terça-feira, 10 de novembro de 2020

 

41. Mahler: sinfonia nº 2, "Ressurreição" |

A Sinfonia nº 2, de Gustav Mahler, a "Ressurreição" de um drama épico modelado pelo sublime, incompreendido pelo contrário, venerado por outro lado... 






À memória do meu amigo José Lourenço de Oliveira, no aniversário do centenário do seu nascimento.

(Acredito que as lágrimas de felicidade que derramaste num sábado em festa, não foram em vão... Oxalá que essas lágrimas ressuscitem, e da mesma forma se derramem, a cada geração. [13-02-1999])  



(E à recordação de uma maravilhosa segunda de Mahler que assisti no Coliseu de Lisboa, interpretada pela San Francisco Symphony, Michael Tilson Thomas, Laura Claycomb, Katarina Karnéus e o nosso Coro Gulbenkian! [6-6-2011])






- "Was denkst du, Meister?"
- "Encontramo-nos junto à urna de uma pessoa bem-amada. Toda a sua vida, as suas lutas, as suas paixões, os seus sofrimentos e realizações na Terra passam por nós mais uma vez, pela última vez. E agora, neste solene e profundo momento, onde as confusões e as distracções do dia-a-dia são desvendadas como uma venda levantada dos nossos olhos, uma voz de inspiração solene arrefece o nosso coração, uma voz que, cega pela miragem de uma vida quotidiana, usualmente ignoramos: E a seguir? O que é a vida e o que é a morte? Porque sofreste? Porque viveste?".
Esta reflexão, possível de atribuir ao comum dos homens, teria sido na realidade utilizada por Gustav Mahler (1860-1911) como programa de introdução da sua Sinfonia nº 2, "Ressurreição", uma "obra de arte total" (como ele próprio o diria), puro entretenimento, por um lado, um drama religioso e social, por outro... estampados, os dois, nas faces preciosas da mesma moeda estética. A criação da sua segunda sinfonia iniciar-se-ia em 1888, com o poema sinfónico "Todtenfeier" (Rituais fúnebres), no qual o herói retratado na sua primeira sinfonia se retira para o merecido descanso final. Estas ideias para um fim inspirariam um outro princípio (...porventura a espelhar o círculo da vida, a morte e desejada ressurreição... pelo menos para mim, um crente Nele, confiante nela e esperançoso nos dois... Deus e ciência), já que mais tarde se viriam a tornar no primeiro andamento desta sua segunda sinfonia (um Allegro maestoso inspirado no momento da morte de um herói), e a contribuir, durante o Verão de 1893, para a composição do segundo andamento (um Andante a lembrar a vida desse herói, a sua juventude e perda da inocência), e do quarto andamento, que incluiria a maravilhosa canção "Urlicht" (Luz Primordial), com poema da colectânea popular "Des Knaben Wunderhorn" (A Trompa mágica do menino), sinónimo da redescoberta de uma fé ingénua, indispensável à salvação da alma... uma salvação seguramente pretendida por todo aquele, herói ou não, que constatasse os sentimentos de desespero e incredulidade em si próprio e no seu Deus, retratados Mahlerianamente (magistralmente! e inconfundivelmente!) no Scherzo do terceiro andamento antecessor.
Por esta altura Mahler era o maestro principal da Ópera de Hamburgo, cujas temporadas eram dominadas pelos concertos apresentados pelo idolatrado maestro e pianista, Hans von Bülow (que mais tarde viria a substituir...), sabendo-se que quando retorna a esta cidade para a temporada de 1893-1894, estes segundo e quarto andamentos já se encontrariam terminados. No entanto, o principal problema permaneceria na pergunta: "Como concluir uma música com tamanhas e profundas implicações?"... resposta que o compositor viria a encontrar em Março de 1894, no funeral do seu amigo von Bülow, que entretanto falecera a 7 de Fevereiro, no Cairo, cidade onde se encontraria a recuperar da doença neurológica que o viria a vitimar. A solução chegaria, assim, do interior da Michaelis-Kirche de Hamburgo (lugar de culto versus mensagem divina?... a especulação é válida...), através dos sons ecoados por um coro de rapazes que entoaria a "Die Auferstehung Ode" (Ode da Ressurreição), com texto do poeta Friedrich Klopstock (famoso este "aquático" Friedrich... desde os tempos do jovem Wolfgang). Como contaria posteriormente ao maestro Anton Seidl: "as palavras "Levanta-te novamente, sim, tu