sábado, 12 de dezembro de 2020


44. Grieg: Peer Gynt |

A música do "Peer Gynt" de Edvard Grieg, para a história que Henrik Ibsen não seria capaz de curar.






Para os meus familiares da pequena aldeia de Candam, que me embalaram a infância do Souto Rio ao Casarão. Os melhores amanheceres de criança vivi-os ali, naquele presépio, junto deles.


(E à memória de uma noite em Paris, no Théâtre du Châtelet, na companhia de Grieg e do seu Peer Gynt, juntamente com Järvi e a Orquestra Nacional de França [em 03-04-2014])






A música de Edvard Grieg (1843-1907) ressoa até aos nossos dias por uma simples razão: ela reflecte as suas raízes Norueguesas e, por esse motivo, é a voz desse país no mundo, uma voz que todos nós provavelmente escutámos alguma vez ao longo da vida, uma voz que foi possível soar porque em 1874, um governo iluminado de um país não menos luminoso, atribuiria a um jovem na casa dos trinta anos uma remuneração anual de 1600 kroner, oferecendo-lhe, deste modo, a liberdade necessária para a dedicação exclusiva à composição... daquela voz. Ecos de uma decisão que ainda hoje nos continuam a chegar.
O seu talento para a música cedo seria reconhecido pela sua cidade natal de Bergen, levando-o mais tarde, aos quinze anos de idade, a prosseguir os seus estudos na Alemanha, no Conservatório de Leipzig, instituição que segundo Edvard não lhe teria trazido o entendimento que esperava da orquestra, levando-o mesmo a enterrar uma primeira sinfonia que teria escrito em 1864 (obra entretanto exumada, com cautelosa descrição, no início da década de 1980).
Edvard, entretanto, viajaria para Roma em Março de 1866, e seria no Clube Escandinavo dessa cidade que viria a conhecer Henrik Ibsen (1828-1906), o maior dramaturgo norueguês daquela época, e, também, alguém de quem nunca viria a ser próximo, apesar da forte relação de trabalho decorrente da criação da música de cena para a sua peça Peer Gynt, que viria a acontecer mais tarde. Na realidade, nenhum dos dois parecia inteiramente feliz com esse casamento artístico (ou com essa aventura de uma noite só, como se viria a verificar...), entre o tímido e amável jovem Edvard e o desesperado e pouco musical Henrik, como aliás poderá ser atestado, em 1896, numa troca de palavras entre Ibsen e August Lindberg, o actor e director teatral sueco, que estaria a pensar encomendar a Grieg a música para uma produção de Brand (drama também de Ibsen).
Ibsen: - Porquê Grieg?
Lindberg: - Ora, ele escreveu a música para Peer Gynt...
Ibsen: - Oh, e tu pensas que isso é bom, não é?
Revelações que nem trinta anos teriam conseguido curar...
Se porventura não era abissal aquilo que os separava (ou não alcançasse a música para a Morte de Ase e para o No átrio do Rei da Montanha, de Edvard, o patamar poético e fantasioso do texto de Henrik), já a lacuna entre a suavidade e a doçura do som, e a imoralidade e a pobre condição de vida da cena, seria o que certamente os viria a divorciar (ou, no mínimo, a provocar a saída prematura do leito amoroso antes do nascer do sol, prevenindo, de forma adequada, evitáveis olhares desajeitados e silêncios constrangedores posteriores...).
Peer Gynt, o poema dramático de Ibsen, parte conto popular, parte reflexão filosófica, parte sátira, parte comédia (parte...), escrito um ano após o seu encontro, em 1867, viria a preceder as suas obras realistas "O pato selvagem" e "Casa de bonecas". O protagonismo é-nos apresentado por uma figura complexa (surreal... ismo a espreitar...), o camponês Peer Gynt, consumido pela ambição de poder e riqueza, um sonho que quase o viria a destruir não fosse a redenção obtida através do amor e do carácter firme de Solveig, a sua verdadeira (e paciente...) cara metade.
Ibsen não teria, por aquela altura, a intenção de levar à cena o seu Peer Gynt, no entanto, em 1874 e quando a sua obra já se encontrava na terceira edição, decidiu adaptá-la ao teatro, tendo-se lembrado de Grieg, o mais conceituado compositor norueguês, quando os seus pensamentos lhe sugeriram a ideia de utilizar um extenso acompanhamento musical, pelo que o viria a convidar em Janeiro desse ano, descrevendo-lhe com "rigoroso detalhe" as suas pretensões musicais para a peça.
Grieg aceitou a enorme tarefa que teria pela frente, tarefa que seria testemunhada por Frants Beyer, o seu amigo mais próximo, e por outro grande dramaturgo norueguês daquela época, Björnstjerne Björnson, a quem teria inclusive desabafado, de que Peer Gynt seria: "Uma história pouco musical e o início de um pesadelo". 
Contudo o pesadelo lá começou e se desenvolveu, tendo o produto final sido levado à cena pela primeira vez a 24 de Fevereiro de 1876, em Oslo, sem as presenças expectáveis de Ibsen (ausente do país...) e de Grieg (sossegado na sua cidade de Bergen...), tendo atingido de imediato o enorme sucesso comprovado pelas trinta e sete apresentações que lhe seguiriam, até ao incêndio, que viria a destruir os cenários e o guarda-roupa, que lhe pôs fim (o surreal que espreita, às vezes, na vida real...).
