83. Berlioz: Harold em Itália |
O "Harold em Itália" de Hector Berlioz, o desapego e a paixão como marcas de um guião.
Para a querida Inês
(...e a sua viola).
Gosto como às vezes certas coisas fazem tanto sentido, como é o caso da narrativa que começa agora. A companhia amena da viola neste Harold em Itália, op. 16, do ícone do romantismo francês (que não me parece nada excessivo) chamado Hector Berlioz (1803-1869), não poderia estar mais próxima à "idée fixe" que rege o registo sereno da vida da nossa Inês. Em ambas, as horas são tranquilas, algumas nuvens mais persistentes começam a dissipar-se nos céus de cada um, existem soluções, o abraço é acolhedor. Os que aproveitam desse tempo são felizes e devem lembrá-lo, para além de agradecê-lo.
✨ Extractos que proponho para audição:
✰ Outras sugestões:
Gosto como às vezes certas coisas fazem tanto sentido, como é o caso da narrativa que começa agora. A companhia amena da viola neste Harold em Itália, op. 16, do ícone do romantismo francês (que não me parece nada excessivo) chamado Hector Berlioz (1803-1869), não poderia estar mais próxima à "idée fixe" que rege o registo sereno da vida da nossa Inês. Em ambas, as horas são tranquilas, algumas nuvens mais persistentes começam a dissipar-se nos céus de cada um, existem soluções, o abraço é acolhedor. Os que aproveitam desse tempo são felizes e devem lembrá-lo, para além de agradecê-lo.
A ideia para a criação deste Harold em Itália terá chegado por via do violinista virtuoso italiano Niccolò Paganini. O músico teria adquirido recentemente uma magnífica viola Stradivari e ansiava exibi-la, tendo para isso convidado Berlioz a escrever uma obra do género concertante para este instrumento. Berlioz acederia a esse desejo e começaria a escrever o primeiro andamento da peça, vindo depois a apresentá-lo ao violinista que, contudo, não terá ficado agradado ("...existem demasiadas pausas e eu tenho que estar sempre a tocar...", diria), para surpresa do compositor.
Esta rejeição levaria Berlioz a abandonar a ideia original e a começar a trabalhar numa "Sinfonia em 4 andamentos com solos de viola" (designação com que seria publicada mais tarde), transferindo o virtuosismo desejado por Paganini para, tal como diria o compositor, a: "colocação da viola na neblina das recolhas poéticas deixadas pelas deambulações em Abruzzes e fazê-la disso uma espécie de sonhadora melancólica à maneira do Childe Harold de Byron", destacando-se de imediato as ideias de Itália e do poeta inglês Lord Byron nas suas palavras.
À semelhança de muitos outros românticos, Berlioz viria também ele a responder com paixão ao exemplo de Byron, cuja vida e carácter intensos lhe teriam fascinado tanto quanto a sua obra literária (a misteriosa rebeldia do herói solitário, com a qual Berlioz possivelmente se identificava, levá-lo-ia à morte em 1824, na Guerra da Independência Grega). Berlioz apreciaria particularmente o poema épico "Childe Harold's Pilgrimage", uma obra vasta e uma das suas criações mais famosas, mas que, no entanto, não teria por si só servido de modelo para o seu Harold em Itália (nenhuma das peripécias do poema de Byron estão aliás ilustradas directamente na música), apesar do último dos seus quatro cantos se passar em Itália. Em vez disso, acredita-se que teria sido uma mistura das memórias felizes da sua estadia em Itália entre 1831 e 1832, com essas reminiscências literárias, aquilo que lhe inspiraria à criação desta obra.
Berlioz viria a permanecer alguns meses em Itália após vencer o importante Prémio de Roma em 1831 (prémio instituído pelo governo francês que permitia aos artistas o estudo num ambiente rodeado de tesouros de arte clássica, como a pintura e a escultura), vivendo o seu subconsciente romântico a deambular pelo Forum, a ouvir as serenatas e os instrumentos tradicionais tocados por camponeses e a percorrer velhas estradas. Naquele país, ficaria fascinado com Subiaco e inspirar-se-ia durante o longo caminho entre Nápoles e Roma: "Há muito que queria ir ao Monte Posillipo, a Calabria ou a Capri e colocar-me ao serviço de um chefe de salteadores. Esta é a vida que almejo: vulcões, rochas, amontoados de ricas pilhagens nas cavernas das montanhas, um concerto de gritos acompanhado por uma orquestra de pistolas e carabinas, sangue e Lachryma Christi, uma cama de lava abalada por tremores subterrâneos. Allons donc, voilá la vie!" (com o epíteto de "ícone do romantismo francês" a justificar-se também bem por estas paragens).
