quarta-feira, 12 de julho de 2023


81. Beethoven: concerto p/ piano nº 5, "Imperador" |

Herr Beethoven e a escrita de fusão do seu concerto-sinfónico para piano, o nº 5. Um nobre passo na história da música, um salto soberano na história do homem.






Para a outra face da moeda que governa este reino, a imperatriz que hoje está de parabéns.
Do teu súbdito. Do teu imperador.
Que o teu coração se reveja num Adagio um poco mosso outros 50.






Como poderão compreender, a escolha do concerto para piano nº 5, "Imperador", de Ludwig van Beethoven (1770-1827), para assinalar este dia de celebração, não é inocente. Se o atingir meio século de vida tem algo de místico, então o número 5 teria de aparecer. Se se tratasse da solista da nossa vida, então teria de ser um concerto. Se falássemos de quem lidera os nossos sonhos desde o primeiro olhar, então um epíteto supremo faria sentido. Tudo isto existe, tudo isto é fixe, tudo isto me faz sentir amado, por isso...
...seria com esta obra de viragem do século que Beethoven embarcaria ao encontro de uma nova direcção, de um sentido de tal forma atraente como só as extraordinárias experiências vividas até aí fariam apontar. Em Abril de 1787, com dezasseis anos, viajaria da sua Bona natal para Viena onde seria apresentado a Mozart que, como era prática comum nessa época, lhe haveria de dar um tema para que Ludwig pudesse improvisar e desta forma demonstrar a sua capacidade imaginativa como compositor e também a sua habilidade como instrumentista. O singular desta bela ocasião seria aquilo que Mozart, considerado bastante crítico das capacidades dos seus colegas de profissão, afirmaria de forma exaltada depois de ter ouvido o jovem Beethoven: "Estejam atentos a ele porque ele terá alguma coisa para vos dizer". E realmente disse. Palavras que ecoam até hoje. Frases que ainda agora se escutam.
1792 seria o ano em que Beethoven deixaria Bona para se radicar definitivamente em Viena, criando um burburinho imediato com o seu virtuosismo e dotes de improvisador ao piano, instrumento que muitos considerariam como a própria extensão do seu corpo de compositor, com as suas teclas a servirem de laboratório para a descoberta de novas sonoridades e para a experimentação de novas formas de música. As teclas daqueles pianofortes eram inúmeras, umas mais claras, outras mais escuras, tal como a música nova que o viria a imortalizar, com o heroísmo e o dramatismo a caminharem lado a lado, de mãos dadas, numa união amorosa que faria nascer o Romantismo.
O ideal romântico começaria assim a germinar com o idioma revolucionário do seu concerto para piano nº 5, que ao contrário do concerto virtuoso tradicional do séc. XIX, haveria de promover a igualdade entre o solista e a orquestra. Não mais a orquestra iria ficar parada à escuta do solista e não mais o solista teria de desenvolver os temas propostos pela orquestra. O matrimónio entre os dois protagonistas seria quase real, com o pianista a quebrar imediatamente as regras da tradição com o ousado ressoar dos acordes que anunciam o começo da obra, num acto de emancipação que ultrapassaria por completo o conceito de concerto clássico e constituiria a fundação para os concertos românticos que os futuros compositores viriam a escrever um dia.
Beethoven começaria a compor este concerto em 1809, numa época em que Viena se encontrava cercada pelo exército napoleónico, facto que seguramente ditaria a presença de algumas características marciais na atmosfera musical da obra. Como qualquer outro cidadão vienense daquela altura, a vida do compositor também não seria fácil, existindo várias referências sobre as experiências traumáticas que teria vivido (chegaria inclusive a abrigar-se de bombardeamentos numa cave por diversas ocasiões, cobrindo a cabeça com almofadas para tentar minimizar o terrível mal-estar que isso lhe provocava). O seu estado de espírito ficaria registado numa carta que enviaria para Leipzig ao seu editor Gottfried Christoph Härtel, a 26 de Julho de 1909: "O curso dos eventos afectou-me o corpo e a mente, e a vida à minha volta é selvática e perturbadora. Não existe nada mais do que tambores, canhões, soldados e todo o tipo de miséria humana.". Assim, é natural que estas vivências fizessem explodir em Beethoven uma raiva contra Napoleão, havendo mesmo quem conte que durante a ocupação de Viena o teria visto certa vez num café a gritar, enquanto agitava os punhos contra um oficial francês: "Se eu fosse um general e soubesse tanto de estratégia como sei de contraponto, dava-lhe algo em que pensar!". Todavia, e apesar da perigosa mistura de febre de guerra com a bravura romântica que porventura lhe assolava o espírito, aparentemente, não lhe terá chegado a "dar".
