quarta-feira, 12 de julho de 2023


81. Beethoven: concerto p/ piano nº 5, "Imperador" |

Herr Beethoven e a escrita de fusão do seu concerto-sinfónico para piano, o nº 5. Um nobre passo na história da música, um salto soberano na história do homem.






Para a outra face da moeda que governa este reino, a imperatriz que hoje está de parabéns.
Do teu súbdito. Do teu imperador.
Que o teu coração se reveja num Adagio um poco mosso outros 50.






Como poderão compreender, a escolha do concerto para piano nº 5, "Imperador", de Ludwig van Beethoven (1770-1827), para assinalar este dia de celebração, não é inocente. Se o atingir meio século de vida tem algo de místico, então o número 5 teria de aparecer. Se se tratasse da solista da nossa vida, então teria de ser um concerto. Se falássemos de quem lidera os nossos sonhos desde o primeiro olhar, então um epíteto supremo faria sentido. Tudo isto existe, tudo isto é fixe, tudo isto me faz sentir amado, por isso...
...seria com esta obra de viragem do século que Beethoven embarcaria ao encontro de uma nova direcção, de um sentido de tal forma atraente como só as extraordinárias experiências vividas até aí fariam apontar. Em Abril de 1787, com dezasseis anos, viajaria da sua Bona natal para Viena onde seria apresentado a Mozart que, como era prática comum nessa época, lhe haveria de dar um tema para que Ludwig pudesse improvisar e desta forma demonstrar a sua capacidade imaginativa como compositor e também a sua habilidade como instrumentista. O singular desta bela ocasião seria aquilo que Mozart, considerado bastante crítico das capacidades dos seus colegas de profissão, afirmaria de forma exaltada depois de ter ouvido o jovem Beethoven: "Estejam atentos a ele porque ele terá alguma coisa para vos dizer". E realmente disse. Palavras que ecoam até hoje. Frases que ainda agora se escutam.
1792 seria o ano em que Beethoven deixaria Bona para se radicar definitivamente em Viena, criando um burburinho imediato com o seu virtuosismo e dotes de improvisador ao piano, instrumento que muitos considerariam como a própria extensão do seu corpo de compositor, com as suas teclas a servirem de laboratório para a descoberta de novas sonoridades e para a experimentação de novas formas de música. As teclas daqueles pianofortes eram inúmeras, umas mais claras, outras mais escuras, tal como a música nova que o viria a imortalizar, com o heroísmo e o dramatismo a caminharem lado a lado, de mãos dadas, numa união amorosa que faria nascer o Romantismo.
O ideal romântico começaria assim a germinar com o idioma revolucionário do seu concerto para piano nº 5, que ao contrário do concerto virtuoso tradicional do séc. XIX, haveria de promover a igualdade entre o solista e a orquestra. Não mais a orquestra iria ficar parada à escuta do solista e não mais o solista teria de desenvolver os temas propostos pela orquestra. O matrimónio entre os dois protagonistas seria quase real, com o pianista a quebrar imediatamente as regras da tradição com o ousado ressoar dos acordes que anunciam o começo da obra, num acto de emancipação que ultrapassaria por completo o conceito de concerto clássico e constituiria a fundação para os concertos românticos que os futuros compositores viriam a escrever um dia.
Beethoven começaria a compor este concerto em 1809, numa época em que Viena se encontrava cercada pelo exército napoleónico, facto que seguramente ditaria a presença de algumas características marciais na atmosfera musical da obra. Como qualquer outro cidadão vienense daquela altura, a vida do compositor também não seria fácil, existindo várias referências sobre as experiências traumáticas que teria vivido (chegaria inclusive a abrigar-se de bombardeamentos numa cave por diversas ocasiões, cobrindo a cabeça com almofadas para tentar minimizar o terrível mal-estar que isso lhe provocava). O seu estado de espírito ficaria registado numa carta que enviaria para Leipzig ao seu editor Gottfried Christoph Härtel, a 26 de Julho de 1909: "O curso dos eventos afectou-me o corpo e a mente, e a vida à minha volta é selvática e perturbadora. Não existe nada mais do que tambores, canhões, soldados e todo o tipo de miséria humana.". Assim, é natural que estas vivências fizessem explodir em Beethoven uma raiva contra Napoleão, havendo mesmo quem conte que durante a ocupação de Viena o teria visto certa vez num café a gritar, enquanto agitava os punhos contra um oficial francês: "Se eu fosse um general e soubesse tanto de estratégia como sei de contraponto, dava-lhe algo em que pensar!". Todavia, e apesar da perigosa mistura de febre de guerra com a bravura romântica que porventura lhe assolava o espírito, aparentemente, não lhe terá chegado a "dar".