te levantarás novamente", atingiram-me como um raio de luz... e tudo me foi revelado de forma clara", teriam ajudado o autor a ultrapassar a neblina das obsessões com a morte e com a futilidade da vida que lhe dominariam a mente por aquela altura (continuando a persistir, desafortunadamente, noutras...). Três meses depois a obra ficaria concluída com o último andamento, o quinto, contribuindo, para isso, os acontecimentos penosos decorrentes da fatalidade de von Bülow, de alguém que teria expresso uma grande admiração pelo maestro Gustav Mahler (...porventura a visão do pianista estabelecido) e uma opinião extremamente crítica do compositor modernista com o mesmo nome (...seguramente a visão do maestro classicista). É curioso como os ideais que defendemos na vida são, por vezes, contrários àqueles que nos imortalizam na morte...
A obra estrear-se-ia no ano seguinte, a 13 de Dezembro de 1895, em Berlim, sob a direcção do compositor, uma crítica hostil e o acolhimento caloroso do público (...que, no final de contas, é o que conta e interessa). A carreira notável desta obra-prima, porventura a mais famosa do compositor, começara junto às Portas de Brandeburgo.  
Mahler acreditava que uma sinfonia deveria ser como "um mundo", uma composição desenvolvida por várias imagens e experiências, e esse entendimento reflectir-se-ia numa obra com mais de oitenta minutos de duração (na maior parte dos casos, exceptuando-se, por exemplo, as visões de Otto Klemperer) e na utilização de uma orquestra volumosa, à qual se adicionaria um agrupamento de metais e percussão fora de palco (conveniente para os necessários efeitos sonoro-espaciais característicos dum drama entre o céu e a terra... de elementar dedução, meu caro Bülow), para além das vozes humanas, de aparência celestial, sob a forma de coro e duas solistas, utilizados na interpretação dos poemas "Urlicht" e "Die Auferstehung Ode" presentes nos dois andamentos finais.
Esta obra apresentaria, assim, um vasto alcance emocional e uma elevada gama de dinâmicas, o que lhe conferiria um caracter marcante. A primeira entrada do coro é porventura a mais suave de todo o reportório, coro que, no entanto, mostraria todo o seu poder avassalador no final, como pretenderia propositadamente o autor: "Que efeito poderia ter atingido com o coro e o órgão se os tivesse utilizado mais cedo..., mas eu queria guardá-los para o clímax final..." (que é sempre o melhor... com o replicar de sinos à mistura... em adequados movimentos badalares).
O compositor viria ainda a fornecer as notas programáticas para a sinfonia (utilizadas pela primeira vez na estreia de Dresden, a 20 de Dezembro de 1901). O longo primeiro andamento [1] apresentaria quatro elementos, uma música fúnebre ora épica ora destemida, melodias nostálgicas (lembranças de alguns dos seus heróis... Beethoven, Wagner, Bruckner) e um vasto desenvolvimento com momentos de triunfo. Seguir-se-iam dois andamentos mais curtos: uma "memória de um raio de luz, de uma felicidade partilhada à muito esquecida" [2], e as sonoridades burlescas duma versão da canção de Mahler do "Sermão de St. António de Pádua aos peixes" [3], onde à ironia apocalíptica das Igrejas vazias (eventualmente, de Pádua...) se juntariam os fartos peixes (porventura, do Tejo do St. Lisboeta...), bizarramente inconvertidos sob vagas medianamente ondulantes (...que se poderão escutar com a devida atenção e recomendável imaginação). Surgiria depois a canção Urlicht [4] e a expressão da esperança numa voz que guiaria uma alma atormentada até Deus, e o (Julgamento!) final [5], ligado ao primeiro andamento pela emoção e conteúdo temático, numa viagem pelos diversos estados de espírito das almas genuínas [5a-5f], até ao exultante triunfo final [5g] (com a indispensável ajuda dos metais, coro, órgão e sinos, como seria aliás de esperar...) e ao momento em que, nas palavras do compositor: "Tudo soa como se tivesse chegado a nós vindo de outro mundo, e eu acho que ninguém lhe conseguirá resistir. Somos atirados para o chão e depois elevados, sob as asas dos anjos, ao mais alto dos céus"...
... de onde me sorriem e acenam, num murmúrio suave dum "Até já"...
- ..."Até já, avô."    