O cognome de "Imperador" teria sido colocado, não por Beethoven ou pelo seu editor, mas por intermédio de um baptismo popular no seguimento de um acontecimento caricato ocorrido na Viena ocupada. Pelo que se conta, no dia da estreia em Viena, a 12 de Dezembro de 1812, um soldado francês que se encontrava no público, inspirado pela majestosidade da obra, terá aparentemente exclamado: "C'est l'Empereur!". A ser verdade, seguramente que esta passagem não terá agradado a um compositor que já em 1804 havia cortado de forma furiosa a dedicatória a Napoleão da partitura da sua terceira sinfonia (que passaria a chamar-se "Eroica"), logo que soube que o suposto "homem do povo" se havia autoproclamado Imperador de França.
Rejeitada por Viena, esta obra seria estreada na Gewandhaus de Leipzig por Johann Schneider (um antigo aluno do compositor; suspeita-se que Beethoven já apresentaria um grau de surdez que o impossibilitaria de tocar o concerto) e o maestro Johann Philipp Christian Schulz, no dia 28 de Novembro de 1811 . Os relatos daquela época confirmam que este concerto teria sido recebido pelo público de forma entusiástica, tendo o jornal Allgemeine Musikalische Zeitung escrito a 1 de Janeiro de 1812 : "Sem dúvida um dos mais originais, imaginativos, afectuosos, mas também muito difíceis de entre todos os concertos existentes.". Apesar do bom acolhimento em Leipzig, a recepção em Viena no ano seguinte seria menos calorosa (por trás disso poderão ter estado eventuais resquícios da rejeição original ou porventura algum ciúme da congénere alemã que finalmente acabara com a pureza da obra) e o concerto só viria a ter o reconhecimento merecido com a promoção feita por Liszt alguns anos depois, o que só terá ficado bem ao maior virtuoso do piano de todos os tempos (que, como é sabido, também gostava de tirar o pó a certas obras de arte do género feminino). 
É curioso como Beethoven volta a escolher a tonalidade radiante de mi bemol maior da sua sinfonia "Eroica" para este concerto, como que a sugerir-nos uma espécie de alternativa em forma de música à triste realidade da guerra e a sua vontade de acabar com ela. O piano interagiria com os argumentos musicais propostos pela orquestra de forma próxima e o improviso pianístico também não seria deixado ao acaso. Nesse sentido, a tradicional cadenza do primeiro andamento [1] daria lugar a uma passagem rapsódica com acompanhamento orquestral, conduzindo o andamento a um estimulante clímax final, definindo assim o modelo do concerto sinfónico que Schumann e Brahms haveriam de seguir mais tarde. Já "o belo" Adagio um pouco mosso do segundo andamento [2] mostrar-se-ia tão introspectivo quanto o Allegro do primeiro se havia mostrado afirmativo, numa espécie de hino às necessidades românticas do homem, com o compositor a proporcionar ao ser humano que se sentasse ao piano a máxima profundidade interpretativa a que pudesse chegar (que Kovacevich tornaria superlativa num mês 5 do ano em que caminharíamos na lua pela primeira vez e os engenheiros da Philips guardariam para a eternidade a partir do Walthamstow Assembly Hall de Londres; parece exagero mas não é, como poderão constatar em baixo.). O terceiro andamento [3] chegaria por fim, marcado pelo retorno da grandiosidade presente no início da obra, com um Rondo-Allegro triunfante a surgir de surpresa entre a neblina melancólica do mágico segundo andamento. Quis o divino que fosse assim, com um Romantismo fervoroso, que se acabasse uma obra da história da música e começasse uma época da história do homem.

