quarta-feira, 12 de julho de 2023


80. Haydn: concerto p/ violoncelo nº 1 |

O concerto para violoncelo em dó maior de Joseph Haydn, a originalidade do génio e a profecia do sonho.






Para a Mams.
Do pai do teu primeiro, o Johnny "o belo" (que já nasceu a pensar num violoncelo).
Que o teu colo se mantenha como o nosso Adagio protector.






A história tem vindo a mostrar-nos que os acontecimentos relevantes são generosos em efeitos secundários, pelo que muitas vezes um momento de mudança política tem consequências culturais, sejam elas, mudança ou consequências, boas ou más.
A imposição de governos comunistas à Hungria e à então Checoslováquia depois da 2ª Guerra Mundial, viria a provocar um curioso efeito colateral na história da música ocidental: a oportunidade para o estudo da vida e obra do compositor austríaco Joseph Haydn (1732-1809) como o mundo jamais teria visto. Com efeito, o até aí inacessível arquivo Esterházy, existente na Hungria, seria aberto ao público, permitindo a estudiosos o acesso a inúmeros manuscritos originais do compositor desconhecidos até então. Mas não seria tudo. Também se iriam encontrar várias partituras originais de Haydn noutros lugares para além do famoso palácio Esterházy, como o castelo de Kescthely, no lago Baraton, próximo de Budapeste, ou o mosteiro de Servite em Pest, mas a descoberta mais sensacional seria a protagonizada em 1961 pelo musicólogo checo Oldrich Pulkert, que ao remexer o espólio da colecção Rodenin existente na cave do Museu Nacional Checo, em Praga, se depara com as partes do concerto para violoncelo, em dó maior, do mestre, ocultadas da luz do dia durante duzentos anos. Uau!
A música teria sido registada por um copista do séc. XVIII, mas não existiriam quaisquer cadenzas deixadas pelo compositor, pelo que as cadenzas para os dois primeiros andamentos teriam sido fornecidas por um anónimo contemporâneo cujo tipo de escrita seria diferente da do copista. Os manuscritos seriam mais tarde autenticados por Georg Feder, o director do Instituto Haydn de Colónia, depois de verificar que o compositor teria registado o tema inicial deste seu "concerto per il violoncello" no também seu Entwurf-Katalog, que teria começado a escrever em 1765.
As exigências virtuosísticas e as características do primeiro andamento deste concerto, fariam lembrar o estilo das obras em dó maior que Haydn escrevera nos anos 1760s, levando assim os estudiosos a suspeitar de que o concerto teria sido escrito entre 1762 e 1765, para Joseph Weigl, o extraordinário violoncelista que o compositor dirigia por aquela altura na orquestra dos Esterházy e cujo virtuosismo técnico e sonoro já teria sido provado com os exigentes solos de violoncelo das sinfonias Le matin, Le midi e Le soir, que havia tocado em 1763.
Joseph Haydn encontrava-se na casa dos trinta por essa altura, ainda compunha num estilo jovial e tinha sido apontado recentemente como assistente de Gregorius Werner, o ancião Kapellmeister da Corte Esterházy. O Príncipe Paul Anton Esterházy possuía uma orquestra em Eisenstadt desde 1761 e Haydn era o seu vice-Kapellmeister. Ao seu lado teria o seu amigo Weigl, cuja participação naquele agrupamento teria sido recomendada por si. Tudo corria bem não fosse o desconforto de Werner, sendo que teria sido para se defender das acusações de usurpação do invejoso Kapellmeister, que Haydn teria começado a listar as suas obras no já referido Entwurf-Katalog, a partir de 1765.
É provável que Werner se tivesse mostrado descontente com a ultrapassagem inevitável de um jovem que teria aproveitado todas as oportunidades que o seu trabalho lhe proporcionava. Basta atentarmos às palavras do compositor para percebermos a intensidade do que estava em jogo: "Como responsável de uma orquestra, eu podia fazer experiências, observar o que criava uma boa impressão e o que a fragilizava, para depois a melhorar, acrescentando, cortando e tomando riscos. Eu estava afastado do mundo, não havia ninguém no meu vaticínio para me compreender ou importunar o meu caminho, e isso tornar-me-ia original". A intensidade era de facto forte e o que estava em jogo era nada mais nada menos do que ser original, o que nos meandros da arte diz quase tudo para os que a sonham e quase nada para os que a vivem. 
Os três andamentos desta obra seriam escritos em forma de sonata, com exposições separadas para a orquestra e para o solista. O primeiro andamento [1] apresenta ritmos sincopados e a atmosfera cortesã que o brilhante tema e a subsequente decoração com floreados entusiásticos pelo solista nos fariam lembrar. Seguir-se-ia "o belo" segundo andamento [2], um Adagio lânguido e introspectivo, profético do romantismo (permitam-me o atrevimento), com a ausência do oboé e das trompas a provocar um contraste marcante e o calor das cordas a sentir-se do pp ao ff. O terceiro andamento [3] chegaria depois, efervescente e com a exigência virtuosística que ainda hoje provoca falta de ar aos violoncelistas, devido ao pouco tempo para respirar entre os múltiplos desafios da partitura.
Este concerto tornar-se-ia um grande sucesso e permaneceria como obra central do reportório para violoncelo desde o dia da sua estreia, no Festival da Primavera de Praga. Os protagonistas teriam sido o violoncelista Milos Sádlo, a Orquestra Sinfónica da Rádio de Praga e o maestro Charles Mackerras. O dia seria o 19 de Maio de 1962. Eu não sei por onde andaria, mas haveria de aparecer nesse dia alguns anos mais tarde. Já sobre a minha mãe, sabe-se que tinha acabado de entrar no Liceu. 

