sexta-feira, 15 de maio de 2020


28. Mahler: sinfonia nº 1, "Titã" |

Gustav Mahler e a sua Sinfonia nº 1, um "Titã" onde cabe o mundo todo... e todo o mundo...






Para aqueles amigos que rejubilam com a ambiguidade da apoteose Mahleriana.

(E à memória de uma noite no Coliseu de Lisboa, na companhia da "Titã", Riccardo Chailly e da Orquestra Sinfónica de Londres [29-03-2000])






O percurso da sinfonia nº 1 de Gustav Mahler (1860-1911) seria relativamente longo, numa espécie de procura pela compreensão de um filho, que parece perfeito aos olhos dos pais, e tudo menos isso para os da restante família.
Na realidade, o jovem Mahler de 28 anos, iniciaria em 1888, na cidade de Leipzig, a escrita do ainda "Poema sinfónico em duas partes" (e com cinco andamentos), obra que viria a estrear posteriormente, a 20 de Novembro de 1889, em Budapeste, com a Orquestra da Ópera Real Húngara e a direcção do próprio, que também seria o seu director artístico à altura, posto que viria a ocupar entre 1888 e 1891.
Nesta obra, considerada por alguns como a mais original primeira sinfonia desde a homóloga de Beethoven e notoriamente autobiográfica, poder-se-ia observar o esforço do compositor para transformar a experiência pessoal em algo com um significado universal: a Música! Nesta medida, Mahler usaria, no primeiro e terceiro andamentos, alguns dos temas do seu ciclo de canções, "Lieder eines fahrenden gesellen" (Canções de um viandante), que teriam sido escritas previamente num acto de recuperação do apaixonado, mas infeliz, caso amoroso que tivera com Johanna Richter, uma cantora da Ópera de Kassel, onde ele teria sido maestro (e, ao que parece, não só...), por aquela altura (já um viandante, portanto... neste caso, urbano). Gustav seria, ele mesmo, o audível herói romântico!..., só que embrulhado por um viandante rapaz da província, apaixonado, mas não correspondido, que procura sanar o seu infortúnio através da peregrinação solitária no soprano, ou melhor... supremo, seio (!)... da natureza (onde eventuais semelhanças com o protagonista de um "Winterreise", de Schubert, poderão não ser apenas coincidências).
Ou seja, enquanto uns escrevem ciclos de canções de desespero e resignação, numa espécie de termas recuperadoras da psique, mas que não debelariam totalmente a enfermidade emocional, outros, haverão, que criam sinfonias onde cabe o mundo inteiro, concluídas em triunfo, sugerindo, finalmente, a eliminação de eventuais pensamentos suicidas a meio do caminho, afirmando a vida na sua plenitude e reconhecendo a eterna beleza do mundo à sua volta... a prova da tão desejada cura... de todos aqueles Mahlers.
Naquela noite, em Budapeste, a originalidade da sinfonia seria sinónimo de hostilidade e ridículo (um pronúncio do que a sua música lhe viria a provocar ao longo da vida, infelizmente), tendo inclusive escrito à amiga, a violinista Natalie Bauer-Lechner: "Em Budapeste, onde eu a estreei, os meus amigos evitaram-me posteriormente; ninguém se atreveu a mencionar o concerto e eu tornei-me como um leproso ou um fora-da-lei. Nestas circunstâncias, você pode imaginar como a crítica terá sido."... por certo: arrasadora, e seguramente: o motivo pelo qual decidiria voltar a contar as alegrias e tristezas da sua juventude por outras palavras, ou na linguagem universal, por outros sons.