 
Nuno Oliveira

                          



"Concerto p/ piano nº 5, em mi bemol maior, op. 73, Imperador"


✨ Extractos que proponho para audição: (ver também publicações nº 3, 45, 62 e 75)
  • Stephen Bishop-Kovacevich
  • London Symphony Orchestra
  • Colin Davis
  • Philips, 422 165-2 PS ou 422 482-2 PCC
"o belo": obra completa com destaque para o Adagio un poco mosso central (O registo
                de referência desta obra. Sonoridade incandescente e expressividade a tender
                para o infinito. Colin Davis e LSO com nota vinte, Kovacevich com nota vinte...
                e um. Inigualável. Inultrapassável. Icónico.)
                [1]: piano e tutti (Sol orquestral e um raio pianístico de luz imensa. Em Beethoven,
                a grandiosidade concerto-pianística é assim: astral.[youtube]
                [2]: tutti, piano aos 1:44-... ("o belo" Adagio da mais pura e profunda melancolia.
                Imaginem gotas de chuva a beijar a única face alguma vez amada... Agora
                molhem-se também.) [youtube]
                [3]: piano e tutti (O "tempo" é de alegria e a dança está no ar, no chão e em toda
                a actividade atómica intermédia.) [youtube]







  • Murray Perahia
  • The Concertgebouw Orchestra
  • Bernard Haitink
  • CBS, MK 42330
"o belo": (Uma interpretação mágica, repleta de fulgor e de sensibilidade poética que
                nos toca o coração. A referência para muitos melómanos. O divino mora aqui.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]






  • Evgeny Kissin
  • Philharmonia Orchestra
  • James Levine
  • Sony, SK 62926
"o belo": (Fluidez orquestral. Sonoridade penetrante. Testemunhemos a impetuosidade
                técnica, eloquência e poesia cintilante do jovem Evgeny. Kissin trata o piano
                por tu e o resultado é sublime.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]






  • András Schiff
  • Staatskapelle Dresden
  • Bernard Haitink
  • Teldec, 3984-26800-2
"o belo": (Registo luminoso, rico em sumptuosidade orquestral e brilhantismo solístico.
                Uma visão com alma e lirismo profundo. Tratando-se de Schiff e Haitink, o
                contrário é que não poderia ser.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]






  • Vladimir Ashkenazy
  • Wiener Philharmoniker
  • Zubin Mehta
  • Decca, 411 903-2 DH
"o belo": (Sonoridade cristalina da Sofiensaal, cordas vienenses que nos fazem estremecer
                e um pianista que também sabe fazer a dança da chuva. Excelente escolha.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]






  • Alfred Brendel
  • Chicago Symphony Orchestra
  • James Levine
  • Philips, 412 789-2 PH
"o belo": (Registado ao vivo em Chicago, com uma sonoridade envolvente e o toque
                inconfundível de Brendel. A tensão sente-se e o público está feliz. Bravo!)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]






  • Christian Zacharias
  • Staatskapelle Dresden
  • Hans Vonk
  • EMI, CDC 5 55314 2
"o belo": (Som luxuriante e interpretação límpida e excitante, daquelas que vicia.
                Uma magnífica opção também.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]






  • Melvyn Tan
  • The London Classical Players
  • Roger Norrington
  • EMI, CDC 7 49965 2
"o belo": (Virtuosismo electrizante do pianoforte de Tan e acompanhamento
                estimulante dos músicos londrinos. A tempestade e a bonança lado a lado
                e à disposição daqueles que se interessarem por instrumentos de época.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]






  • Vladimir Ashkenazy
  • Chicago Symphony Orchestra
  • Georg Solti
  • Decca, 417 703-2 DM
"o belo": (O resultado do extrovertido Solti com o intimista Ashkenazy que nos dá uma
                harmonização auditiva gourmet. A captação de som merece uma estrela Michelin.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]





  
   
✰ Outras sugestões:
  • Hélène Grimaud/Staatskapelle Dresden/Vladimir Jurowski/Deutsche Grammophon, 00289 477 7149 GH2 (Acústica ressonante, som acutilante e interpretação fresca e vincada. Um registo de qualidade a ter em conta.), [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]




  • Maurizio Pollini/Claudio Abbado/Berliner Philharmoniker/Deutsche Grammophon, 445 851-2 GH (Registo poderoso gravado ao vivo. A majestosidade está lá, mas a tensão sente-se mais longe. Uma boa escolha.), [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]




  • Robert Levin/John Eliot Gardiner/Orchestre Révolutionnaire et Romantique/Deutsche Grammophon, 447 771-2 AH (Uma interpretação com instrumentos de época onde se destaca o som peculiar do pianoforte de Levin. Uma performance diferente que interessa descobrir.), [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]






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Ludwig van Beethoven [1813]




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Adagio...

