, 1886]




∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞

  


"O padrinho..." [início dos anos 2000]


 

"... e o afilhado.[início dos anos 2010]






 ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞


  

"Nuvens ameaçadoras e o Azul e Amarelo, com o verde da esperança na chegada da pomba da paz"

 [Nelas, Rua da Serra da Estrela, nº 4, manhã de 27-02-2022]



 -------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------