A reescrita desenvolver-se-ia nos anos seguintes: em 1893, num concerto em Hamburgo, o ainda Poema Sinfónico apareceria com o subtítulo "Titã", nome que teria sido apadrinhado pelo seu escritor favorito, o romancista Jean Paul, que, ao que parece, teria escrito uma obra literária com esse nome (...mas que seria, apenas, remotamente comparável à do herói titânico, de nome: Gustav Mahler), numa representação a 3 de Junho de 1894, em Weimar, dar-lhe-á o nome de "Sinfonia em Ré Maior" (menos poema e mais som, à partida, e dando, em certa medida, alguma coerência ao abandono da ideia de escrever um programa explicativo, que teria tido no início... adivinhando uma eventual rebaixa da taxa de críticas e o consequente levantamento do índice da tão desejada moral criativa), e em 1896 chegaria mesmo a retirar o segundo andamento original, o floral "Blumine" (que iria sobreviver há história da primeira metade do séc. XX, até ser encontrado de novo em 1967... uma flor de estufa, portanto).
A partir de 1897, e já como Director da Ópera de Viena, incrementa o número de trompas de quatro para sete, e acrescenta um segundo conjunto de tímpanos, um quinto trompete e um quarto trombone, uma visão artística renovada, seguramente difícil de aplicar caso Gustav estivesse a cargo de uma outra Ópera, porventura mais atlântica, onde a problemática da gota, gotícula ou aerossol orçamental, seria já uma realidade covidiana (a ínfima porção que tudo fragiliza... para não ser indelicado), indigna de uma nação fundadora da civilização europeia, defensora dos seus valores ($)... todos (). E a sinfonia seria publicada, tal como a conhecemos hoje, em 1898.
No primeiro andamento, apercebemo-nos do acordar da natureza através da introdução lenta, do chamamento dos pássaros e da inspiração na segunda Canção do Viandante: "Ging heut, morgen ubers feld", enquanto, no segundo, encontramos a celebração numa aldeia rodeada pela natureza (Alpina...), através de um landler austríaco, distorcido por uma valsa pastoral... um quanto yodelerisada.
Já o terceiro andamento viria a iniciar um escândalo! Aqui, entramos num mundo de sombras e de conflitos interiores, com algum eco da última Canção do Viandante: "Auf der strasse steht ein lindenbaum", e inspirados na xilogravura da capa do livro infantil austríaco: "A procissão fúnebre do caçador", de Moritz von Schwind, que ilustraria um cortejo funerário, onde os animais da floresta, outrora perseguidos, ombreariam com o caixão do defunto, outrora perseguidor, ao som duma canção de adormecer, nem mais nem menos que o famoso "Frère Jacques"... só que apresentado num tom menor, indicador de uma inteligência maior... Palavras para quê...
E o quarto, iria terminar em choque! Ao "...raio de luz de uma nuvem escura... simplesmente o choro de um coração profundamente ferido.", que Mahler teria querido elevar, sucedeu o que o amigo pessoal, Friedrich Lohr, lhe comentaria, após o concerto, sobre a sonoridade feroz que inicia o andamento: "Uma senhora da sociedade, que estava sentada ao meu lado, ficou tão transtornada que deixou cair no chão todas as coisas que segurava!". São rosas Senhor!? Não, são as dissonâncias heroico-depressivas de Gustav Mahler!