Este grande sucesso tomariam o escritor e o compositor de surpresa, visto que nenhum deles esperaria que a peça fosse também apreciada fora da Noruega, o que sucedeu. Na realidade, a partitura de Grieg seria bem mais ambiciosa do que tradicionalmente se acreditaria, apresentando, nada mais nada menos, que trinta e dois números musicais com cerca de noventa minutos de duração, aos quais seriam ainda acrescentados mais alguns após as revisões realizadas mais tarde, durante as apresentações em Copenhaga, em 1886, e, novamente em Oslo, em 1892. 
Já em 1886, Peters, a sua editora de Leipzig, escrever-lhe-ia, oferecendo-se para publicar toda a música de cena, proposta à qual Grieg responderia com a sua intenção de orquestrar uma suite para uso em programas de concerto, escapando, assim, ao "rigoroso detalhe" de uma orquestra de fosso desnutrida, para aplicar os ensinamentos de Leipzig, entretanto amadurecidos, a uma sala de concertos e usufruir, simultaneamente, dos aplausos da sua audiência e dos cheques (mates...) do seu editor (...isolando cada vez mais o "Rei" Ibsen). O resultado terão sido as suas duas Suites de Peer Gynt, a nº 1, op. 46, de 1888, e a nº 2, op. 55, de 1892, obras de enorme popularidade que terão sido interpretadas exaustivamente durante a vida do compositor, obrigando-o, inclusivamente, a programá-las em praticamente todas as apresentações que fazia como maestro fora do seu país. Um preço da fama relativamente fácil de pagar, neste caso.
Cada uma destas suites seria composta por quatro quadros. A primeira suite iniciar-se-ia com o famosíssimo Amanhecer [I], o prelúdio do 4º acto de Peer Gynt, que viria a ser provavelmente a peça de música mais conhecida que viria a escrever. A melodia tenta descrever o nascer do sol (...na fresca Escandinávia?) no quente Norte de África (...pois, não!), local onde Peer (...um rapaz da montanha?), apresentado como um capitalista oportunista de meia-idade (...e não, outra vez!), se encontraria e onde a maior parte deste acto é passado. A Morte de Ase [II], o segundo quadro, chegar-nos-ia no final do 3º acto, no momento em que a mãe de Peer, Ase, se encontra à beira da morte, numa situação de extrema pobreza, que é sentida através de uma cabana ausente de todos os seus pertences. No terceiro quadro, Dança de Anitra [III], encontraríamos Peer entretido pelo Chefe Beduíno, sucumbindo ao encanto das suas dançarinas, em particular à filha do Chefe, Anitra, que dançaria para ele de forma sedutora (um flirt que seguramente viria a tornar a sua aventura africana muito mais agradável... embora se admita que Solveig possa porventura discordar...). Esta suite concluir-se-ia com No Átrio do Rei da Montanha [IV], o quarto quadro que conta o confronto de Peer com o Rei dos Trolls, rodeado de trolls e duendes no alto das montanhas norueguesas. Ainda sobre esta música, tornar-se-ia célebre a frase que Grieg viria a escrever ao seu grande amigo Beyer, enquanto trabalhava na partitura, em 1874: "Escrevi alguma coisa para o átrio do rei da montanha que cheira muito a bosta de vaca, ultra-Norueguismo e autossatisfação, que eu literalmente não aguento ouvir". O que Edvard não aguentaria ouvir, muitos outros adorariam escutar, um grupo extenso, seguramente, e onde, como poderão compreender, me incluo eu.
Já para a segunda suite, Grieg viria a utilizar a música que abre o 2º acto, o Rapto e lamento de Ingrid [V], uma cena que retrata o rapto de uma noiva durante a boda, um acto perpetrado por Peer, de carácter aparentemente mais latino que nórdico (... o do vinho e das mulheres, que ainda é recordado às vezes... quando a vantagem é escassa), jovem de quem se viria rapidamente a cansar, deixando-a logo de seguida... pelo que se supõe que o seu lamento tenha vindo daí. Seguir-se-iam a Dança Árabe [VI] que precederia a Dança de Anitra do 4º acto, o Retorno de Peer Gynt a casa [VII], o prelúdio do 5º acto que descreve, entre outros, uma tempestade marítima à qual Peer sobreviveria, e a Canção de Solveig [VIII] final, onde Solveig nos conta (pacientemente...) a sua esperança no regresso de Peer (passadas as suas "aventuras"...), trazendo de novo a acção para a Noruega no final do 4º acto.
Peer Gynt atrairia, ainda, o agrado inesperado do famoso crítico vienense, Eduard Hanslick, que em 1891 viria a afirmar com elevada convicção: "Porventura daqui a alguns anos, o Peer Gynt de Ibsen viverá apenas através da música de Grieg". Touché... neste caso! Com efeito, o crítico teria aqui a razão que, por outro lado, lhe viria a faltar sobre a longevidade da música de Bruckner, pois ninguém é perfeito, e muito menos Hanslick, a quem dificilmente consigo perdoar alguns comportamentos em desfavor do mestre de Linz, um mago do transcendental e do espiritual, e, por esse motivo, porventura algo do surreal também.
Ao sentimento de Hanslick, de 1891, seguir-se-ia o de Ibsen, em 1892, com a admissão de que o sucesso da sua peça se devia em grande parte à música de Grieg (finalmente...), palavras seguramente difíceis de proferir por aquela altura, atendendo às futuras "revelações que nem trinta anos teriam conseguido curar"... aquela dor residual... provocada, quem sabe, pela audácia e sucesso de um "Cavaleiro" chamado Edvard Grieg!?

