sábado, 9 de julho de 2022


71. Kodály: Háry János, Danças de Galánta |


Os heróis e as tradições magiares, "Háry János" e as "Danças de Galánta", Zoltán Kodály e aqueles que vêm passar o comboio entre Praga e Budapeste.






À memória da Glória e das suas descendências eslavas (aaaaaaatchim!...).
À memória do Ladislau e do seu clarinete de juventude.






Uma das citações que porventura melhor ilustrará a personalidade do compositor húngaro Zoltán Kodály (1882-1967), seria aquela que teria proferido numa bela ocasião a Béla Bartók, seu grande amigo e companheiro de jornadas exploratórias ao mundo da música tradicional: "Para nos tornarmos internacionais temos de ser primeiro nacionais, e para sermos nacionais temos de ser do povo". Para lá desta declaração, a verdade é que Kódaly (também ele etnomusicólogo, filósofo, pedagogo e linguista) viveu de facto o que pensou, percorrendo nos inícios do século XX as aldeias húngaras de lés a lés com o seu inseparável amigo, demonstrando a curiosidade académica que reflectiria a recolha do imenso espólio de melodias populares, que para além de constituir a sua tese de doutoramento na Academia de Música de Budapeste, viria a servir de base à construção de uma música tipicamente húngara.
Nesse sentido, facilmente podemos compreender a enorme influência que a música herdada dos seus antepassados teve no carácter da própria música de Kodály, onde, para o efeito proposto, se destacam a ópera Háry János e a rapsódia sinfónica Danças de Galánta.
A história sobre o herói popular húngaro Háry János era já bem conhecida quando Kodály resolveu utilizá-la no texto para uma espécie de ópera popular sobre o assunto, com canções inspiradas no folclore húngaro e diálogos recitados. A personagem Háry János retratava um daqueles lendários antigos soldados-camponeses das guerras napoleónicas que, já com uma idade avançada, passava o tempo numa taberna a entreter quem passava com as suas alegadas façanhas facilmente dadas ao exagero. Na realidade, proezas como a sua intimidade com o imperador de Viena, o seu romance com Maria-Luísa (esposa de Napoleão) e a sua fuga para Viena, como teria derrotado sozinho o exército de Napoleão e como finalmente teria rejeitado Maria-Luísa e a vida na corte vienense, retornando à sua terra natal e à sua paixão de juventude, a menina Örzse, deixariam algumas suspeitas quanto à sua veracidade, pelo que a impossibilidade de se saber com exactidão o quanto seria realmente verdade e o quanto seria fruto de uma imaginação romântica faria com que o compositor adoptasse por escrever o gigantesco espirro orquestral a abrir a obra, símbolo húngaro da "verdade absoluta" que seria apresentada naquele "conto de fadas" a partir daí...
Háry János seria escrito, assim, entre 1925-1926 e estreado em Budapeste a 16 de Outubro de 1926 com enorme sucesso, tendo Kodály elaborado no ano seguinte uma suite orquestral composta por seis quadros que se manteria até aos nossos dias como uma das suas obras mais conhecidas pela extraordinária veia melódica e colorido orquestral de inegável exotismo eslavo. Esta suite iniciar-se-ia com o já referido "espirro" e melodias tipicamente magiares no "Prelúdio - A história de encantar começa" [HJ-I], seguindo-se o "Relógio Musical Vienense" [HJ-II] a fazer lembrar as aventuras do nosso herói na corte vienense, ilustradas de forma fantasiosa, e a "Canção" [HJ-III] que faria recordar a sua prometida Örzse e a vida do dia-a-dia comum das aldeias húngaras, aqui retratado pela sonoridade destacada do tradicional cimbalão e pelos apontamentos ao estilo cigano. A obra prosseguiria com o relato dos combates furiosos contra os franceses e pela captura (a solo...) de Napoleão, cuja lamúria se faria ouvir através da invenção de Adolphe Sax (...do saxofone) na "Batalha e derrota de Napoleão" [HJ-IV], surgindo depois o "Intermezzo" [HJ-V], com o cimbalão novamente em grande destaque numa dança de cortejamento interpretada de forma virtuosística por este instrumento, dando uma boa imagem do que poderia ser a alma húngara e, ao que parece, o corpo húngaro também. A obra finalizar-se-ia com a "Entrada do Imperador e da sua Corte" [HJ-VI] que contaria a recepção de Háry János na corte de Viena, com a pompa e o esplendor festivo característicos, para logo depois retornar à sua aldeia natal e aos seus crédulos ouvintes, fazendo transparecer a mensagem subliminar de que a Hungria não necessitaria de ser subserviente à Áustria, política ou musicalmente, tendo no seu folclore o que seria preciso para constituir uma forte tradição musical por si só.
