84. Vaughan Williams: Sinfonia nº 5, The Lark Ascending |
A Sinfonia nº 5 e o The Lark Ascending de Vaughan Williams, frutos de amor e espiritualidade a partir de um prado britânico.
Pelo aniversário da passagem de um instante de 5 anos aos voos sem companhia.
Percorreram-se 25 anos. A memória é de prata, a instrução foi de ouro, o desafio seria de diamante.
(PS: a Química finalmente aconteceu...)
A Sinfonia nº 5 de Ralph Vaughan Williams (1872-1958) continua ainda hoje a deixar-nos com algumas incertezas sobre as motivações ou inspirações que levariam o seu criador a esboçar tamanha maravilha sonora, a esculpir a obra-prima que cuidadosamente dedicaria "A Jean Sibelius, sem permissão e com a mais sincera lisonja, cujo grande exemplo é digno de imitação". Com efeito, se alguém ainda mantivesse alguma dúvida sobre o mais alto valor artístico desta obra (que, como calculam, não será o meu caso... e acredito que também não será o vosso depois de escutarem "o belo" exemplo que deixo em baixo a cargo do André Previn), a humildade do eu e o reconhecimento do génio do outro não deixariam, neste caso, qualquer pergunta sobre as qualidades humanas de Vaughan Williams sem resposta.
A história desta sinfonia começaria algum tempo antes do terror provocado pelas duas guerras mundiais e nasce quando o compositor decide escrever em 1906 a música de cena para a alegoria de inspiração cristã de John Bunyan, "The Pilgrim's Progress", tendo talvez surgido ali a ideia para a composição da ópera com esse nome que viria a finalizar em 1951. Na realidade, a falta de condições para a apresentação de espectáculos de maior complexidade, motivada pelos conflitos mundiais existentes naquela altura, faria com que a ideia de uma ópera se adiasse e que alguma da música pensada inicialmente para o palco viesse a ser utilizada na sua Sinfonia nº 5, uma obra que começaria intensionalmente a esboçar a partir de 1938, ficando concluída nas vésperas da estreia, a 24 de Julho de 1943, num Concerto Promenade do Royal Albert Hall dirigido pelo próprio compositor. A ideia em tempo de paz para esta "quinta", a "natureza" espiritual de uma obra literária e a "campanha" artística em tempo de guerra, permaneceriam como factores principais na tentativa de compreensão do ânimo do compositor e do que o motivaria a trilhar o seu caminho, um trajecto que, para mim, o levaria sempre ao encontro dos campos e pastagens da sua verdejante Inglaterra rural ("como eventualmente já se terão apercebido").
As opiniões multiplicar-se-iam após a primeira audição, ficando famosa a frase do compositor de que "os símbolos do compositor são os do ouvido", o que deixaria a sensação de que não apreciaria particularmente os significados concretos (limitadores da expressividade e da emoção pessoal dos intérpretes) atribuídos à sua obra por alguns comentadores menos sensíveis e o levaria ainda a escrever numa bela ocasião: "Sinto-me muito zangado com os críticos que consideram que a minha quarta sinfonia "significa" guerra e a minha quinta "significa" paz.".
Este desabafo seria a sua resposta à reacção da maioria do público, que à procura de uma réstia de esperança dentro do nevoeiro da 2ª guerra mundial, haveria de dar grande enfase à serenidade da música, atribuindo-lhe o caracter de "abençoada", assim como à atitude de alguns críticos, que após descobrirem a sua ligação a "The Pilgrim's Progress", a tentariam relacionar sem sucesso à trajectória emocional da partitura.
No fundo, é fácil entender o comportamento dos ouvintes e a sua profunda impressão, indevidamente, mas compreensivelmente influenciada pelas ansiedades das circunstâncias de uma guerra que levaria muitos a encontrar naquelas notas de música a calma necessária para a chegada da paz ou a libertação dos dias cinzentos que viviam. Para isso, basta escutarmos as memórias da sua esposa Ursula: "Durante a guerra, as temporadas dos Proms começavam mais cedo no ano e os concertos diários começavam também mais cedo para que o público pudesse usufruir da luz do dia para retornar a casa antes dos ataques aéreos. O Albert Hall esgotado no dia do solstício de verão de 1943, quando Vaughan Williams dirigiu a Orquestra Filarmónica de Londres na estreia da nova sinfonia, teria sofrido de infindáveis noites sem dormir, de ansiedades, de medos, da mesma forma que a maioria da população; mas a sinfonia daria tamanha serena certeza, tamanha calma dourada, que o mundo parecia renovado. Haveria um longo respirar de silêncio antes do aplauso final começar. Lá fora, o final de tarde de verão estava brilhante e imóvel, e a paz e a coragem que teria lançado o seu feitiço nos ouvintes continuaria mais além, através daquele mundo difícil".