Na realidade, seria o próprio Berlioz a escolher o título (memórias felizes...) de cada um dos quatro andamentos do seu Harold em Itália, mas, tal como o herói de Byron (reminiscências literárias...), a viola ficaria com o papel do comentador que observa sossegadamente o desenrolar dos acontecimentos, vagueando pelos cenários italianos como o forasteiro romântico daquele poema, utilizando para isso uma melodia recorrente, denominada de tema de Harold ("idée fixe"), em todos os andamentos. O primeiro andamento, "Harold nas montanhas: cenas de melancolia, felicidade e alegria" [1], introduz-nos o passeio introspectivo até ao cenário selvagem da região de Abruzzes (situada entre Nápoles e Roma), enquanto que o segundo, "Marcha dos peregrinos a cantarem a sua oração ao final da tarde" [2], ilustraria uma procissão escutada ao longe, que depois de passar pelo ouvinte se desvanece novamente no pó da estrada. Surgiria depois o terceiro andamento, "Serenata de um montanhês de Abruzzes à sua amante" [3], que reflectiria não só a diversão do compositor com o som estridente das gaitas dos "pifferari" (com o oboé e o flautim a encarregarem-se disso), os populares tocadores das gaitas de foles tradicionais daquela região, como também a sua admiração pelas habituais serenatas apaixonadas (...pelo corne inglês, neste caso), até que finalmente chegaria o quarto andamento, "Orgia dos salteadores; memórias de cenas anteriores" [4], cuja música vigorosa seria apenas interrompida pela memória distante dos peregrinos e pelo último apontamento do solista antes de submergir no final frenético de fuga ao terror provocado por aquela quadrilha.
Harold em Itália ficaria concluída em 1834, estreando-se no Conservatório de Paris a 23 de Novembro desse ano. Paganini, o virtuoso que nunca interpretaria esta obra, também não estaria entre a plateia dessa noite. Seriam necessários cinco anos para que se desvanecesse, tal como aquela procissão, algum eventual desconforto, pelo que o violinista apenas a viria a ouvir em 1839. Niccolò teria certamente concordado com a opinião do seu amigo Hector, tratava-se realmente "mais de uma sinfonia do que de um concerto" e até as recordações recolhidas no último andamento faziam lembrar o estilo da maravilhosa 9ª do Ludwig van. O atormentado virtuoso do violino já não conseguiria resistir mais. A proclamação de Berlioz como o verdadeiro herdeiro de Beethoven foi o que melhor lhe ocorreu fazer.
Obrigado, Inês! é o que melhor que me ocorre fazer a mim.
Nuno Oliveira
"Harold em Itália, sinfonia em 4 andamentos com solos de viola, op. 16"
✨ Extractos que proponho para audição:
- Gérard Caussé
- Orchestre Révolutionnaire et Romantique
- John Eliot Gardiner
- Philips, 446 676-2 PY
✿"o belo": obra completa, com alguns destaques identificados em baixo (A performance
com instrumentos de época de referência. Som intenso e misterioso, com
pianíssimos deslumbrantes e o timbre suave da viola de Gérard Caussé a
demonstrar o vasto conhecimento da obra. Um registo fabuloso e imperdível.)
[1]: tutti, aos 0:00-1:10 ("o belo" mistério em instrumentos de época.); viola,
aos 7:54 e 9:05 (Danças de viola.); tutti e metais, aos 13:45-14:05 e
14:37-14:53 (Encomenda de cutelaria sonora.) [youtube]
[2]: viola, aos 3:45-5:28 (A viola sobrenatural de Gérard Caussé.) [youtube]
[3]: corne inglês, aos 0:39-1:08 (Pastoral italiana.) [youtube]
[4]: tutti e trombone, aos 0:16-0:48 (Assuntos das profundezas.); tutti, aos
10:13-10:40 (Música de câmara ao longe.); tutti, aos 3:11-5:27, 6:18-8:37,
9:22-10:02 e 10:51-12:12 (Urgência e excitação com múltiplos brilhos.) [youtube]
- Donald McInnes
- Orchestre National de France
- Leonard Bernstein
- EMI, CDM 7 64745 2
Dinâmicas contrastantes de Bernstein e sonoridade intimista da viola de McInnes.
Um registo famoso gravado na mítica Salle Wagram, em Paris, a não perder.)
- Pinchas Zukerman
- Orchestre Symphonique de Montréal
- Charles Dutoit
- Decca, 421 193-2 DH
viola de Zukerman. A música é sentida de forma quente. A vida é vivida sem pressa.
Excelente escolha também.)
- Joseph de Pasquale
- Philadelphia Orchestra
- Eugene Ormandy
- Sony, SBK 53255
orquestral acutilante e para a sonoridade delicada do solista. Aqui existe drama e
introspecção. Uma boa opção.)
- Gérard Caussé/Michel Plasson/Orchestre du Capitole de Toulouse/EMI, CDC 7 54237 2 (Uma interpretação diferente, mais nervosa que lírica. A velocidade é elevada, o discurso é directo e a viola de Caussé esconde a fragilidade e mostra agora a bravura que se lhe exige. Um registo a descobrir.), [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube], [4] [youtube]
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Inês e a viola
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Inês nos Países Baixos
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