82. Mendelssohn: sinfonia nº 3, "Escocesa" |
A sinfonia nº 3 de Felix Mendelssohn e a visão romântica do passado da Escócia, presente na natureza de um bardo alemão.
Para a Susana e a Vânia.
Entre a fogosidade latina e a candura escandinava fica a beleza escocesa.
Se a época é de férias, então o momento é de retorno à "música de viagem" do genial Felix Mendelssohn (1809-1847). Depois da Sinfonia nº 4, "Italiana" (publicação nº 70), é com entusiasmo que agora proponho a sua Sinfonia nº 3, "Escocesa", porventura a sinfonia mais famosa das cinco que compôs ao longo da sua curta (mas cheia!) vida. É possível que alguns melómanos deste compositor possam talvez discordar (o assunto é controverso, não fosse o gosto discutível), mas para mim, a "Escocesa" é, das suas sinfonias, aquela que mais me ajuda a romper a neblina da vida ao encontro da luz de melhores dias, ou utilizando as palavras clarividentes de Francisco, o Papa Jesuíta, partilhadas há poucos dias em Lisboa, aquela que mais facilmente me incentiva a "trocar o medo pelo sonho" (uma mensagem poderosa, tal como o são, individualmente, a realidade do medo e o impacto do sonho).
Pouco tempo depois de completar vinte anos de idade, Mendelssohn viria a iniciar uma séria de viagens pela europa que lhe ocupariam os cinco anos seguintes e lhe proporcionaria uma considerável fonte de inspiração. Começa por visitar Londres na primavera de 1829, uma cidade que apreciava o compositor como nenhuma outra no mundo, realizando ali alguns concertos e seguindo no final de Julho para umas férias na Escócia, acompanhado por Karl Klingermann, um amigo de Berlim que estava destacado em Londres como secretário da delegação de Hannover.
Apesar do seu aparente desinteresse pelas gaitas de foles tradicionais e pela própria música popular escocesa, o mistério e a beleza natural do país, assim como as consideráveis associações românticas da sua história, tornar-se-iam as sementes para o nascimento da sua "Sinfonia Escocesa", sendo também importante referir que o talento para a escrita de viagem reflectido nas suas cartas, proporcionar-nos-ia uma boa imagem do percurso que faria por Glasgow, Edimburgo, Perth, Inverness, Loch Lomond, Iona, Mull e Staffa, para além do desvio que igualmente teria feito até Abbotsford para visitar o escritor Sir Walter Scott.
As primeiras ideias para esta sinfonia surgir-lhe-iam em Edimburgo, mais propriamente na visita que faria de forma ansiosa às ruínas da capela de Holyrood House, o local onde a trágica rainha Mary Stuart "teria vivido e amado", onde teria sido coroada e onde Davide Rizzio, o seu secretário particular, havido sido assassinado. No dia 30 de Agosto transmitiria os seus sentimentos numa carta para casa: "Ervas e heras crescem no altar quebrado onde Mary foi coroada rainha da Escócia. Tudo à volta está partido e a desfazer-se em pó, e a luz do céu brilha lá dentro. Acredito que hoje encontrei naquela velha capela o início da minha Sinfonia Escocesa". Paisagens naturais, personagens históricas, as suas intrigas, conflitos e feitos de guerra, teriam sido estas impressões aquelas que Mendelssohn supostamente absorveria para criar o ambiente elegíaco do início da obra, bem como a cena de tempestade no final do primeiro andamento e o quarto andamento, um Allegro guerriero a fazer lembrar uma espécie de "canção de agradecimento após a vitória em batalha".