Ainda assim, a proposta que abre esta obra dificilmente poderá ser considerada pacífica ou apaziguadora. No primeiro andamento [I], tal como nos restantes três, a serenidade é estabelecida apenas para ser quebrada, acabando em ambiguidade e sem a certeza de bons augúrios, com neblinas no ar e várias perguntas que ficam por responder. O irónico segundo andamento [II], com o sinistro odor a águas termais umas vezes e a misteriosa frescura da água benta noutras, daria rapidamente lugar ao repouso espiritual com a introdução d'"o belo" terceiro andamento [III], embora por pouco tempo, pois logo Vaughan Williams nos emocionaria com a enorme solidão de um olhar no horizonte, à procura, quem sabe, daquela particularidade da arte superlativa nos prados floridos da sua terra, como gosto de acreditar (...e acredito que a conseguiu encontrar, abraçado aos três amores da sua vida: Adeline, Ursula e Foxy, no pátio da sua casa de Portões Brancos, em Dorking). O quarto andamento [IV] chegaria por fim como uma conquista formal marcante, sendo ao mesmo tempo uma adaptação engenhosa da Passacaglia barroca e um estudo de dissolução gradual. Inicia-se confiante, com a promessa de resposta sobre questões antigas a pairar na tonalidade de ré maior que se sente mais claramente no ar. Mas o esforço seria em vão, novas perguntas voltam a colocar-se e a esperança em respostas conclusivas volta a desvanecer-se, deixando-nos com a consolação da beleza no "ouvido" e o mistério sobre a luz que desvanece no pensamento.
The Lark Ascending [LA], o "Romance para violino e orquestra" que Vaughan Williams baptizou de forma certeira, seria escrito em 1914, revisto em 1920 e publicado em 1926, pelo que é frequentemente considerado uma produção anterior à 1ª Guerra Mundial, um entendimento que a inocência pastoral da música facilmente nos fará concordar.
Esta obra seria estreada na sua versão original para violino e piano, por Marie Hall (violinista dedicatária da peça) e George Mendham, no Shirehampton Public Hall, a 15 de Dezembro de 1920. A estreia da versão para orquestra seria interpretada também por Marie Hall, juntamente com a Orquestra Sinfónica Britânica dirigida por Adrian Boult, no Queen's Hall de Londres, a 14 de Junho de 1921, num concerto realizado no âmbito do 2º Congresso de Música Britânica. A aceitação do público e da crítica teria sido excelente, o que seria de esperar tendo em conta a genialidade de uma obra que nos continua a maravilhar audição após audição, com uma melodia que parece ilimitada para as variações possíveis de concretizar com aquela ideia básica de quatro notas.
The Lark Ascending estará seguramente entre as mais belas impressões musicais da paz que nos é transmitida pela ruralidade britânica. A música envolve-nos naquele tranquilo dia de verão, durante o qual uma cotovia voa e canta por cima de uma paisagem quase silenciosa. O canto é retratado por solos de violino de uma beleza extraordinária, com o ambiente mágico da obra a ser suportado brilhantemente pelo acompanhamento orquestral, com as suas subtilezas e maravilhosas nuances da paleta de sons.
Contudo, e embora se sinta completamente o caracter idílico da música, com os acordes suaves da orquestra a fazer destacar as frases do solista na imitação do canto dos pássaros, não seria a natureza a inspirar Vaughan Williams, mas sim o poema "The Lark Ascending", de George Meredith, com as doze linhas em baixo a serem inscritas pelo próprio compositor no prefácio da partitura:
He rises and begins to round,
He drops the silver chain of sound,
Of many links without a break,
In chirrup, whistle, slur and shake.
For singing till his heaven fills,
'Tis love of earth that he instils,
And ever winging up and up,
Our valley is his golden cup
And he the wine which overflows
to lift us with him as he goes.
Till lost on his aerial rings
In light, and then the fancy sings.
A pureza do génio tem destas coisas, pois se a música foi inspirada no poema, também o poema poderia facilmente ser a resposta para a música. Tal como diria o The Times, após a estreia do Queen's Hall, sobre o autor d'"a única obra de um longo programa que mostraria um suave desprezo pelos modos de hoje e de ontem": "Ele sonha o seu caminho."... e pode levar com ele todo aquele que deseje sonhar também.
- Nuno Oliveira?
- Presente!