 
Nuno Oliveira

                          



"Concerto p/ violoncelo, em dó maior, Hob. VIIb:1"


✨ Extractos que proponho para audição:
  • Pieter Wispelwey
  • Florilegium
  • Ashley Solomon
  • Channel, CG 06007
"o belo": obra completa com destaque para o Adagio central (Registo arrebatador
                de Wispelwey. Sonoridade superlativa, abrasiva umas vezes, de extrema
                ternura noutras, sentimentos profundos e velocidades impossíveis. Uma
                referência absoluta, sublime e imperdível.)
                [1]: violoncelo aos 1:14-2:38... (Poder gutural e sensibilidade incandescente
                numa articulação a roçar o divino.[youtube]
                [2]: violoncelo, aos 0:55-3:05... (Lamento e mistério numa das mais poéticas
                páginas da música ocidental. "o belo" que chega do nada, puro e permanece
                muito para lá do nosso pensamento.) [youtube],
                [3]: violoncelo (Velocidade sobrenatural de cortar a respiração.) [youtube]






  • Christophe Coin
  • The Academy of Ancient Music
  • Christopher Hogwood
  • L'Oiseau-Lyre, 414 615-2 OH
"o belo": (Interpretação personalizada de Coin, som cristalino e variedade tímbrica
                cativante. Um testemunho ímpar e uma fabulosa escolha também.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]






  • Jaqueline du Pré
  • The English Chamber Orchestra
  • Daniel Barenboim
  • EMI, CDC 7 47614 2
"o belo": (Som aconchegante e musicalidade cuidada por uma intérprete de 22
                anos de vida e muito mais além de maturidade artística. A sensibilidade
                e a exuberância típicas de du Pré coabitam de forma harmoniosa.
                Excelente opção.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]






  • Truls Mork
  • The Norwegian Chamber Orchestra
  • Iona Brown
  • Virgin, CDC 5 45014 2
"o belo": (O som atmosférico da Igreja de Uranienborg e o timbre particular
                que só o seu Montagnana de 1723 podia oferecer. Fraseado cristalino
                e sensibilidade extrema. Um Mork no seu melhor.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]






  • Yo-Yo Ma
  • English Chamber Orchestra
  • José-Luis Garcia
  • Sony, SMK 36674
"o belo": (Proposta fabulosa de Ma, com pianíssimos deslumbrantes, sofisticação
                e leveza. Um registo refinado para ouvintes refinados.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]






  • Steven Isserlis
  • The Chamber Orchestra of Europe
  • Roger Norrington
  • RCA, 09026 68578 2
"o belo": (Um registo ausente de excessos. A elegância e a sensibilidade dominam
                neste passeio pelos jardins da corte austríaca. Uma escolha de excelência.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]






  • Lynn Harrell
  • Academy of St. Martin in the Fields
  • Neville Marriner
  • EMI, 5 74569 2
"o belo": (Sonoridade calorosa e laivos de virtuosismo romântico no limite do
                adequado. Uma opção de qualidade a ter em conta também.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]





  
   
✰ Outras sugestões:
  • Matt Haimovitz/Andrew Davis/English Chamber Orchestra/Deutsche Grammophon, 429 219-2 GH (Uma performance inspirada do jovem Haimovitz que merece ser ouvida também.), [1-3] [youtube]




  • Anne Gastinel/Yuri Bashmet/Solistes de Moscou/Auvidis Valois, V4820 (Para os apreciadores da sonoridade exuberante do violoncelo Matteo Gofriller do mestre Pablo Casals.), [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]




  • Ofra Harnoy/Paul Robinson/Toronto Chamber Orchestra/RCA, 09026-60722-2 (Sonoridade luxuriante e idiossincrasias típicas de Harnoy. A descobrir.), [1-3] [youtube]






∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞






Joseph Haydn [1791]




∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞




A Mams e o Johnny...

 [Algarve, Monte Gordo, Agosto de 2010]



... que, entretanto, cresceu.


 [Porto, Janeiro de 2023]


 [Lisboa, Fundação Oriente, Novembro de 2021]

-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Sem comentários:

Enviar um comentário