O cognome de "Imperador" teria sido colocado, não por Beethoven ou pelo seu editor, mas por intermédio de um baptismo popular no seguimento de um acontecimento caricato ocorrido na Viena ocupada. Pelo que se conta, no dia da estreia em Viena, a 12 de Dezembro de 1812, um soldado francês que se encontrava no público, inspirado pela majestosidade da obra, terá aparentemente exclamado: "C'est l'Empereur!". A ser verdade, seguramente que esta passagem não terá agradado a um compositor que já em 1804 havia cortado de forma furiosa a dedicatória a Napoleão da partitura da sua terceira sinfonia (que passaria a chamar-se "Eroica"), logo que soube que o suposto "homem do povo" se havia autoproclamado Imperador de França.
Rejeitada por Viena, esta obra seria estreada na Gewandhaus de Leipzig por Johann Schneider (um antigo aluno do compositor; suspeita-se que Beethoven já apresentaria um grau de surdez que o impossibilitaria de tocar o concerto) e o maestro Johann Philipp Christian Schulz, no dia 28 de Novembro de 1811 . Os relatos daquela época confirmam que este concerto teria sido recebido pelo público de forma entusiástica, tendo o jornal Allgemeine Musikalische Zeitung escrito a 1 de Janeiro de 1812 : "Sem dúvida um dos mais originais, imaginativos, afectuosos, mas também muito difíceis de entre todos os concertos existentes.". Apesar do bom acolhimento em Leipzig, a recepção em Viena no ano seguinte seria menos calorosa (por trás disso poderão ter estado eventuais resquícios da rejeição original ou porventura algum ciúme da congénere alemã que finalmente acabara com a pureza da obra) e o concerto só viria a ter o reconhecimento merecido com a promoção feita por Liszt alguns anos depois, o que só terá ficado bem ao maior virtuoso do piano de todos os tempos (que, como é sabido, também gostava de tirar o pó a certas obras de arte do género feminino). 
É curioso como Beethoven volta a escolher a tonalidade radiante de mi bemol maior da sua sinfonia "Eroica" para este concerto, como que a sugerir-nos uma espécie de alternativa em forma de música à triste realidade da guerra e a sua vontade de acabar com ela. O piano interagiria com os argumentos musicais propostos pela orquestra de forma próxima e o improviso pianístico também não seria deixado ao acaso. Nesse sentido, a tradicional cadenza do primeiro andamento [1] daria lugar a uma passagem rapsódica com acompanhamento orquestral, conduzindo o andamento a um estimulante clímax final, definindo assim o modelo do concerto sinfónico que Schumann e Brahms haveriam de seguir mais tarde. Já "o belo" Adagio um pouco mosso do segundo andamento [2] mostrar-se-ia tão introspectivo quanto o Allegro do primeiro se havia mostrado afirmativo, numa espécie de hino às necessidades românticas do homem, com o compositor a proporcionar ao ser humano que se sentasse ao piano a máxima profundidade interpretativa a que pudesse chegar (que Kovacevich tornaria superlativa num mês 5 do ano em que caminharíamos na lua pela primeira vez e os engenheiros da Philips guardariam para a eternidade a partir do Walthamstow Assembly Hall de Londres; parece exagero mas não é, como poderão constatar em baixo.). O terceiro andamento [3] chegaria por fim, marcado pelo retorno da grandiosidade presente no início da obra, com um Rondo-Allegro triunfante a surgir de surpresa entre a neblina melancólica do mágico segundo andamento. Quis o divino que fosse assim, com um Romantismo fervoroso, que se acabasse uma obra da história da música e começasse uma época da história do homem.