No entanto, a escrita desta "Sinfonia Escocesa" viria a progredir lentamente. As suas cartas haveriam de a mencionar algumas vezes em 1830, durante a famosa viagem que faria a Itália (uma experiência que lhe inspiraria a escrita da sua Sinfonia nº 4, "Italiana"), comentários que fariam suspeitar alguma influência dos céus azuis mediterrânicos no despreendimento para o que estaria inicialmente projectado. Em março de 1831 escreveria numa carta à família: "Quem iria imaginar que eu acharia impossível retornar à minha disposição das neblinas escocesas? Foi por isso que pus de lado a sinfonia por agora". Na realidade, seria necessário cerca de uma década para que o compositor deixasse em lume brando certas formas que teria em mãos (italianas ou outras, talvez escocesas) e retornasse aos conteúdos (escoceses ou outros, eventualmente italianos) desta sinfonia. O trabalho de composição recomeçaria em 1841 e a obra ficaria acabada no Inverno de 1842. Seria depois estreada em casa, na Gewandhaus de Leipzig, no dia 3 de Março de 1842, como a sua terceira sinfonia; uma numeração à partida um pouco confusa, visto que a sua quarta ("Italiana") já teria sido previamente estreada em 1833 (...num bom exemplo de formas iluminadas pelo calor latino a ultrapassar cronologicamente conteúdos superiormente interessantes encontrados mais a norte, comum em qualquer jovem na casa dos 20 anos, fosse ele um génio alemão ou não... como, aliás, tenho vindo a observar de forma caseira, nestes dias ao sol algarvio).
Depois da estreia, o compositor viria ainda a realizar algumas alterações antes de a levar para Londres, naquela que seria a sua décima sétima viagem àquele país. A Rainha Victoria e o Príncipe Albert eram conhecidos admiradores da sua música, sendo também intérpretes competentes das suas canções e da sua música de câmara (um legado cultural que se fosse mantido pelos dignatários das mais importantes casas mundiais, reais ou plebeias com responsabilidades reais, talvez pudesse evitar alguma da barbárie cultural televisiva dos festivais de verão), pelo que não seria de estranhar que esta admiração se transformasse em amizade e esta se demonstrasse sob forma de dedicatória da obra à monarca inglesa. A forma e conteúdo finais da sinfonia seriam finalmente apreciados pela primeira vez na Philharmonic Society, no dia 13 de Junho de 1843. A direcção terá sido a do próprio Mendelssohn, para gáudio dos seus fans e amigos britânicos.
O compositor não revelaria qualquer programa específico para a sinfonia, mas, no entanto, destacaria a seguinte instrução na partitura: "Os andamentos individuais desta sinfonia devem surgir uns atrás dos outros, sem serem separados entre si pela pausa longa habitual. O conteúdo individual dos andamentos pode ser dado ao ouvinte no programa de concerto, do seguinte modo: Introdução e Allegro agitato [1] - Scherzo assai vivace [2] - Adagio cantabile [3] - Allegro guerriero e Finale maestoso [4]". Desta forma, ficaria mais clara a pretensão do compositor em criar uma música que ilustrasse os ambientes que estimulassem a imaginação do público, em vez de o orientar com uma narrativa pré-concebida. A orquestração rica e simultaneamente viril dos seus primeiro e quarto andamentos faria imaginar em alguns ouvintes a atmosfera dos romances históricos de Sir Walter Scott, um escritor que Mendelssohn teria conhecido pessoalmente naquele desvio a Abbotsford. As sensações de grandeza e decadência sugeridas pelas ruínas de Holyrood mostrar-se-iam logo aos primeiros compassos da Introdução da obra, sentindo-se, mais tarde, a energia militar do Allegro guerriero a movimentar-se para o clímax final que encerraria a sinfonia. O segundo andamento introduziria ritmos e melodias em forma de dança ao gosto escocês, seguindo-se depois uma espécie de recitativo a abrir "o belo" andamento lento, reforçando a ideia de um ambiente proposto pelo compositor ao qual cada ouvinte responderia à sua maneira... após a correspondente meditação individual. Se houver curiosidade, a minha pode ser encontrada em baixo, na visão de Claudio Abbado do canto de um bardo alemão, um Felix património da humanidade.
Nuno Oliveira
"Sinfonia nº 3, em lá menor, op. 56, "Escocesa""
✨ Extractos que proponho para audição: (ver também publicações nº 48, 50 e 70)
- London Symphony Orchestra
- Claudio Abbado
- Deutsche Grammophon, 415 973-2 GH
sumptuosa, majestosidade e expressividade nas raias do divino. A visão
inspirada do mestre Abbado e dos músicos londrinos que a torna num poema
de leitura obrigatória. Registo superlativo. Referência absoluta.)
