sexta-feira, 25 de dezembro de 2020


47. V. Williams: sinfonia nº 3, "Pastoral" |

A Sinfonia nº 3, de Ralph Vaughan Williams, uma "Pastoral" de sinceridade sobre um tempo vivido entre o imaginário dos prados ingleses e a realidade de um monte francês.







À memória das cores da Aurora nascida naquele lugar milenar...
...primeiro estranha-se, depois entranha-se e, no fim, permanece em nós.







Por certo existirão poucos exemplos de compositores que tenham tido a atitude que o inglês Ralph Vaughan William (1872-1958) tomaria perante as circunstâncias de uma guerra mundial.
A 1ª Guerra Mundial rebentaria no Verão de 1914, e, na véspera de ano novo, um Vaughan Williams com 42 anos de idade alistar-se-ia como soldado no Corpo Médico do Exército Real britânico. O compositor famoso pelo sucesso da Fantasia sobre um tema de Thomas Tallis, A Sea Symphony e A London Symphony, era o mais velho dos recrutas de então. Após ter recebido treino em Inglaterra, viria a servir em França e em Gallipoli como condutor de ambulâncias, na recolha dos feridos dos campos de batalha e transporte aos hospitais de campanha. Seria posteriormente transferido para a Artilharia Real de Garrison, onde viria a servir novamente em França, tendo sido nomeado Director de Música da 1ª Força do Exército Expedicionário Britânico depois do Armistício, cargo que desempenharia até à desmobilização e regresso a Inglaterra no início de 1919.
Não será, por isso, porventura difícil de imaginar, a terrível incerteza sobre o regresso ao trabalho que certamente ocorreria na mente de Vaughan Williams, depois de uma longa pausa criativa e da perda de muitos dos seus amigos durante a guerra. Os níveis de confiança e de motivação não deveriam ser, seguramente, os mais altos. Felizmente, viria a recuperar, pouco-a-pouco, os hábitos diários de trabalho com a necessidade de revisão de algumas obras que teria composto antes do início do conflito. Mais tarde, Hugh Allen, o novo director do Royal College of Music, viria também a convidá-lo para lecionar composição naquela escola, evoluindo, deste modo, do Ralph, o anterior aluno de Sir Hubert Parry nesse estabelecimento de ensino, ao professor Vaughan Williams e à transmissão dos conhecimentos que aprendera, e de outros que, entretanto, adquirira nas avenidas de Paris... e nos campos franceses.
Escrita nessa época, a sua Sinfonia nº 3, Pastoral, seria em certos aspectos a mais singular de todas as suas sinfonias, tendo dado origem a reacções fortemente divergentes também por esse motivo.
Alguns viriam a considerá-la como o seu Requiem à 1ª Guerra Mundial, a sua resposta emocional à miséria e ao sofrimento que teria testemunhado numa tragédia que odiava, enquanto outros entenderiam destacar a evocação visionária das paisagens rurais britânicas, com os animais a espreitarem pelas vedações. Gosto de acreditar que teria sido a experiência sublinhada pelos primeiros, a disfarçar-se e pintar de cinza os prados observados pelos segundos. Os prados continuariam os mesmos... os olhos é que seriam já outros... e viam uma Pastoral de terra devastada.
Na verdade, o compositor viria a referir o seu próprio entendimento na carta que escreveria à sua futura esposa, Ursula, em 1938: "Na realidade é uma música de tempos de guerra, a maior parte dela foi incubada quando costumava ir, noite após noite, com a ambulância a Écouvres e subia ao cimo de um monte onde parava a admirar a maravilhosa paisagem de um por do sol ao estilo de Corot [pintor Realista Francês do séc. XIX] - não é nada a brincadeira de crianças que a maioria das pessoas tem por garantida". Porventura a justificação para uma música maioritariamente calma e elegíaca viria dali, e seria também dali, rodeada pela neblina francesa de uma guerra e pelas sonoridades francesas de Ravel; com quem tinha estudado em Paris, em 1908, durante os três meses eventualmente mais marcantes do seu percurso académico, que esta música pacífica começaria a tomar forma em 1916.
Esta obra viria a ser trabalhada de forma mais intensa a partir de 1919, tendo ficado concluída em Junho de 1921, dois anos depois de ter saído do exército... e sido estreada num concerto da Royal Philharmonic Society, no Queen's Hall de Londres, a 26 de Janeiro de 1922, com a soprano Flora Mann e a direcção de Adrian Boult, o protagonista, aliás, de uma das visões da partitura revista em 1951, que proponho escutar, num registo de 1968.
Pintura tonal profundamente inspirada pelas melodias do folclore britânico e de inegável influência francesa (numa harpa logo ao início...), esta música viria a evitar, de forma notável, a alegada monotonia de três andamentos lentos através de uma unicidade que é atingida pelo ambiente e estado de espírito, mais do que pelos cânones sinfónicos tradicionais. Com efeito, alguém viria a sugerir isso mesmo, na nota de programa para o concerto de estreia: "O ambiente desta sinfonia é, como o título sugere, quase totalmente calmo e contemplativo - existem poucos fortíssimos e poucos allegros. A única passagem realmente rápida é a da coda do terceiro andamento, e é sempre em pianíssimo. Na forma segue de perto o padrão clássico e é em quatro andamentos".
Deste modo, os quatro andamentos iniciar-se-iam [I] com uma admissível "cena junto ao ribeiro" segundo Ravel, protagonizada por uma harpa ondulante e um tema no violino que é imitado pelo oboé. O segundo andamento [II] abriria com um maravilhoso solo de trompa e culminaria numa cadência de trompete inspirada por outra memória dos tempos de guerra, neste caso, a de um corneteiro a praticar ao "nascer da Aurora", próximo do campo de batalha, para chegar à 8ª mas a ficar-se pela 7ª... Já as sonoridades massivas e simultaneamente misteriosas do terceiro andamento [III], descrito pelo autor como "a natureza de uma dança lenta", teriam sido concebidas para uma cena de Falstaff e para as fadas na ópera Sir John apaixonado (As alegres comadres de Windsor), enquanto que o quarto andamento [IV] iniciar-se-ia com uma canção sem letra ouvida resignadamente fora de palco, num hum-hum-hum ausente de alegria, emitido, quem sabe, por uma camponesa num campo... de batalha (como o de Crécy ou Agincourt, onde tantos dos seus amigos perderiam a vida, incluindo George Butterworth, um dos compositores mais promissores da sua geração), passando pela esperança reflectida numa das suas mais belas melodias, até ao silencio final, como um eco de "coisas antigas infelizes e batalhas de há muito tempo atrás". Quatro andamentos que reflectem a expressão mais pessoal de Vaughan Williams, o testemunho sincero e eminentemente real de uma vida que não seria mais a mesma depois daquele holocausto. 
Paixões profundas num estado próximo da ebulição, debaixo de um tapete verde de contemplação... porventura aborrecidas para alguns... particularmente inquietantes para mim...
Intuição? Queira O Menino que não... no meio de todo o infortúnio amanhecem Esperança e Salvação.          
Nuno Oliveira    