Nuno Oliveira




"Sinfonia nº 1, em ré maior, 'Titã'"


Extractos que proponho para audição:
  • Chicago Symphony Orchestra
  • Georg Solti
  • Decca, 411 731-2 DH
"o belo": toda a obra (A visão presidencial da superpotência que é a Chicago Symphony!),
                com alguns destaques, identificados a seguir;
                I: tutti, início e aos 13:56-15:40 (O mistério que se avizinha num caminho a percorrer
                no meio da natureza... com o som incisivo de Clavenger & Amigos!) [youtube]
                II: tutti (Um passeio alegórico na celebração da inocência do menino Gustav...)
                [youtube]
                III: contrabaixo ao início, tutti (...e o reconhecimento do efémero e da fragilidade dessa
                inocência, no cortejo fúnebre duma fábula de encantar, rodeado de tons menores...
                a começar pelo maior... Grotesco? Talvez. Genial? Sim!) [youtube]
                IV: tutti, aos 0:00-3:24, 8:50-11:20, 18:10-20:47 (É melhor acordar?! Sim, toquem já
                as trombetas! Calma... deixem-me olhar pela janela e ver como está o dia... ficará
                tudo bem.) [youtube]






  • Berliner Philharmoniker
  • Bernard Haitink
  • Philips, 420 936-2 PH
"o belo": (A solenidade de Haitink e uma Berliner Philharmoniker do tamanho do Mundo.)
                I [youtube], II [youtube], III [youtube], IV [youtube]






  • Royal Concertgebouw Orchestra
  • Riccardo Chailly
  • Decca, 448 813-2 DH
"o belo": (Som espacial e imaculado, na leitura detalhada do mestre Chailly.)
                I [youtube], II [youtube], III [youtube], IV [youtube]






  • Concertgebouworkest Amsterdam
  • Leonard Bernstein
  • Deutsche Grammophon, 427 303-2 GH
"o belo": (O famoso registo ao vivo, sinónimo do que acontece quando dois génios se
                encontram na mesma sala.)
                I [youtube], II [youtube], III [youtube], IV [youtube]






  • Berliner Philharmoniker
  • Claudio Abbado
  • Deutsche Grammophon, 431 769-2 GH
"o belo": (Electrizante performance ao vivo, dirigida pelo mestre italiano. Uma pena que
                a pureza dos timbres Berlinenses tivesse sido contrariada pela tosse da assistência,
                seguramente fruto das típicas constipações de Dezembro de 1989.)
                I [youtube], II [youtube], III [youtube], IV [youtube]






  • Chicago Symphony Orchestra
  • Klaus Tennstedt
  • EMI, CDC 7 54217 2
"o belo": (Registo ao vivo, extremamente lento e que, por isso, não será para todos os
                gostos. A mão pesada do mestre Tennstedt procura dar significado a cada nota,
                sem precipitações, com os sentimentos à flor da pele. CSO maravilhosa como
                sempre, com cordas intensas e metais poderosos. Uma interpretação para
                descobrir e disfrutar.)
                I [youtube], II [youtube], III [youtube], IV [youtube]






  • New York Philharmonic
  • Kurt Masur
  • Teldec, 9031-74868-2
"o belo": (Som fabuloso gravado ao vivo. Interpretação repleta de expressividade e
                sentimento, com solista de grande qualidade em apontamentos de destaque.
                Excelente opção.)
                I [youtube], II [youtube], III [youtube], IV [youtube]





 
   
Outras sugestões:
  • Simon Rattle/City of Birmingham Symphony Orchestra/EMI, CDC 7 54647 2 (Gravado ao vivo: 4º and., aos 4:00-6:15. Ficamos com a impressão de que há algo que falta em todos os outros, e que só poderemos encontrá-lo aqui. A não perder pelos verdadeiros Mahlerianos.), I [youtube], II [youtube], III [youtube], IV [youtube]




  • Claudio Abbado/Chicago Symphony Orchestra/Deutsche Grammophon, 400 033-2 GH (4º and., início. O ensaio geral de Abbado em 1982, que Solti aproveitaria no ano a seguir. Três minutos impressionantes!), I [youtube], II [youtube], III [youtube], IV [youtube]








  • Andrew Litton/Royal Philharmonic Orchestra/Virgin, VC 7 90703-2 (Sonoridade brilhante e detalhada numa interpretação com poucos rodeios a mostrar a impetuosidade dos 28 anos de Andrew Litton. A entrada dos pratos no 4º and. faz saltar qualquer um, mas a sensibilidade romântica que se segue volta a sossegar corações. Boa surpresa.), [youtube], II [youtube], III [youtube], IV [youtube]    





  • Christoph von Dohnányi/The Cleveland Orchestra/Decca, 425 718-2 DH (Um registo diferente, onde o lirismo e o misticismo sobressaem. Para descobrir.), I [youtube], II [youtube], III [youtube], IV [youtube]






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Gustav (2ª fila) junto da irmã Ernestine e de membros da Ópera Real Húngara [Budapeste, 1889]



Gustav Mahler [Viena, 1898]




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Ambiguidades da apoteose Mahleriana a partir de uma "garrafeira" pré-covidiana
[Nelas, Novembro de 2019].



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