[Cabanas de Viriato, 15-04-2023]



... e uns poucos moços.

[Algarve, Agosto de 2010]


[Algarve, Agosto de 2021]

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79. Prokofiev: concerto p/ violino nº 2 |

Da liberdade irreverente à clausura expectável. As transições de uma vida guardadas para a eternidade num concerto para violino de Sergei Prokofiev.






Para a Mammy.
Do pai do teu segundo, o Menino Lindo (que outrora fez soar um violino).
Que o teu abraço se conserve como um Andante assai acolhedor.






O compositor russo Sergei Prokofiev (1891-1953) passaria a primeira parte da carreira a lamentar-se da subsistência artística através de uma vida de nómada e a segunda parte a desejar a vida de liberdade que a tal primeira lhe teria permitido usufruir.
Sergei emigra para os Estados Unidos em 1918 e vive alguns anos em Paris, até que em 1933 resolve retornar à Rússia porque supostamente: "os ares das terras estrangeiras não me inspiram porque sou russo, e não há nada de mais prejudicial para um homem que viver no exílio, que estar num clima espiritual incompatível com a sua raça". Palavra do compositor. Graças a Zeus.
Estabelece-se em Moscovo no final desse ano e, como qualquer outro cidadão soviético, começa a envolver-se cada vez mais na vida cultural da época, privilegiando o contexto político global à orientação cultural pessoal. Com efeito, este regresso marcaria não só uma mudança na sua vida como também influenciaria fortemente a sua obra, o que seria de certa maneira confirmado pelo retorno aos comportamentos habituais em sociedade e pela aplicação da "normal" tonalidade às estruturas formais tradicionais que começava a preferir para a sua música. Em 1934 chega inclusive a publicar um artigo no jornal Izvestia, descrevendo o ideal musical soviético como: "...acima de tudo, a música deve ser melodiosa, a melodia deve ser simples e compreensível, sem repetições e banalidades (...) devemos procurar uma nova simplicidade". Uma posição perfeitamente compreensível, dentro de certos limites, e capaz mesmo de recolher inúmeros simpatizantes.
Apesar de não ser conotado como um compositor ligado à música tradicional russa, o "enfant terrible" do modernismo a todo o custo estava a mudar. O seu fervor nacional era perceptível, sendo-lhe permitindo continuar a viajar e a dar concertos um pouco por toda a Europa e América do Norte. O tempo passava e os temas de inspiração russa tornar-se-iam cada vez mais presentes na sua música (o seu segundo concerto para violino e última encomenda não soviética, com as suas melodias e ritmos estimulantes, é um bom exemplo da transição do compositor enquanto músico), até que em 1936 toma a decisão de libertar o apartamento que ainda mantinha em Paris, estabelecendo-se definitivamente na União Soviética a partir de 1938, curiosamente o ano em que a autorização para viajar para o ocidente lhe seria retirada e não mais lhe seria atribuída enquanto Stalin vivesse, mais concretamente até ao dia 5 de Março de 1953, que, quis a ironia do destino, fosse o dia em que Sergei Prokofiev falecesse também. Imagino o que pensariam nesse dia os dois protagonistas, separados por poucos quilómetros na área de Moscovo. Sobre Stalin não me atrevo. Sobre Prokofiev; é possível que lhe tivesse ocorrido um vislumbre das razões do seu regresso a casa numa altura em que a repressão artística atingia uma fase crucial; do seu patriotismo inocente, da sua ingenuidade política, da nostalgia pelos invernos rigorosos, do significado das saudades de casa que aprendera nos poucos dias que estivera em Portugal. Teria preferido tudo isso à popularidade limitada e às dificuldades financeiras que a actividade ambulante de pianista-compositor passada no ocidente lhe teriam proporcionado. Eventualmente ter-se-ia arrependido no fim. 
O seu concerto para violino nº 2, op. 63, ser-lhe-ia encomendado em 1935, em Paris, por um grupo de admiradores do violinista franco-belga, Robert Soetens, e precede a escrita de uma das suas maiores obras-primas, o bailado Romeu e Julieta, a primeira obra que escreveria no seu regresso a Moscovo, sendo de facto visível na sonoridade romântica do concerto para violino algumas antecipações deste bailado (para não falar de futuras produções cinematográficas de Hans Zimmer em "código").
Como diria Prokofiev, a escrita deste concerto viria a reflectir na perfeição uma "existência concertística nómada", vivida de hotel em hotel, por aquela altura. O primeiro andamento começaria a ser composto em Paris, o segundo seria escrito em Voronezh, na Rússia, e a orquestração ficaria concluída em Baku, no Azerbeijão.
O compositor teria originalmente pensado em escrever uma sonata de concerto para violino e orquestra, pelo que ainda é possível percebermos alguns traços intimistas de música de câmara nos dois primeiros andamentos. O solista começa sozinho com o sombrio tema principal do primeiro andamento [1], mas o ambiente rapidamente se ilumina com o surgimento de um segundo tema assumidamente lírico e de inspiração notoriamente russa. "o belo" segundo andamento chega depois [2], um Andante assai com uma das mais belas melodias do reportório para violino, incandescente e sedutor como só o sol mediterrânico pode ser, numa mistura naïve de simplicidade e sofisticação típica do compositor. Seguir-se-ia o terceiro andamento final [3], rústico e ao mesmo tempo brilhante, com um travo astuto a castanholas (a estreia iria ser espanhola, afinal) e de uma dificuldade técnica extrema, com o compositor a mostrar o seu temperamento "dissonante" e a réstia de liberdade criativa a ocidente do coração.
Como previsto, este concerto estrear-se-ia em Madrid no dia 1 de Dezembro de 1935, interpretado pelo seu dedicatário Robert Soetens, o violinista que naquele inverno continuaria a acompanhar o compositor em vários concertos, não só em Espanha e em Portugal, mas também nas raias do mar mediterrâneo, em países como Marrocos, Argélia e Tunísia. A estreia americana ocorreria dois anos depois em Boston, interpretada por Jascha Heifetz (proponho uma gravação mítica sua em baixo) e Serge Koussevitzky no dia 17 de Dezembro de 1937. A performance teria sido magnífica e o concerto ficaria famoso a partir daí. Joseph Wechsberg, um jornalista de origem checa que teria estado na plateia do Boston Hall naquela bela ocasião, viria a descrever melhor do que ninguém aquilo que teria sido sentido naquela noite: "O brilhantismo do compositor é desta vez igualado pelo brilhantismo do intérprete. Atentem ao lamento do solo de violino na primeira parte e às passagens de dificuldade diabólica no final (...). Ou melhor, não estejam atentos a nada. Apaguem as luzes e disfrutem apenas". Para mim é quase sempre assim, pelo que este é o melhor conselho que vos deixo também.


