77. Holst: Os Planetas |
"Os Planetas" sonoros de um estudante de astrologia, apaixonado pelo oriente, chamado Gustav Theodore Holst.
A humanidade continua feroz, a espiritualidade mantém-se um mistério.
Para o João.
O universo aguarda-te.
Como nos contariam algumas das mais incríveis páginas da história da música ocidental, nem sempre o sucesso artístico traria felicidade ao seu criador, sendo um bom exemplo disso a famosa obra Os Planetas, escrita por Gustav Holst (1874-1934), um compositor inglês de antepassados germânicos e escandinavos. Na realidade, o enorme sucesso desta obra sempre o deprimira, em parte por ter ofuscado por completo toda a sua anterior produção, mas também pelo facto de nem as suas futuras composições sequer se lhe aproximassem em popularidade.
Holst juntaria as raízes da música britânica ao seu cosmopolitismo para criar esta grandiosa suite em sete andamentos, um para cada planeta, sendo admissível referir que nada de natureza tão radical teria existido na música inglesa até então, pelo que Os Planetas de Gustav Holst simbolizariam para os britânicos daquela época aquilo que A Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky, simbolizaria para os ouvintes forasteiros àquelas ilhas.
O interesse de Gustav por um exotismo tantas vezes associado à temática planetária já viria dos seus tempos de estudante. Por essa altura, ter-se-ia interessado pela literatura e filosofia hindu, tendo vindo inclusive a utilizar a sua própria tradução de textos em sânscrito para alguns dos seus primeiros ciclos de canções. As suas transcrições dos textos canónicos sagrados hindus de Rig-Véda, viriam mais tarde a impressionar o escritor Clifford Bax (irmão do compositor Arnold Bax), personagem que teria conhecido em 1913, do qual ficaria amigo e que viria a ter um papel decisivo na criação desta obra. Com efeito, seria Clifford Bax a introduzir a astrologia a Holst, um assunto que o compositor teria achado sugestivo de imediato, tendo a ideia de ilustrar Os Planetas em música surgida durante as férias de verão passadas nesse ano, em Maiorca, com os irmãos Bax e com o seu amigo, patrono, e também ele compositor, Henry Balfour Gardiner (um ser relevante do qual falaremos mais tarde; tio-avô de John Eliot Gardiner, o protagonista em baixo de uma das gravações que mais me seduz. E sim, ao contrário da mediocridade "familiar" presente em inúmeras actividades da nossa sociedade, aqui dificilmente haverá coincidências, ou não se tratasse da qualidade artística nascida do talento, como é o caso).
Holst começaria a escrever esta obra em 1914, mas só viria a finalizá-la em 1917 devido às privações consequentes da 1ª Guerra Mundial (1914-1918) e aos seus compromissos lectivos na St Paul's Girl's School, embora também tivesse vivido algumas dificuldades com o seu próprio trabalho de composição, nomeadamente na definição do esquema que o orientasse por aqueles sete andamentos hiper-contrastantes, mas cuja progressão, apesar de não convencional, se pretenderia coerente, para além da orquestração exigida face ao agrupamento musical escolhido: um conjunto de poder massivo e com um exotismo instrumental sem precedentes na sua produção.
O compositor continuaria também a estudar astrologia durante os anos de composição da obra, tornando-se, segundo Bax, num "talentoso intérprete de horóscopos", tendo vindo mais tarde a enfatizar, ainda, que aquilo que quisera expressar teria sido sempre o carácter astrológico de cada planeta e não alguma das referências mitológicas clássicas que lhes são associadas. A sua filha e biógrafa, Imogen Holst, refere algumas citações do pai que justificam esta ideia. Um desses exemplos estaria numa carta de 1914: "Eu apenas estudo coisas que me sugerem música". No entanto, nada melhor que a citação de Gustav Holst num artigo de imprensa, lançado pela altura da estreia da obra, para compreender as motivações do compositor: "Estas peças foram sugeridas pelo significado astrológico dos planetas e não existe nenhum programa musical nelas, nem tão pouco têm alguma ligação com as características da mitologia clássica com o mesmo nome. Se for requerido algum guia para a música, o subtítulo de cada peça deverá ser suficiente, especialmente se for usado com um significado alargado".
Apesar das dificuldades dos tempos de guerra, Os Planetas viriam a ser estreados a 29 de Setembro de 1918 no Queen's Hall de Londres, pela Orquestra Sinfónica de Londres e direcção do jovem Adrian Boult com vinte e nove anos (existe uma extraordinária gravação sua realizada em 1978, ou seja, sessenta anos depois e com a bela idade de oitenta e nove anos, que é sugerida na publicação nº 7), numa apresentação privada oferecida por alguém que utilizava a fortuna proveniente dos seus antepassados para promover a música inglesa, financiando a realização de concertos e sustentando músicos em dificuldade. Esse alguém era nem mais nem menos que o amigo Balfour Gardiner, e Imogen tem uma pequeníssima passagem que, curiosamente, nos pode ilustrar as suas enormíssimas qualidades humanas: "Ele tinha um gosto pela amizade e a sua generosidade teria de ser vivida para ser acreditada". E nada mais haveria a dizer, a não ser que...