Nuno Oliveira





"Peer Gynt", música de cena op. 23 e suites p/ orquestra op. 46 e op. 55


✨ Extractos que proponho para audição:
  • Berliner Philharmoniker
  • Herbert von Karajan
  • Deutsche Grammophon, 410 026-2 GH (suites)
"o belo": toda a obra (Atmosfera impressionante e empenho total, com os músicos de
                Berlim e von Karajan no seu melhor. Simplesmente a não perder!), com alguns
                destaques, identificados a seguir;
                [I]: madeiras e tutti, aos 0:00-1:15 (Este é "o belo" legado da humanidade!) [youtube]
                [II]: cordas, aos 0:00-2:20 ("o belo" na morte, segundo as cordas friccionadas!) [youtube]
                [III]: tutti (Brincadeiras ou sedução? Talvez sim... Talvez não...) [youtube]
                [IV]: tutti, aos 0:00-2:05 (Não cheira nada mal e cai muito bem no ouvido...) [youtube]
                [V]: tutti, aos 0:26-3:20 (A tristeza profunda e o abandono que também podem ser 
                "o belo"...) [youtube]
                [VI]: tutti, aos 1:28-3:12 (...Brincadeiras ou sedução? Talvez a preparação...) [youtube]
                [VII]: tutti, aos 0:00-2:53 (Allegro agitato de perigos, até à...) [youtube]
                [VIII]: tutti, aos 0:41-2:53 (...virtude que é ser paciente e perdoar...) [youtube]






  • Barbara Bonney, Marianne Eklöf, Urban Malmberg, Carl Holmgren, outros
  • Göteborgs Symfonyker
  • Neeme Järvi
  • Deutsche Grammophon, 427 325-2 GH (música de cena)
"o belo": (Interpretação de excepção, viva e vibrante. Sala quente em Gotemburgo e o
                coração cheio dos solistas e do mestre Järvi, um especialista desta obra.)
                [Completo] [youtube]
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  • Ilse Hollweg
  • Royal Philharmonic Orchestra
  • Thomas Beecham
  • EMI, 5 66914 2 CDM (música de cena)
"o belo": (Um registo de referência e uma experiência gratificante sobre o que é a
                música dirigida pelo aclamado mestre inglês. A não perder.)
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  • City of Birmingham Symphony Orchestra
  • Sakari Oramo
  • Erato, 8573-82917-2 (suites)
"o belo": (Performance magistral, o detalhe e expressividade de referência por
                interpretes comprometidos com a obra e com a visão esculpida de quem
                conviveu com esta música desde sempre: Sakari Oramo.)
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  • Elly Ameling
  • San Francisco Symphony
  • Edo de Waart
  • Philips, 411 038-2 PH (música de cena)
"o belo": (Interpretação bem conseguida onde se destacam a maravilhosa voz de
                 Ameling e a cumplicidade entre os músicos da costa do pacífico e o mestre
                holandês. Uma excelente escolha.)
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  • San Francisco Symphony
  • Herbert Blomstedt
  • London, 425 857-2 LH (suites)
"o belo": (Interpretação admirável pelos músicos norte-americanos e o mestre Blomstedt.
                As sonoridades cheias do Davies Hall de São Francisco, para ouvir com atenção.)
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  • Lucia Popp
  • Academy of St. Martin-in-the-Fields
  • Neville Marriner
  • EMI, CDC 7 470032 (música de cena)
"o belo": (Som orquestral e coral bem captado. Popp sumptuosa e o conhecimento
                da obra pelo mestre Marriner numa opção a ter em conta também.)
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✰ Outras sugestões:
  • Vernon Handley/Ulster Orchestra/Chandos, CHAN 8524 (suite nº 1) (Um agrupamento de grande qualidade dirigido com a maestria a que Vernon Handley nos habituou.), [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube] 










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Edvard Grieg [Bergen, ca. 1900]




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"A embalar o Candam" 




 No Théâtre du Châtelet... com Grieg [Paris, 2014]


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