 
Nuno Oliveira

                          



"Concerto p/ violino nº 2, em sol menor, op. 63"


✨ Extractos que proponho para audição: (ver também publicações nº 19, 56 e 87)
  • Maxim Vengerov
  • London Symphony Orchestra
  • Mstislav Rostropovich
  • Teldec, 0630-13150-2
"o belo": obra completa com destaque para o Andante assai central (A intuição de dois
                ícones da música a resultar num magnifico exemplo d"o belo". Sonoridade
                cristalina, sentimentos profundos e um magnetismo que nos prende a razão. O
                céu está limpo, as estrelas brilham, o sonho é glorioso. Épico. Imperdível.)
                [1]: violino, aos 0:00-1:09 (Mistério e vanguardismo de mãos dadas.); violino,
                aos 2:03-3:04 e 9:03-10-14 (Frases românticas cativantes e um Stradivari.)
                [youtube]
                [2]: violino, aos 0:00-2:13, 3:14-4:10 e 7:24-8:33 (Coração em suspenso e
                "o belo" conto de amor vivido entre os pingos de uma chuva de verão.
                Lembranças de um "Romeu e Julieta" com cheiro a flores mediterrânicas e
                noites quentes.); violino, aos 9:25-9:57 (Um Código (da Vinci...) do esperto
                Hans Zimmer.) [youtube]
                [3]: violino e tutti (Alguma soturnidade e irrequietação virtuosística variada
                para contrastar ao cair do pano.) [youtube]