...A inexistência do humanismo superlativo de Balfour teria possivelmente privado a humanidade desta obra-prima (e, com isso, torná-la um pouco mais pobre), para além de que ficaríamos igualmente isentos das recordações românticas da pequena Imogen, que nesse dia contaria onze anos de idade: "Até aqueles ouvintes que tinham estudado a partitura durante meses teriam sido apanhados de surpresa com o inesperado clamor de Marte (...) Durante Júpiter, as empregadas de limpeza que trabalhavam nos corredores pousaram as esfregonas e começaram a dançar (...) Em Saturno, os ouvintes isolados no escuro daquele salão meio vazio, sentiram-se envelhecer a cada compasso (...) Mas foi o final de Neptuno que seria inesquecível, com o seu coro de vozes femininas escondido a esbater-se cada vez mais à distância, até que a imaginação ficou a desconhecer a diferença entre som e silêncio". A menina certamente que não seria já autora, mas a futura mulher concorreria seguramente para isso.
O sucesso deste concerto privado levaria ao investimento na sua estreia pública, apresentação que teria lugar num concerto da Royal Philharmonic Society no dia 27 de Fevereiro de 1919, pelo que, tal como o dedicatário destas linhas, está também de parabéns neste dia. Por isso "congrats"!
A audiência que esgotava a sala teria ficado espantada ao ouvir o que seria na altura a maior e uma das mais envolventes obras de um compositor (germano-escandinavo-...) inglês, estabelecendo-se a partir dali como a peça mais popular de Gustav Holst.
A obra inicia-se com Marte, o Portador da Guerra [1], que poderá sugerir ao ouvinte a terrível reacção do compositor à 1ª Guerra Mundial, mas que, por ter sido escrita no verão de 1914, aparentemente só nos inspirará pensar que esta seria realmente a sua visão da guerra mais do que uma reacção ao conflito existente. A atmosfera tensa proporcionada pelas cordas e percussão é contrabalançada pelos clímaces poderosos dos metais com o órgão, tornando-se cada vez mais ameaçadora e feroz à medida que nos aproximamos do final. O andamento seguinte, Vénus, o Portador da Paz [2], não poderia ser mais contrastante. Escrito no início da 1ª Guerra Mundial, supostamente simbolizaria a visão da paz e o desejo de paz do compositor. A consolação e distância é-nos sugerida por solos de grande ternura, num ambiente de suave tranquilidade.
(Mesmo que a astrologia tivesse ultrapassado a mitologia clássica como fator inspirador desta obra (como Gustav admitiu), é curioso como neste par de andamentos essas vertentes se complementam tão bem...)
Mercúrio, o Mensageiro Alado [3] e Júpiter, o Portador da Alegria [4] viriam a seguir e mostrar-se-iam, também eles, bastante contrastantes. Mercúrio seria o último a ser escrito e era considerado pelo compositor como "o símbolo da mente". Empregaria um colorido caleidoscópico orquestral para fazer sugerir a velocidade do pensamento e delicados apontamentos de celesta e harpa. Já Júpiter, apresentar-se-ia como o andamento mais conservador e obviamente mais britânico, com a utilização de temas do folclore popular para tentar voltar a colocar os ouvintes com os pés assentes no chão "tradicional" (mas nem sempre a consegui-lo, tantas são as vezes que dou por mim a voar naquele andante maestoso...). Holst chegaria a afirmar que este andamento "Traz alegria no sentido mais comum, mas também o rejubilar característico das festividades nacionais e religiosas", enquanto que o famoso tema do andante maestoso central se destacaria por si só de forma independente, sendo popularizado pelo hino "I vow to Thee my Country" que o compositor viria a escrever mais tarde.
Seguir-se-iam Saturno, o Portador da Velhice [5] e Urano, o Mágico [6]. Saturno, o andamento favorito do compositor, apresentaria uma atmosfera mais densa para tentar ilustrar as reacções humanas com a inevitável chegada da velhice, ao passo que Urano representaria um retracto mais individual de um velho mágico que no final da vida ainda consegue lançar "feitiços" com grande qualidade (Individual uma "gaita"! Então não queremos todos, Gustav!). De salientar que, neste andamento, a mistura do humor com o mistério, e de alguns componentes bizarros com o colorido orquestral, de algum modo farão aproximar a magia ao espiritualismo, ou melhor, promoverão a passagem da ilusão ao milagre, o que no irremediável caso deste "Mágico" se adequará (sublinho o futuro do verbo) na perfeição...