"Sinfonia nº 3, "Pastoral""


✨ Extractos que proponho para audição: (ver também publicações nº 6, 55 e 84)
  • Heather Harper
  • London Symphony Orchestra
  • André Previn
  • RCA, GD 90503
"o belo": toda a obra (Interpretação extraordinariamente bela e refinada. A pura
                magia do som a partir da batuta do mestre Previn. Uma maravilha a não
                perder!), com alguns destaques, identificados a seguir;
                [I]: tutti, madeiras e cordas (A esperança que amanhece nas margens de um
                ribeiro impressionista...!) [youtube]
                [II]: trompa e oboé, aos 0:00-1:30; trompete, aos 4:23-5:40 (A incerteza que
                amanhece na orla de um acampamento de irmãos...) [youtube]
                [III]: metais e tutti, aos 1:49-2:48 e 4:00-4:40 (A confiança num amanhecer
                diferente...) [youtube]
                [IV]: tutti, aos 2:05-4:12 ("o belo" desejo de um novo amanhecer!) [youtube]






  • Amanda Roocroft
  • London Philharmonic Orchestra
  • Bernand Haitink
  • EMI, CDC 5 56564 2
"o belo": (A dedicação e inteligência numa leitura muito pessoal do mestre
                Haitink. Elevada expressividade e generosas doses de tensão.)
                [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]






  • Margaret Price
  • London Philharmonic Orchestra
  • Adrian Boult
  • EMI, CDM 7 64018 2
"o belo": (O equilíbrio entre intensidade e contemplação por quem sabe, porque
                esteve lá... desde o primeiro dia: Sir Adrian Boult.)
                [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]






  • Linda Hoenfeld
  • Philharmonia Orchestra
  • Leonard Slatkin
  • RCA, 09026-61194-2
"o belo": (Registo atmosférico e clímaces arrebatadores. Slatkin no seu melhor.)
                [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]






  • Yvonne Kenny
  • The London Symphony Orchestra
  • Bryden Thomson
  • Chandos, CHAN 8594
"o belo": (O som é maravilhoso e a leitura do mestre inglês não lhe fica atrás.)
                [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]








∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞







Vaughan Williams [Royal Garrison Artillery, 1917]




Vaughan Williams (à dir.) [Royal Ambulance Corps, 1915]





∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞




  
A Aurora em mim.




 -------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Sem comentários:

Enviar um comentário