79. Prokofiev: concerto p/ violino nº 2 |
Da liberdade irreverente à clausura expectável. As transições de uma vida guardadas para a eternidade num concerto para violino de Sergei Prokofiev.
Para a Mammy.
Do pai do teu segundo, o Menino Lindo (que outrora fez soar um violino).
Que o teu abraço se conserve como um Andante assai acolhedor.
O compositor russo Sergei Prokofiev (1891-1953) passaria a primeira parte da carreira a lamentar-se da subsistência artística através de uma vida de nómada e a segunda parte a desejar a vida de liberdade que a tal primeira lhe teria permitido usufruir.
Sergei emigra para os Estados Unidos em 1918 e vive alguns anos em Paris, até que em 1933 resolve retornar à Rússia porque supostamente: "os ares das terras estrangeiras não me inspiram porque sou russo, e não há nada de mais prejudicial para um homem que viver no exílio, que estar num clima espiritual incompatível com a sua raça". Palavra do compositor. Graças a Zeus.
Estabelece-se em Moscovo no final desse ano e, como qualquer outro cidadão soviético, começa a envolver-se cada vez mais na vida cultural da época, privilegiando o contexto político global à orientação cultural pessoal. Com efeito, este regresso marcaria não só uma mudança na sua vida como também influenciaria fortemente a sua obra, o que seria de certa maneira confirmado pelo retorno aos comportamentos habituais em sociedade e pela aplicação da "normal" tonalidade às estruturas formais tradicionais que começava a preferir para a sua música. Em 1934 chega inclusive a publicar um artigo no jornal Izvestia, descrevendo o ideal musical soviético como: "...acima de tudo, a música deve ser melodiosa, a melodia deve ser simples e compreensível, sem repetições e banalidades (...) devemos procurar uma nova simplicidade". Uma posição perfeitamente compreensível, dentro de certos limites, e capaz mesmo de recolher inúmeros simpatizantes.
Apesar de não ser conotado como um compositor ligado à música tradicional russa, o "enfant terrible" do modernismo a todo o custo estava a mudar. O seu fervor nacional era perceptível, sendo-lhe permitindo continuar a viajar e a dar concertos um pouco por toda a Europa e América do Norte. O tempo passava e os temas de inspiração russa tornar-se-iam cada vez mais presentes na sua música (o seu segundo concerto para violino e última encomenda não soviética, com as suas melodias e ritmos estimulantes, é um bom exemplo da transição do compositor enquanto músico), até que em 1936 toma a decisão de libertar o apartamento que ainda mantinha em Paris, estabelecendo-se definitivamente na União Soviética a partir de 1938, curiosamente o ano em que a autorização para viajar para o ocidente lhe seria retirada e não mais lhe seria atribuída enquanto Stalin vivesse, mais concretamente até ao dia 5 de Março de 1953, que, quis a ironia do destino, fosse o dia em que Sergei Prokofiev falecesse também. Imagino o que pensariam nesse dia os dois protagonistas, separados por poucos quilómetros na área de Moscovo. Sobre Stalin não me atrevo. Sobre Prokofiev; é possível que lhe tivesse ocorrido um vislumbre das razões do seu regresso a casa numa altura em que a repressão artística atingia uma fase crucial; do seu patriotismo inocente, da sua ingenuidade política, da nostalgia pelos invernos rigorosos, do significado das saudades de casa que aprendera nos poucos dias que estivera em Portugal. Teria preferido tudo isso à popularidade limitada e às dificuldades financeiras que a actividade ambulante de pianista-compositor passada no ocidente lhe teriam proporcionado. Eventualmente ter-se-ia arrependido no fim.
O seu concerto para violino nº 2, op. 63, ser-lhe-ia encomendado em 1935, em Paris, por um grupo de admiradores do violinista franco-belga, Robert Soetens, e precede a escrita de uma das suas maiores obras-primas, o bailado Romeu e Julieta, a primeira obra que escreveria no seu regresso a Moscovo, sendo de facto visível na sonoridade romântica do concerto para violino algumas antecipações deste bailado (para não falar de futuras produções cinematográficas de Hans Zimmer em "código").
Como diria Prokofiev, a escrita deste concerto viria a reflectir na perfeição uma "existência concertística nómada", vivida de hotel em hotel, por aquela altura. O primeiro andamento começaria a ser composto em Paris, o segundo seria escrito em Voronezh, na Rússia, e a orquestração ficaria concluída em Baku, no Azerbeijão.
O compositor teria originalmente pensado em escrever uma sonata de concerto para violino e orquestra, pelo que ainda é possível percebermos alguns traços intimistas de música de câmara nos dois primeiros andamentos. O solista começa sozinho com o sombrio tema principal do primeiro andamento [1], mas o ambiente rapidamente se ilumina com o surgimento de um segundo tema assumidamente lírico e de inspiração notoriamente russa. "o belo" segundo andamento chega depois [2], um Andante assai com uma das mais belas melodias do reportório para violino, incandescente e sedutor como só o sol mediterrânico pode ser, numa mistura naïve de simplicidade e sofisticação típica do compositor. Seguir-se-ia o terceiro andamento final [3], rústico e ao mesmo tempo brilhante, com um travo astuto a castanholas (a estreia iria ser espanhola, afinal) e de uma dificuldade técnica extrema, com o compositor a mostrar o seu temperamento "dissonante" e a réstia de liberdade criativa a ocidente do coração.