A obra concluir-se-ia com a chegada de Neptuno, o Místico [7], a abraçar o universo com os seus ritmos flutuantes, dando a ideia de um espaço aberto e ilimitado. O coro de vozes femininas, fora de palco, e os sons da celesta, desvanecem-se calmamente e de forma enigmática desde as regiões mais remotas do infinito em cada um... (...até ao lugar onde o mistério se revelará um dia, como gosto de acreditar).
Se dúvidas houvesse, podemos sempre escutar aquilo que Gustav faria acentuar (um pleonasmo consciente, entendo eu) no topo da partitura deste andamento final: "The orchestra is to play sempre pp throughout".
E para que nenhuma outra dúvida permaneça, oiçamos também aquilo que Holst escreveria no rodapé do último compasso desta obra: "This bar is to be repeated until the sound is lost in the distance".
Estou a escrever há algumas horas, o som já não se ouve, mas a música ainda não acabou...
Nuno Oliveira
"Os Planetas, op. 32"
✨ Extractos que proponho para audição: (nota: ver também publicações nº 7 e 58)
- Orchestre Symphonique de Montréal & Le Choeur des femmes de l'OSM
- Charles Dutoit
- Decca, 417 553-2 DH
famoso onde se escuta tudo o que há para escutar. Poderoso e sensível.
Completamente imbatível!), com alguns destaques, identificados a seguir;
[1] tutti, aos 0:00-2:12 (A tensão antes do embate e o início das hostilidades!),
metais e órgão, aos 4:15-6:30 ("o belo" som do apocalipse em fff!) [youtube]
[2] tutti, trompa, violino, oboé, violoncelo e celesta, aos 0:00-9:36 (A visão
contemplativa da Paz, sinónimo de beleza e magia.) [youtube]
[3] tutti (As sonoridades adequadas ao correio alado da antiguidade, sempre
veloz, sejam as notícias boas ou más.) [youtube]
[4] tutti e trompas, aos 0:00-0:22 (Provavelmente, o mais "o belo" símbolo sonoro
[4] tutti e trompas, aos 0:00-0:22 (Provavelmente, o mais "o belo" símbolo sonoro
de jovialidade de todos os tempos!) e aos 3:04-5:01 (E eis que chega "o belo"
momento que guarda Os Planetas de Gustav Holst para a eternidade!) [youtube]
[5] tutti (O soturno Saturno...) [youtube]
[6] tutti (As alegres travessuras de Urano...) [youtube]
[7] tutti, coro e celesta, aos 0:00-7:56 (A esperança no mistério de, próximos do
fim, escutarmos ao longe a voz da nossa mãe...) [youtube]
- Philharmonia Orchestra & Women's Voices of the Monteverdi Choir
- John Eliot Gardiner
- Deutsche Grammophon, 445 860-2 GH
escolha acertada para os que pretendem a Marte mais opulente e o Júpiter
mais excitante. Um registo simplesmente fabuloso.)
- Berliner Philharmoniker & Rundfunkchor Berlin
- Simon Rattle
- EMI, 3 59382 2
(...4:27...). A escolha acertada para os que pretendem os pianíssimos mais
espectaculares. Uma visão diferente e obrigatória numa boa colecção.)
- Berliner Philharmoniker & RIAS Kammerchor
- Herbert von Karajan
- Deutsche Grammophon, 400 028-2 GH
de HvK. Se pensam que o mestre privilegia as cordas, ora vejam lá se os metais
não se ouvem tão bem na melodia central de Júpiter (2:58). Excelente escolha.)
- Philharmonia Orchestra & New London Children's Choir
- Leonard Slatkin
- RCA, 09026-68819-2
Destaque para a "beleza de Vénus" e pela preferência de um coro infantil "em
Neptuno". Uma magnifica aquisição.)
- New York Philharmonic & Camerata Singers
- Leonard Bernstein
- Sony, SBK 62 400
melodia central de Júpiter a ser prova disso. Uma excelente opção.)
- Seiji Ozawa/Boston Symphony Orchestra & New England Conservatory Chorus/Philips, 416 456-2 PH (A sonoridade exuberante e visão rara do mestre Ozawa a ter em conta também.) [1-7] [youtube], [1-7] [iTunes]
- André Previn/Royal Philharmonic Orchestra & Women of the Brighton Festival Chorus/Telarc, CD-80133 (O testemunho do mestre Previn numa gravação a descobrir.), [1] [youtube], [2] [youtube],[3] [youtube], [4] [youtube], [5] [youtube], [6] [youtube], [7] [youtube]
- William Boughton/Philharmonia Orchestra & Chorus/Nimbus, NI 5117 (As cores oferecidas pela acústica do Royal Albert Hall podem ser "vistas" aqui.), [1-7] [spotify], [1-7] [iTunes]
- Ross Pople/London Festival Orchestra & Choristers of St. Paul Cathedral/ASV, CD DCA 782 (A tradição inglesa numa gravação que merece ser ouvida também.), [1-7] [allmusic]
Sem comentários:
Enviar um comentário