sábado, 24 de dezembro de 2022


76. Falla: O amor bruxo, Noites nos jardins de Espanha |

Manuel de Falla, o amor por uma terra encantada e as saudades das flores da Andaluzia.






Aos horizontes que se abriram naquelas férias de Natal passadas em Salamanca.
Para os protagonistas que o tornaram possível.






A procura da inspiração que pudesse de algum modo enriquecer estas páginas, trar-me-iam à memória neste mês de Dezembro uma das melhores experiências que pude usufruir num outro Dezembro já longínquo: o das férias de Natal a fazer música com amigos na bela cidade espanhola de Salamanca.
Estávamos em 1989 e essas recordações do adolescente que descobria pela primeira vez a realidade fora das fronteiras da sua língua, levariam a que algumas das escolhas auditivas desta época natalícia recaíssem na obra do compositor espanhol Manuel de Falla (1876-1946), nomeadamente no seu bailado "O amor bruxo" e nas suas "Noites nos jardins de Espanha", para piano e orquestra, duas obras-primas que aprecio particularmente e a cuja audição costumo retornar algumas vezes durante o ano. 
Manuel de Falla nasceria na cidade portuária de Cádiz, banhada pelo oceano atlântico no sul de Espanha, sendo por isso previsível que a música popular andaluza que o rodeara toda a vida viesse a inspirar e a colorir as suas composições.
No entanto, seria necessário que chegasse aos trinta anos de idade e a uma estadia de sete anos em Paris (de 1907 a 1914), para que Falla viesse a ser reconhecido como um dos maiores compositores espanhóis do seu tempo, aproveitando os contactos e as amizades cimentadas com alguns dos mais admirados músicos franceses que pudessem ser encontrados nas melhores ruas impressionistas de Paris, com destaque para os geniais Debussy e Ravel (fascinados naquela época por tudo o que era espanhol!), cujos conselhos e encorajamento teriam um papel vital na sua vida e na sua obra, tendo o compositor andaluz mostrado a inteligência de absorver as influências da escola francesa moderna, ao mesmo tempo que retinha as características essenciais da música tradicional do seu próprio país.
"O amor bruxo" viria assim a tornar-se na obra mais famosa do compositor, reflectindo o seu amor pela música feroz e perfumada da região onde teria crescido, a sua amada Andaluzia. Esta obra, escrita entre 1914 e 1915, teria a sua origem numa sugestão levada a cabo pela famosa dançarina de flamenco, Pastora Imperio, de que Falla deveria escrever algo especial para o seu conhecido grupo de dança, algo que ela pudesse dançar, mas também cantar. Falla daria ouvidos a Pastora, e, nesse sentido, a obra viria a surgir pela primeira vez ao público sob a forma de um bailado em um acto, com canções interpretadas no dialecto dos ciganos andaluzes e danças inspiradas numa antiga lenda andaluz, tendo a sua estreia sido apresentada pela família Imperio e um agrupamento de câmara no dia 15 de Abril de 1915, em Madrid, mas sem grande sucesso. Este desagradável desfecho levaria Falla a rever a obra, transformando-a numa suite de concerto logo a seguir, tendo esta nova forma sido apresentada pela primeira vez em 1916, agora com elevada aceitação, tornando-se na sua obra mais popular a partir da produção realizada pelo Thèâtre du Trianon Lyrique de Paris com coreografia da famosa dançarina "La Argentina", em 1925, e vindo definitivamente a alcançar o reconhecimento internacional em 1928 com uma nova produção da Opéra-Comique, também em Paris.
O libreto atribuído ao dramaturgo Martínez Sierra, mas que seria afinal da autoria da sua esposa, Maria de la O Lejárraga García, conta-nos a história amorosa protagonizada por Candela, uma bela cigana de Cádiz; o fantasma do seu falecido marido; Carmelo, o pretendente de Candela e Lucía, outra bela cigana, amiga de Candela.
A suite definitiva do bailado seria formada por treze quadros e a trama seria mais ou menos assim: Candela, uma bonita cigana andaluza (Introdução e cena [1]), amaria perdidamente um cigano infiel e ciumento, mas ao mesmo tempo fascinante e sedutor, que viria a falecer precocemente (Na gruta [2]); embora tivesse vivido uma vida de infelicidade, ela lamentava a sua perda, sendo incapaz de o esquecer (Canção do amor doloroso [3]), permitindo que o seu fantasma continuasse a assombrá-la (O Aparecido [4]) e a levá-la a dançar com ele todas as noites (Dança do terror [5]); a primavera regressaria e com ela chegaria a promessa de um novo amor na pessoa de Carmelo (O Círculo Mágico - Romance do Pescador [6]), um jovem galante que a deseja cortejar (À meia-noite - Os sortilégios [7]); mas as assombrações impedem-na de se entregar a este novo amor e sempre que Carmelo se aproxima o espectro retorna e aterroriza Candela, impedindo-a de trocar o "beijo de amor perfeito" exorcizador (Dança ritual do fogo - Para afugentar os maus espíritos [8]); o feitiço do mal precisa ser quebrado (Cena [9]) e Carmelo acredita ter encontrado a solução na conhecida fraqueza por mulheres bonitas do falecido, fraqueza que continuaria a manter mesmo após a sua morte (Canção do fogo fátuo [10]); Carmelo convence Lucía, uma jovem e bela cigana, amiga de Candela, a fingir aceitar os avanços do fantasma e Lúcia aceita por amizade a Candela mas também por curiosidade (a ideia de seduzir um fantasma parece-lhe atraente... e o morto era tão atrevido em vida...); Lucía junta-se a Carmelo quando este volta a cortejar Candela (Pantomima [11]...); o espectro aparece e não resiste à beleza do novo rosto e a todo o potencial de sedução da jovem Lucía (...Pantomima [11]), bajulando-a e implorando-a, com a bela cigana a levá-lo quase ao desespero (Dança do jogo de amor [12]); finalmente amanhece, Candela e Carmelo trocam o tão desejado beijo libertador e ficam agora a salvo para viverem o seu amor (Os sinos do amanhecer [13]). Romântico, exótico, místico e, por isso, simplesmente maravilhoso.