Nuno Oliveira




"Sinfonia nº 2, em dó menor, "Ressurreição""


✨ Extractos que proponho para audição:
  • Arleen Augér, Jane Baker
  • City of Birmingham Symphony Orchestra & Chorus
  • Simon Rattle
  • EMI, CDS 7 47962 2
"o belo": toda a obra (Inspiração e expiração superlativa... na respiração total da obra
                genial de Mahler por Augér, Baker e Rattle. Registo simplesmente a não perder,
                porventura o melhor que Simon Rattle fez até hoje. Brutal!)com alguns
                destaques a seguir; [youtube]
                [1] - cordas e tutti, aos 0:00-0:55, 2:42-3:39, ... (Depois da angústia inicial, a
                expressão da beleza, recordações das histórias de Beethoven e Wagner e muito
                da vida de Mahler!) [youtube]
                [2] - tutti (Uma dança do divino (Beethoven...) em forma de valsa...[youtube]
                [3] - tutti e metais aos 8:27-9:08 (Algo grotesco? Talvez... Algo macabro?
                Porventura... Genialmente Mahleriano? Sem dúvida! Um triunfo ao som dos
                hinos dos lugares das almas e das histórias de deuses antigos contadas junto
                ao Reno e recordadas lá para os lados de Bayreuth...[youtube]
                [4] - solista (A beleza da luz divina na penumbra duma paz final... pela voz
                celestial de Janet Baker. "O belo" em estado puro![youtube]
                [5a] - tutti (O início da subida e a acústica natural, entre vales e montanhas,
                ecoada a várias altitudes...) [youtube]
                [5b] - tutti (A contemplação dum passado-presente-futuro visto de cima...[youtube] 
                [5c] - tutti (A confiança numa nova etapa, com algumas incertezas pelo meio...)
                [youtube] 
                [5d] - tutti (A chegar perto, muito perto de aparentes portões e dum convite para
                entrar...[youtube] 
                [5e] - solistas, coro e tutti (Entrei... (o convite sussurrado em coro... tão apelativo... 
                impossível não aceitar...)[youtube] 
                [5f] - solistas, coro e tutti (Sorri... (aos anjos que cantavam...)[youtube] 
                [5g] - solistas, coro e tutti (Vivi! (um (re-3:51)começo de forma celestial até ao...))
                [youtube]  






  • Barbara Hendricks, Christa Ludwig
  • New York Philharmonic, The Westminster Choir
  • Leonard Bernstein
  • Deutsche Grammophon, 423 395-2 GH2
"o belo": (Um marco da discografia do mestre Bernstein gravado ao vivo em Nova Iorque.
                A tensão sente-se, a expressividade é madura e a sonoridade é encorpada, com
                destaque para o final impressionante. Um registo incontornável, de conforto para
                o inverno.)
                [1] [youtube][youtube][youtube][youtube][youtube],
                [2] [youtube][youtube][youtube][youtube][youtube],
                [3] [youtube], [youtube][youtube],
                [4] [youtube],
                [5] [youtube][youtube][youtube][youtube][youtube][youtube],
                     [youtube][youtube][youtube][youtube][youtube]






  • Felicity Lott, Julia Hamari
  • Oslo Philharmonic Orchestra & Chorus, Latvian State Academic Choir
  • Mariss Jansons
  • Chandos, CHAN 8838/9
"o belo": (Interpretação refinada e maravilhosamente sentida por Mariss Jansons e os
               músicos de Oslo. Vozes intensas e "o belo" Urlicht de cortar a respiração. Bravo!)
               [1-5] [youtube]






  • Benita Valente, Maureen Forrester
  • London Symphony Orchestra & Chorus, BBC Welsh Chorus, outros  
  • Gilbert Kaplan
  • Conifer, 75605 51337 2
"o belo": (Sonoridade detalhada, apelativa e repleta de entusiamo. Um belo exemplo das
                capacidades virtuosísticas de Kaplan. A não perder.)
                [1-5] [allmusic]






  • Elisabeth Schwarzkopf, Hilde Rössl-Majdan ou Heather Harper, Janet Baker
  • Philharmonia Orchestra & Chorus ou Chor und Symphonie-Orchester des Bayerischen Rundfunks
  • Otto Klemperer
  • EMI, 5 67235 2 ou 5 66867 2
"o belo": (Como diria Gustav Mahler após um concerto em Berlim, no ano de 1905,
                a um jovem de 20 anos que dirigira o ensemble fora de palco: "Muito bem!".
                Esse jovem era Otto Klemperer e estes são os seus registos de referência absoluta.)
                Great Recordings of the Century: [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube],
                [4] [youtube], [5a] [youtube], [5b] [youtube], [5c] [youtube], [5d] [youtube],
                [5e] [youtube], [5f] [youtube], [5g] [youtube]
                The Klemperer Legacy: [1-5] [youtube]







  • Heather Harper, Helen Watts
  • London Symphony Orchestra & Chorus
  • Georg Solti
  • Decca, 448 921-2 DF2
"o belo": (Um registo mítico de Solti nos anos 60, com uma LSO em topo de forma
                e porventura o mais "o belo" Urlicht que conheço, na extraordinária voz de
                Helen Watts. A não perder também.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube], [4] [youtube], [5a] [youtube]






  • Melanie Diener, Petra Lang
  • Royal Concertgebouw Orchestra, Prague Philharmonic Choir
  • Riccardo Chailly
  • Decca, 470 283-2 DH
"o belo": (O carácter do mestre italiano e a tradição dos músicos do Concertgebouw,
                num mergulho em Mahler e imersão numa gravação portentosa.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube], [4] [youtube], [5a] [youtube]







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Gustav Mahler [Hamburgo, 1897]



Gustav e Alma na Suíça para um concerto da sua Sinfonia nº 2 [Basileia, 1903]




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..."uma bela ocasião"... que diz muito sobre quem é o meu avô José.


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