  • Gil Shaham
  • London Symphony Orchestra
  • André Previn
  • Deutsche Grammophon, 447 758-2 GH
"o belo": (Sonoridade orquestral musculada e virtuosismo solístico irrepreensível.
                Inspiração de Previn, expiração de Shaham (Andante assai...), transpiração
                de ambos e exaltação do ouvinte. Um registo fabuloso que deve ser usufruído
                tranquilamente, sem pressas. Obrigatório depois de compreendido.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]






  • Kyung Wha Chung
  • London Symphony Orchestra
  • André Previn
  • Decca, 425 003-2 DM
"o belo": (Sensibilidade e articulação fantasiosa numa interpretação icónica de Chung.
                Expressividade feminina de mãos dadas com a fragilidade humana. Um registo
                divinal, a não perder também.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]






  • Itzhak Perlman
  • Chicago Symphony Orchestra
  • Daniel Barenboim
  • Erato, 4509-91732-2
"o belo": (Doses generosas de tensão e expressividade que só uma gravação ao vivo
                pode oferecer. Interpretação virtuosística e personalizada, com o violino de
                Perlman, de timbre carregado, a soar vivo, triunfante, e Barenboim a atender
                bem a vontade do mestre. Registo sublime, escolha fantástica.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]






  • Dmitry Sitkovetsky
  • London Symphony Orchestra
  • Colin Davis
  • Virgin, VC 7 90734-2
"o belo": (A sensibilidade de Sitkovetsky é extrema, a sonoridade do seu violino é
                fresca e a poesia que nos chega aos ouvidos só poderia ser natural. O
                lirismo cativante terá seguramente o dedo do mestre Davis. Uma proposta
                de excelência a ter em conta também.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]






  • Vadim Repin
  • Hallé Orchestra
  • Kent Nagano
  • Erato, 0630-10696-2
"o belo": (Pureza sonora, urgência solística e reacções orquestrais intuitivas numa
                performance sedutora. As dinâmicas pessoais do jovem Repin chamam-nos
                à atenção por bons motivos. O sonho também está lá.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]





  
   
✰ Outras sugestões:
  • Jascha Heifetz/Charles Munch/Boston Symphony Orchestra/RCA, RD87019 (Velocidades elevadas e virtuosismo inexcedível de Heifetz. As frases que ansiamos escutar, essas são todas de Jascha. Gravação mítica. A descobrir.), [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]




  • Anne Akiko Meyers/Dmitri Kitaenko/Radio-Sinfonie-Orchester Frankfurt/RCA, 09026 68353 2 (Uma interpretação enérgica e personalizada, com colorido sonoro e variedade de dinâmicas. Uma boa opção.), [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]






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Sergei Prokofiev [Nova Iorque, início dos anos 30]




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A Mammy e o Menino Lindo...

 [Algarve, Monte Gordo, Agosto de 2010]


... que, entretanto, cresceu.

 [Nelas, 12-07-2022]


 [França, Bordéus, Fevereiro de 2023]

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80. Haydn: concerto p/ violoncelo nº 1 |

O concerto para violoncelo em dó maior de Joseph Haydn, a originalidade do génio e a profecia do sonho.






Para a Mams.
Do pai do teu primeiro, o Johnny "o belo" (que já nasceu a pensar num violoncelo).
Que o teu colo se mantenha como o nosso Adagio protector.