"Sinfonia nº 5, em ré maior"
"The Lark Ascending"
✨ Extractos que proponho para audição: (Sinfonia nº 5)
(nota: ver também publicações nº 6, 47 e 55)
- London Symphony Orchestra
- André Previn
- RCA, RD89882
limite da razão, tornando impossível sair emocionalmente ileso e sem alguns
arrepios na espinha), com alguns destaques identificados a seguir;
[I]: tutti, aos 0:00-3:47 (Pastagens serenas e a questão perdida entre as brumas
no horizonte.) [youtube]
[II]: metais, aos 4:16-4:24 (Precipícios termais de Linz.) [youtube]
[III]: corne inglês e cordas, aos 0:00-1:59; tutti, aos 2:57-4:30 e 8:37-10:17 (A
Romanza de antologia que nos transcende e transporta para "o belo" mundo
natural.) [youtube]
[IV]: tutti, aos 7:26-... (A síntese desta "Quinta" começa aqui...) [youtube]
- Royal Liverpool Philharmonic Orchestra
- Vernon Handley
- EMI, CD-EMX 9512
interpretação de referência para muitos apreciadores desta obra.
Um registo glorioso e simplesmente imperdível.)
- The London Symphony Orchestra
- Bryden Thomson
- Chandos, CHAN 8554
vibrante e clarividente típica do mestre Thomson. Interpretação de excelência
e uma fabulosa escolha também.)
[LA] [youtube]
- Bournemouth Symphony Orchestra
- Kees Bakels
- Naxos, 8.550738
com destaque para os magníficos solos nas madeiras e o som acutilante dos
metais. Um registo brilhante, com estatura e também uma excelente opção.)
- London Philharmonic Orchestra
- Roger Norrington
- Decca, 458 357-2 GH
e cristalinos. A preferência dos que valorizam uma poesia sem excessos
de romantismo. Uma escolha de qualidade a ter em conta.)
- Leonard Slatkin/Philharmonia Orchestra, RD60556 (Uma interpretação de extremos, marcada por um Scherzo à hora de ponta e uma Romanza vivida sem hora marcada. Um registo diferente para descobrir.), [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]
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✨ Extractos que proponho para audição: (The Lark Ascending)
(nota: ver também publicações nº 6, 47 e 55)
- Nigel Kennedy
- City of Birmingham Symphony Orchestra
- Simon Rattle
- EMI, CDC 5 56413 2
cotovia. Uma interpretação inspiradora e imperdível por um Kennedy ao seu
melhor. Icónico.), com alguns destaques, identificados a seguir;
[LA]: violino, aos ...-0:15 (Brincar no ar.) e 2:55 (Suspensão confiante e
"o belo" planar.); trompa e violino, aos 4:15 (Domínio das rotas desejadas.);
violino, aos 6:31 (Lembrança das brincadeiras no ar.); violino e tutti, aos 7:50
(Acrobacias em companhia.), 9:10 (Usufruto pleno da habilidade.), 11:10 ("o
belo" e desconcertante percurso...) e 14:23-... (... até à viagem final.) [youtube]
- Hilary Hahn
- London Symphony Orchestra
- Colin Davis
- Deutsche Grammophon, 00289 479 8295 GM2
[LA] [youtube]
- Iona Brown
- Academy of St. Martin-in-the-Fields
- Meville Marriner
- Argo, 414 595-2 ZH
ouvinte. Interpretação inspiradora a não perder.)
[LA] [youtube]
- Christopher Warren-Green
- London Chamber Orchestra
- Christopher Warren-Green
- Virgin, CUV 5 61126 2
Um registo radiante e uma excelente escolha também.)
[LA] [youtube]
- Pinchas Zukerman
- English Chamber Orchestra
- Daniel Barenboim
- Deutsche Grammophon, 419 748-2 GH
opção de qualidade a ter em conta.)
[LA] [youtube]
- Michael Bochmann
- English String Orchestra
- William Boughton
- Nimbus, NI 5211
- David Nolan
- London Philharmonic Orchestra
- Vernon Handley
- EMI, CD-EMX 9508
✰ Outras sugestões:
- Richard Friedman/Ross Pople/London Festival Orchestra/ASV, CD DCA 779 (Voo seguro e sem riscos, com uma sonoridade simples e directa. Um registo a descobrir.), [LA] [allmusic]
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"Fim de ciclo..."
Classe de 1993-1998 da Licenciatura em Eng. Mecânica - Faculdade de Ciências e Tecnologia
[Universidade de Coimbra, Maio de 1998]
"...e início da viagem."
O meu pai (à dir.), 30 anos antes de mim [Águeda, 1968]
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"Romanza"
A Nivea no jardim da sua casa [Nelas, 30-08-2023]
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