Manuel de Falla começaria a escrever as "Noites nos jardins de Espanha" em 1909 como um conjunto de nocturnos para piano solo a pedido do pianista Ricardo Viñes, mas só viria a finalizá-la depois de retornar a Espanha no despertar da 1ª Guerra Mundial. Por essa altura, estes nocturnos seriam já a obra para piano e orquestra que hoje conhecemos, forma com que se estrearia em Madrid, em 1916, pelo pianista José Cubilès e o maestro Fernandez Arbos.
Embora o piano desempenhe um papel destacado nesta obra, com as suas intervenções solísticas brilhantes, acredita-se que a criação de um concerto para piano tradicional não estaria nos desejos do compositor. Com efeito, Falla pretenderia acima de tudo que a sonoridade cristalina do piano fizesse parte integrante da variada textura instrumental, numa obra que faria transparecer de forma clara (pleonasmo que lá saiu sem premeditação prévia... e lá bisei outra vez... bom, o melhor é mesmo parar por aqui) a influência do movimento impressionista da época, mais concretamente a do seu amigo Debussy, restando poucas dúvidas sobre a ligação entre esta obra e os famosos "Nocturnos para orquestra" do celebrado compositor francês, ao que se acrescentariam também alguns dos ensinamentos aprendidos com as orquestrações de Rimsky-Korsakov, incrivelmente tão próximas das melodias andaluzes e do Cante Jondo originário dos antigos muçulmanos da península ibérica que se murmuram nesta partitura.
Estas características fariam com que estas "Noites nos jardins de Espanha" fossem muitas vezes denominadas como um grupo de três "impressões sinfónicas combinadas com um poema rapsódico", uma designação que apesar de longa, e comercialmente pouco recomendável, se pensarmos bem, até que poderá fazer algum sentido. Já para os que pretenderem conhecer as intenções do compositor de forma textual, a sugestão é que escutemos as palavras que o próprio diria sobre esta sua obra-prima impressionista: "O propósito para o qual esta obra foi escrita é nenhum outro que a invocação de lugares, sensações e sentimentos. Os temas utilizados são baseados nos ritmos, modos, cadências e figuras ornamentais que distinguem a música popular da Andaluzia. A música não tem a pretensão de ser descritiva (é meramente expressiva), e existiu algo mais do que festivais e danças a me inspirarem para estas "invocações sonoras", porque a melancolia e o mistério também terão feito a sua parte". Temos de concordar com o Manuel de que umas "invocações sonoras" soam de facto melhor...
...Por isso, à primeira "invocação", "No Generalif" [1], repleta de exotismo e com um dos clímaces mais exuberantes de que guardo memória (a versão de Geoffrey Simon, em baixo, é de cortar a respiração), ser-lhe-ia atribuída o nome do jardim da residência de verão dos Reis Mouros que haviam governado Granada nos séculos XIII e XIV a partir do Palácio de Alhambra próximo dali; já na segunda, "Dança distante" [2], a sua natureza sedutora e melancólica far-nos-ia recordar por breves momentos a sensualidade feroz daquela jovem cigana de Cádiz chamada Lucía; até que finalmente chegaria a terceira, "Nos jardins da Serra de Córdoba" [3], e com ela a lembrança dos sons da azáfama de um acampamento cigano nas encostas da montanha, que mais tarde se desvaneceriam em saudade (...emprestada pelo outro lado da fronteira, não esqueçamos).
Manuel de Falla viveria feliz durante vários anos na sua casa florida de Granada, na Andaluzia, mas com a situação política na Europa e a Guerra Civil Espanhola resolveria partir para a Argentina em 1939, país onde viria a falecer a 14 de novembro de 1946, em Alta Gracia, a cidade que teria escolhido para viver por lhe fazer lembrar a sua Granada, e, curiosamente, também ela uma cidade pertencente a uma província de Córdoba, que na sua terra natal lembrava Andaluzia, aquele nome que o seu coração invocava. 