A história tem vindo a mostrar-nos que os acontecimentos relevantes são generosos em efeitos secundários, pelo que muitas vezes um momento de mudança política tem consequências culturais, sejam elas, mudança ou consequências, boas ou más.
A imposição de governos comunistas à Hungria e à então Checoslováquia depois da 2ª Guerra Mundial, viria a provocar um curioso efeito colateral na história da música ocidental: a oportunidade para o estudo da vida e obra do compositor austríaco Joseph Haydn (1732-1809) como o mundo jamais teria visto. Com efeito, o até aí inacessível arquivo Esterházy, existente na Hungria, seria aberto ao público, permitindo a estudiosos o acesso a inúmeros manuscritos originais do compositor desconhecidos até então. Mas não seria tudo. Também se iriam encontrar várias partituras originais de Haydn noutros lugares para além do famoso palácio Esterházy, como o castelo de Kescthely, no lago Baraton, próximo de Budapeste, ou o mosteiro de Servite em Pest, mas a descoberta mais sensacional seria a protagonizada em 1961 pelo musicólogo checo Oldrich Pulkert, que ao remexer o espólio da colecção Rodenin existente na cave do Museu Nacional Checo, em Praga, se depara com as partes do concerto para violoncelo, em dó maior, do mestre, ocultadas da luz do dia durante duzentos anos. Uau!
A música teria sido registada por um copista do séc. XVIII, mas não existiriam quaisquer cadenzas deixadas pelo compositor, pelo que as cadenzas para os dois primeiros andamentos teriam sido fornecidas por um anónimo contemporâneo cujo tipo de escrita seria diferente da do copista. Os manuscritos seriam mais tarde autenticados por Georg Feder, o director do Instituto Haydn de Colónia, depois de verificar que o compositor teria registado o tema inicial deste seu "concerto per il violoncello" no também seu Entwurf-Katalog, que teria começado a escrever em 1765.
As exigências virtuosísticas e as características do primeiro andamento deste concerto, fariam lembrar o estilo das obras em dó maior que Haydn escrevera nos anos 1760s, levando assim os estudiosos a suspeitar de que o concerto teria sido escrito entre 1762 e 1765, para Joseph Weigl, o extraordinário violoncelista que o compositor dirigia por aquela altura na orquestra dos Esterházy e cujo virtuosismo técnico e sonoro já teria sido provado com os exigentes solos de violoncelo das sinfonias Le matin, Le midi e Le soir, que havia tocado em 1763.
Joseph Haydn encontrava-se na casa dos trinta por essa altura, ainda compunha num estilo jovial e tinha sido apontado recentemente como assistente de Gregorius Werner, o ancião Kapellmeister da Corte Esterházy. O Príncipe Paul Anton Esterházy possuía uma orquestra em Eisenstadt desde 1761 e Haydn era o seu vice-Kapellmeister. Ao seu lado teria o seu amigo Weigl, cuja participação naquele agrupamento teria sido recomendada por si. Tudo corria bem não fosse o desconforto de Werner, sendo que teria sido para se defender das acusações de usurpação do invejoso Kapellmeister, que Haydn teria começado a listar as suas obras no já referido Entwurf-Katalog, a partir de 1765.
É provável que Werner se tivesse mostrado descontente com a ultrapassagem inevitável de um jovem que teria aproveitado todas as oportunidades que o seu trabalho lhe proporcionava. Basta atentarmos às palavras do compositor para percebermos a intensidade do que estava em jogo: "Como responsável de uma orquestra, eu podia fazer experiências, observar o que criava uma boa impressão e o que a fragilizava, para depois a melhorar, acrescentando, cortando e tomando riscos. Eu estava afastado do mundo, não havia ninguém no meu vaticínio para me compreender ou importunar o meu caminho, e isso tornar-me-ia original". A intensidade era de facto forte e o que estava em jogo era nada mais nada menos do que ser original, o que nos meandros da arte diz quase tudo para os que a sonham e quase nada para os que a vivem. 
Os três andamentos desta obra seriam escritos em forma de sonata, com exposições separadas para a orquestra e para o solista. O primeiro andamento [1] apresenta ritmos sincopados e a atmosfera cortesã que o brilhante tema e a subsequente decoração com floreados entusiásticos pelo solista nos fariam lembrar. Seguir-se-ia "o belo" segundo andamento [2], um Adagio lânguido e introspectivo, profético do romantismo (permitam-me o atrevimento), com a ausência do oboé e das trompas a provocar um contraste marcante e o calor das cordas a sentir-se do pp ao ff. O terceiro andamento [3] chegaria depois, efervescente e com a exigência virtuosística que ainda hoje provoca falta de ar aos violoncelistas, devido ao pouco tempo para respirar entre os múltiplos desafios da partitura.
Este concerto tornar-se-ia um grande sucesso e permaneceria como obra central do reportório para violoncelo desde o dia da sua estreia, no Festival da Primavera de Praga. Os protagonistas teriam sido o violoncelista Milos Sádlo, a Orquestra Sinfónica da Rádio de Praga e o maestro Charles Mackerras. O dia seria o 19 de Maio de 1962. Eu não sei por onde andaria, mas haveria de aparecer nesse dia alguns anos mais tarde. Já sobre a minha mãe, sabe-se que tinha acabado de entrar no Liceu. 