 
Nuno Oliveira

                          



"Concerto p/ piano nº 5, em mi bemol maior, op. 73, Imperador"


✨ Extractos que proponho para audição: (ver também publicações nº 3, 45, 62 e 75)
  • Stephen Bishop-Kovacevich
  • London Symphony Orchestra
  • Colin Davis
  • Philips, 422 165-2 PS ou 422 482-2 PCC
"o belo": obra completa com destaque para o Adagio un poco mosso central (O registo
                de referência desta obra. Sonoridade incandescente e expressividade a tender
                para o infinito. Colin Davis e LSO com nota vinte, Kovacevich com nota vinte...
                e um. Inigualável. Inultrapassável. Icónico.)
                [1]: piano e tutti (Sol orquestral e um raio pianístico de luz imensa. Em Beethoven,
                a grandiosidade concerto-pianística é assim: astral.[youtube]
                [2]: tutti, piano aos 1:44-... ("o belo" Adagio da mais pura e profunda melancolia.
                Imaginem gotas de chuva a beijar a única face alguma vez amada... Agora
                molhem-se também.) [youtube]
                [3]: piano e tutti (O "tempo" é de alegria e a dança está no ar, no chão e em toda
                a actividade atómica intermédia.) [youtube]







  • Murray Perahia
  • The Concertgebouw Orchestra
  • Bernard Haitink
  • CBS, MK 42330
"o belo": (Uma interpretação mágica, repleta de fulgor e de sensibilidade poética que
                nos toca o coração. A referência para muitos melómanos. O divino mora aqui.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]






  • Evgeny Kissin
  • Philharmonia Orchestra
  • James Levine
  • Sony, SK 62926
"o belo": (Fluidez orquestral. Sonoridade penetrante. Testemunhemos a impetuosidade
                técnica, eloquência e poesia cintilante do jovem Evgeny. Kissin trata o piano
                por tu e o resultado é sublime.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]






  • András Schiff
  • Staatskapelle Dresden
  • Bernard Haitink
  • Teldec, 3984-26800-2
"o belo": (Registo luminoso, rico em sumptuosidade orquestral e brilhantismo solístico.
                Uma visão com alma e lirismo profundo. Tratando-se de Schiff e Haitink, o
                contrário é que não poderia ser.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]






  • Vladimir Ashkenazy
  • Wiener Philharmoniker
  • Zubin Mehta
  • Decca, 411 903-2 DH
"o belo": (Sonoridade cristalina da Sofiensaal, cordas vienenses que nos fazem estremecer
                e um pianista que também sabe fazer a dança da chuva. Excelente escolha.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]






  • Alfred Brendel
  • Chicago Symphony Orchestra
  • James Levine
  • Philips, 412 789-2 PH
"o belo": (Registado ao vivo em Chicago, com uma sonoridade envolvente e o toque
                inconfundível de Brendel. A tensão sente-se e o público está feliz. Bravo!)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]






  • Christian Zacharias
  • Staatskapelle Dresden
  • Hans Vonk
  • EMI, CDC 5 55314 2
"o belo": (Som luxuriante e interpretação límpida e excitante, daquelas que vicia.
                Uma magnífica opção também.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]






  • Melvyn Tan
  • The London Classical Players
  • Roger Norrington
  • EMI, CDC 7 49965 2
"o belo": (Virtuosismo electrizante do pianoforte de Tan e acompanhamento
                estimulante dos músicos londrinos. A tempestade e a bonança lado a lado
                e à disposição daqueles que se interessarem por instrumentos de época.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]






  • Vladimir Ashkenazy
  • Chicago Symphony Orchestra
  • Georg Solti
  • Decca, 417 703-2 DM
"o belo": (O resultado do extrovertido Solti com o intimista Ashkenazy que nos dá uma
                harmonização auditiva gourmet. A captação de som merece uma estrela Michelin.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]





  
   
✰ Outras sugestões:
  • Hélène Grimaud/Staatskapelle Dresden/Vladimir Jurowski/Deutsche Grammophon, 00289 477 7149 GH2 (Acústica ressonante, som acutilante e interpretação fresca e vincada. Um registo de qualidade a ter em conta.), [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]




  • Maurizio Pollini/Claudio Abbado/Berliner Philharmoniker/Deutsche Grammophon, 445 851-2 GH (Registo poderoso gravado ao vivo. A majestosidade está lá, mas a tensão sente-se mais longe. Uma boa escolha.), [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]




  • Robert Levin/John Eliot Gardiner/Orchestre Révolutionnaire et Romantique/Deutsche Grammophon, 447 771-2 AH (Uma interpretação com instrumentos de época onde se destaca o som peculiar do pianoforte de Levin. Uma performance diferente que interessa descobrir.), [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]






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Ludwig van Beethoven [1813]




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Adagio...

[Cabanas de Viriato, 15-04-2023]



... e uns poucos moços.

[Algarve, Agosto de 2010]


[Algarve, Agosto de 2021]

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