   
Nuno Oliveira




"O amor bruxo"
"Noites nos jardins de Espanha"


✨ Extractos que proponho para audição:
  • Huguette Tourangeau
  • Orchestre Symphonique de Montréal
  • Charles Dutoit
  • Decca, 410 008-2 DH (O amor bruxo)
"o belo": toda a obra (Uma interpretação excitante levada a cabo pelo mestre Dutoit
                onde se destacam a sonoridade exuberante da orquestra canadiana e os timbres
                apelativos dos instrumentos solistas, com relevo para o trompete e o corne inglês.
                A excelente voz de Tourangeau é perfeita para dar vida à protagonista Candelas.
                O registo de referência desta obra. Imperdível desde 1981!), com alguns
                destaques, identificados a seguir;
                [1] tutti, trompete ("o belo" tema no brilhante trompete!) [youtube]
                [2] oboé, aos 1:40-2:10 (Um vislumbre de luz a partir das profundezas.) [youtube]
                [3] mezzo soprano (O som de um coração partido.) [youtube]
                [4] tutti (Um cheirinho ao Carnaval zoológico de Camille, não?) [youtube]
                [5] tutti (E eis que chega "o belo" ritmo de "Sabbat" à noite!) [youtube]
                [6] tutti (Terá "o belo" Aaron pescado nestas águas primaveris?) [youtube]
                [7] tutti (Parece simples, mas é feitiço...) [youtube]
                [8] corne inglês, tutti (A afugentar os maus espíritos a partir d"o belo" corne 
                inglês!) [youtube]
                [9] corne inglês, flauta (Cena... na natureza.) [youtube]
                [10] mezzo soprano (O mítico fogo fátuo na voz de Tourangeau!) [youtube]
                [11] tutti, trompete, violoncelo, violino, trompa ("o belo" da capo e muito mais
                num fim de tarde andaluz icónico!) [youtube]
                [12] mezzo soprano (Hora do conto e de acertar contas...[youtube]
                [13] tutti, sinos, mezzo soprano (... e final a rebate.) [youtube]