 
Nuno Oliveira

                          



"Concerto p/ violoncelo, em dó maior, Hob. VIIb:1"


✨ Extractos que proponho para audição:
  • Pieter Wispelwey
  • Florilegium
  • Ashley Solomon
  • Channel, CG 06007
"o belo": obra completa com destaque para o Adagio central (Registo arrebatador
                de Wispelwey. Sonoridade superlativa, abrasiva umas vezes, de extrema
                ternura noutras, sentimentos profundos e velocidades impossíveis. Uma
                referência absoluta, sublime e imperdível.)
                [1]: violoncelo aos 1:14-2:38... (Poder gutural e sensibilidade incandescente
                numa articulação a roçar o divino.[youtube]
                [2]: violoncelo, aos 0:55-3:05... (Lamento e mistério numa das mais poéticas
                páginas da música ocidental. "o belo" que chega do nada, puro e permanece
                muito para lá do nosso pensamento.) [youtube],
                [3]: violoncelo (Velocidade sobrenatural de cortar a respiração.) [youtube]






  • Christophe Coin
  • The Academy of Ancient Music
  • Christopher Hogwood
  • L'Oiseau-Lyre, 414 615-2 OH
"o belo": (Interpretação personalizada de Coin, som cristalino e variedade tímbrica
                cativante. Um testemunho ímpar e uma fabulosa escolha também.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]






  • Jaqueline du Pré
  • The English Chamber Orchestra
  • Daniel Barenboim
  • EMI, CDC 7 47614 2
"o belo": (Som aconchegante e musicalidade cuidada por uma intérprete de 22
                anos de vida e muito mais além de maturidade artística. A sensibilidade
                e a exuberância típicas de du Pré coabitam de forma harmoniosa.
                Excelente opção.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]






  • Truls Mork
  • The Norwegian Chamber Orchestra
  • Iona Brown
  • Virgin, CDC 5 45014 2
"o belo": (O som atmosférico da Igreja de Uranienborg e o timbre particular
                que só o seu Montagnana de 1723 podia oferecer. Fraseado cristalino
                e sensibilidade extrema. Um Mork no seu melhor.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]






  • Yo-Yo Ma
  • English Chamber Orchestra
  • José-Luis Garcia
  • Sony, SMK 36674
"o belo": (Proposta fabulosa de Ma, com pianíssimos deslumbrantes, sofisticação
                e leveza. Um registo refinado para ouvintes refinados.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]






  • Steven Isserlis
  • The Chamber Orchestra of Europe
  • Roger Norrington
  • RCA, 09026 68578 2
"o belo": (Um registo ausente de excessos. A elegância e a sensibilidade dominam
                neste passeio pelos jardins da corte austríaca. Uma escolha de excelência.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]






  • Lynn Harrell
  • Academy of St. Martin in the Fields
  • Neville Marriner
  • EMI, 5 74569 2
"o belo": (Sonoridade calorosa e laivos de virtuosismo romântico no limite do
                adequado. Uma opção de qualidade a ter em conta também.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]





  
   
✰ Outras sugestões:
  • Matt Haimovitz/Andrew Davis/English Chamber Orchestra/Deutsche Grammophon, 429 219-2 GH (Uma performance inspirada do jovem Haimovitz que merece ser ouvida também.), [1-3] [youtube]




  • Anne Gastinel/Yuri Bashmet/Solistes de Moscou/Auvidis Valois, V4820 (Para os apreciadores da sonoridade exuberante do violoncelo Matteo Gofriller do mestre Pablo Casals.), [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]




  • Ofra Harnoy/Paul Robinson/Toronto Chamber Orchestra/RCA, 09026-60722-2 (Sonoridade luxuriante e idiossincrasias típicas de Harnoy. A descobrir.), [1-3] [youtube]






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Joseph Haydn [1791]




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A Mams e o Johnny...

 [Algarve, Monte Gordo, Agosto de 2010]



... que, entretanto, cresceu.


 [Porto, Janeiro de 2023]


 [Lisboa, Fundação Oriente, Novembro de 2021]

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