Como previsto, este concerto estrear-se-ia em Madrid no dia 1 de Dezembro de 1935, interpretado pelo seu dedicatário Robert Soetens, o violinista que naquele inverno continuaria a acompanhar o compositor em vários concertos, não só em Espanha e em Portugal, mas também nas raias do mar mediterrâneo, em países como Marrocos, Argélia e Tunísia. A estreia americana ocorreria dois anos depois em Boston, interpretada por Jascha Heifetz (proponho uma gravação mítica sua em baixo) e Serge Koussevitzky no dia 17 de Dezembro de 1937. A performance teria sido magnífica e o concerto ficaria famoso a partir daí. Joseph Wechsberg, um jornalista de origem checa que teria estado na plateia do Boston Hall naquela bela ocasião, viria a descrever melhor do que ninguém aquilo que teria sido sentido naquela noite: "O brilhantismo do compositor é desta vez igualado pelo brilhantismo do intérprete. Atentem ao lamento do solo de violino na primeira parte e às passagens de dificuldade diabólica no final (...). Ou melhor, não estejam atentos a nada. Apaguem as luzes e disfrutem apenas". Para mim é quase sempre assim, pelo que este é o melhor conselho que vos deixo também.
Nuno Oliveira
"Concerto p/ violino nº 2, em sol menor, op. 63"
✨ Extractos que proponho para audição: (ver também publicações nº 19, 56 e 87)
- Maxim Vengerov
- London Symphony Orchestra
- Mstislav Rostropovich
- Teldec, 0630-13150-2
✿"o belo": obra completa com destaque para o Andante assai central (A intuição de dois
ícones da música a resultar num magnifico exemplo d"o belo". Sonoridade
cristalina, sentimentos profundos e um magnetismo que nos prende a razão. O
céu está limpo, as estrelas brilham, o sonho é glorioso. Épico. Imperdível.)
[1]: violino, aos 0:00-1:09 (Mistério e vanguardismo de mãos dadas.); violino,
aos 2:03-3:04 e 9:03-10-14 (Frases românticas cativantes e um Stradivari.)
[2]: violino, aos 0:00-2:13, 3:14-4:10 e 7:24-8:33 (Coração em suspenso e
"o belo" conto de amor vivido entre os pingos de uma chuva de verão.
Lembranças de um "Romeu e Julieta" com cheiro a flores mediterrânicas e
noites quentes.); violino, aos 9:25-9:57 (Um Código (da Vinci...) do esperto
Hans Zimmer.) [youtube]
[3]: violino e tutti (Alguma soturnidade e irrequietação virtuosística variada
para contrastar ao cair do pano.) [youtube]
- Gil Shaham
- London Symphony Orchestra
- André Previn
- Deutsche Grammophon, 447 758-2 GH
Inspiração de Previn, expiração de Shaham (Andante assai...), transpiração
de ambos e exaltação do ouvinte. Um registo fabuloso que deve ser usufruído
tranquilamente, sem pressas. Obrigatório depois de compreendido.)
- Kyung Wha Chung
- London Symphony Orchestra
- André Previn
- Decca, 425 003-2 DM
Expressividade feminina de mãos dadas com a fragilidade humana. Um registo
divinal, a não perder também.)
- Itzhak Perlman
- Chicago Symphony Orchestra
- Daniel Barenboim
- Erato, 4509-91732-2
pode oferecer. Interpretação virtuosística e personalizada, com o violino de
Perlman, de timbre carregado, a soar vivo, triunfante, e Barenboim a atender
bem a vontade do mestre. Registo sublime, escolha fantástica.)
- Dmitry Sitkovetsky
- London Symphony Orchestra
- Colin Davis
- Virgin, VC 7 90734-2
fresca e a poesia que nos chega aos ouvidos só poderia ser natural. O
lirismo cativante terá seguramente o dedo do mestre Davis. Uma proposta
de excelência a ter em conta também.)
- Vadim Repin
- Hallé Orchestra
- Kent Nagano
- Erato, 0630-10696-2
performance sedutora. As dinâmicas pessoais do jovem Repin chamam-nos
à atenção por bons motivos. O sonho também está lá.)
- Jascha Heifetz/Charles Munch/Boston Symphony Orchestra/RCA, RD87019 (Velocidades elevadas e virtuosismo inexcedível de Heifetz. As frases que ansiamos escutar, essas são todas de Jascha. Gravação mítica. A descobrir.), [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]
∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞
A Mammy e o Menino Lindo...
Sem comentários:
Enviar um comentário