[I]: tutti, aos 0:00-3:45 (Da suave maresia da costa escocesa...) e 3:46-14:29
(...aos ventos fortes das terras altas que nos embalam "o belo" violoncelo
(11:56-13:00).); tutti, aos 14:30-16:00 (Das tempestades na terra e no mar...)
e 16:01-16:53 (...ao surgimento d"o belo" céu limpo.) [youtube]
[II]: clarinete, oboé e tutti (Brincadeiras na natureza.) [youtube]
[III]: tutti, violoncelos aos 5:36-7:12 e madeiras aos 10:30-10:50 ("o belo"
poema, águas profundas onde Schumann se banhou, ar penetrante que Mahler
inspirou.) [youtube]
[IV]: tutti, aos 7:28-8:42 (Música para a glorificação de um país...); trompas,
aos 8:43-9:12 (...e apoteose final!) [youtube]
- Israel Philharmonic Orchestra
- Leonard Bernstein
- Deutsche Grammophon, 439 980-2 GGA
Munique em 1979. Um registo sublime como um gesto de reconciliação pode
ser. A referência para muitos melómanos. Icónico e imperdível.)
- The Chamber Orchestra of Europe
- Nikolaus Harnoncourt
- Teldec, 9031-72308-2
marcadas e a sonoridade penetrante dos metais, com destaque para o
vibrante final. A sensibilidade do mestre Harnoncourt e a intuição da
magnífica COE num registo poderoso e exuberante a não perder.)
- Gewandhausorchester Leipzig
- Kurt Masur
- Teldec, 0630-18954-22
Leipzig e o mestre alemão poderiam proporcionar. O perfume de Mendelssohn
ainda se sente na Gewandhaus, a música é emocionante, o registo é memorável.
Uma escolha com pedigree a não perder também.)
[I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]
- Heidelberger Sinfoniker
- Thomas Fey
- Hänssler, CD 98.552
brilho e nitidez extra, mas mantendo ao mesmo tempo o aconchego sonoro com as
suas texturas e cores características (magnífico aos 10:20-11:03 do início da obra).
Um registo surpreendente por tão bom que é.)
- San Francisco Symphony
- Herbert Blomstedt
- London, 433-811-2 LH
jovialidade interpretativa do mestre Blomstedt. A energia que emana da
orquestra norte americana sente-se no ar. Magnífica escolha.)
[I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]
✰ Outras sugestões:
- Bamberger Symphoniker
- Claus Peter Flor
- RCA, 09026-60893-2
exemplo disso logo aos 5:07 da obra. Interpretação excitante e apelativa
ao estilo do mestre Flor. Uma excelente opção a ter em conta também.)
- London Classical Players
- Roger Norrington
- EMI, CDC 7 54000 2
de época em destaque. A visão directa do mestre Norrington e a pureza
interpretativa dos músicos ingleses são notórias. Uma escolha de qualidade e
um registo de eleição para os adeptos das cordas de tripa e metais cortantes.)
- Academy of St. Martin-in-the-Fields
- Neville Marriner
- Argo, 411 931-2 ZH
marcadas, madeiras e metais de qualidade. O mestre Marriner é sensível aos
detalhes da obra. Boa opção.)
- Jaime Laredo/Scottish Chamber Orchestra/Nimbus, NI 1765-5525 (Uma proposta por nativos escoceses interessante de conhecer.), [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]
- Roger Norrington/Radio-Sinfonieorchester Stuttgart des SWR/Hänssler, CD 93.133 (Interpretação de época, ausente de vibrato o que lhe acrescenta clareza e articulação, mas retira algum calor sonoro. Uma boa opção.), [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube][youtube]
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Entre a fogosidade latina e a candura escandinava
As primas Susana (dir.) e Vânia (esq.) [Casamento da Rita e do Xavier, Águeda, 08-10-2022]
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Oh, no Maag and Von Dohnanyi. For me two of the best. Solti too
ResponderEliminarI would have put them instead of Harnoncourt and Masur.
They are in my to buy list in a long time. Thank you for sharing this suggestions.
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