  • Alicia de Larrocha
  • London Philharmonic Orchestra
  • Rafael Frühbeck de Burgos
  • Decca, 410 289-2 DH (Noites nos jardins de Espanha)
"o belo": (Performance replecta de fantasia e lirismo, demonstrando a afinidade de
                Larrocha e Frühbeck de Burgos para com esta música. Detalhes poéticos subtis a
                contrastar com os clímaces de arrepiar que nos transportam para outros mundos.
                O registo de referência desta obra. Imperdível desde 1983!), com alguns
                destaques, identificados a seguir;
                [1] piano, aos 0:00-... (Exotismo a rodos!); tutti, metais aos 8:25-9:24 ("o belo"
                exemplo de um clímax orquestral de outro mundo!) [youtube]
                [2] piano, tutti (Ecos de danças sensuais...) [youtube]
                [3] piano, tutti (...com a aragem da Serra de Córdoba a bater em cheio nas faces
                deste ouvinte!) [youtube]






  • Sarah Walker, Margaret Fingerhut
  • London Symphony Orchestra
  • Geoffrey Simon
  • Chandos, CHAN 10232X (O amor bruxo, Noites nos jardins de Espanha)
"o belo": (Uma magnífica opção para os que pretendem as duas obras num só disco. Som
                luxuriante, voz envolvente e simultaneamente poderosa de Walker e o brilhantismo
                pianístico de Fingerhut, numa interpretação dirigida com mestria por Geoffrey
                Simon. Gravação equilibrada entre a delicadeza e os tuttis poderosos, destacando-se
                um de cortar a respiração (!), que podemos encontrar aos 8:28-9:25 do primeiro
                andamento das "Noites nos jardins de Espanha". Uma escolha de eleição!)
                OAB: [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube], [4] [youtube], [5] [youtube],
                [6] [youtube], [7] [youtube], [8] [youtube], [9] [youtube], [10] [youtube],
                [11] [youtube], [12] [youtube], [13] [youtube]
                NNJE: [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]






  • Jean-François Heisser
  • Orchestre de Chambre de Lausanne
  • Jesus Lopez-Cobos
  • Erato, 0630-14775-2 (Noites nos jardins de Espanha)
"o belo": (A sonoridade viva e espontânea numa interpretação idiomática de excelência.
                Pianismo colorido de Heisser e direcção soberba do nativo Lopes-Cobos. Uma
                magnífica escolha.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]






  • Martha Argerich
  • Orchestre de Paris
  • Daniel Barenboim
  • Erato, ER2 45266 (Noites nos jardins de Espanha)
"o belo": (A espontaneidade e a bravura que só a tensão libertada num registo ao vivo
                 pode oferecer. O carisma de Argerich destaca-se e a direcção envolvente do
                mestre Barenboim também. Um registo de qualidade para descobrir.)
                [1] [youtube], [2-3] [youtube]





  
   
✰ Outras sugestões:
  • Jennifer Larmore/Hugh Wolff/The Saint Paul Chamber Orchestra/Teldec, 4509-90852-2 (A voz poderosa de Larmore, o lirismo orquestral e a direcção competente de Wolff numa opção a ter em conta também.) OAB: [1-13] [allmusic], [3] [youtube]




  • Artur Rubinstein/Eugene Ormandy/The Philadelphia Orchestra/RCA, 09026 61863 2 (O registo icónico de Rubinstein gravado em 1969. Destaque para o colorido e brilhantismo do genial pianista, sobrepondo-se a uma aproximação mais mística da obra, e à direcção excitante de Ormandy. Uma boa escolha.) [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]






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A felicidade chamada Granada

Manuel de Falla no jardim da sua casa de Granada [c1928]




Os amigos Claude Debussy e Maurice Ravel

Fotografia de Debussy com dedicatória a Manuel de Falla




Fotografia de Ravel com dedicatória a Manuel de Falla





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As férias em Salamanca num Natal longínquo

Os protagonistas. Em cima: Nuno, Francisco, Tiago, Renato e Hugo. Em baixo: Luís, Arnaldo Nogueira (Presidente Dir. Banda Alvarense) ,
Manolo (Comerciante de Salamanca) e Jacinto  [Espanha, Salamanca, Plaza Mayor, Dezembro/1989]


Princípio,...




...meio...





....e fim.





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