Zoltán Kodály viria a escrever as suas Danças de Galánta em 1933 no seguimento de uma encomenda para a comemoração dos oitenta anos da Sociedade Filarmónica de Budapeste, agrupamento que a viria a estrear no dia 23 de Outubro desse ano.
Segundo o compositor, esta obra teria sido inspirada nas memórias de infância passadas em Galánta, uma pequena cidade húngara de foco comercial na região de Trnava (hoje Eslováquia) onde Zoltán teria vivido entre 1885 e 1892 "os melhores sete anos da minha infância". Seria naquela localidade, habitada por húngaros, eslovacos e alemães, onde o seu pai trabalharia como mestre da estação ferroviária na linha principal que ligava Praga e Bratislava a Budapeste, que o compositor ouviria pela primeira vez um agrupamento de música cigana, a "Banda de Galánta". A "Banda de Galánta" era famosa na região há mais de um século e algumas das suas danças teriam sido já publicadas em 1804 em Viena, uma edição que Kodály viria a conhecer mais tarde e donde escolheria algumas melodias para os seus temas musicais, transformando-as depois numa espécie de rapsódia húngara à sua maneira, começando com uma lenta introdução e viajando de seguida através de cinco danças ligadas entre si, cada vez mais rápidas. O tema da primeira dança (Andante maestoso) chegar-nos-ia pelos violoncelos e posteriormente pela cadenza e belíssimo lamento do clarinete (a proposta pelo clarinetista Timothy Paradise , em baixo, é um bom exemplo d"o belo" que não deverão perder), numa melodia derivada do tradicional "verbunkos", uma dança húngara do século XVIII de origem militar extremamente atractiva (atração à qual sucumbiria, entre outros, Brahms, sendo as suas Danças Húngaras testemunhas disso mesmo), que era usada para incentivar os jovens ao alistamento militar (uma eficácia que entretanto não fui capaz de comprovar). A segunda dança seria introduzida pela flauta (Allegro moderato) e depois da primeira dança ser recordada, surgiriam, então, a terceira pelo oboé (Allegro con moto grazioso) e a excitante quarta, um estado de espírito entretanto quebrado pela melodia súbita do clarinete mas retomado rapidamente pela ruidosa quinta dança final, um Allegro vivace à maneira cigana para fazer saltar qualquer um do correspondente meio de apoio à absorção artística (seja ele o simples e popular tripé ou o exuberante e real trono, passando pelas classes médias de uma cadeira, cadeirão, poltrona, sofá ou eventualmente divã, uns eventualmente mais bem estimados que outros, mas a maioria usados em demasia nos últimos anos na manutenção de tronos e tripés).
Zoltán Kodály fecharia os olhos pela última vez no dia seis de Março de 1967, depois de ter vivido um casamento de quarenta e oito anos com Emma Gruber (até ao ano da sua morte em 1958) e ainda um outro, que viria a constituir em 1959 com a sua aluna Sarolta Péczely, cinquenta e oito anos mais nova (aaaaaatch...sim, cinquenta e oito). Porventura nunca conseguiremos saber se a eventual prática da derradeira Dança de Galánta terá ou não contribuído para o fulminante ataque cardíaco final... mas sabemos que a proeza da partilha da vida entre a juventude de uma ideia e a frescura de um corpo, essa sim foi real, e seria digna de entrar nas façanhas daquele herói de nome Háry János. 


Nuno Oliveira




"Háry János" (suite da ópera)
"Danças de Galánta"


✨ Extractos que proponho para audição:
  • Hungarian State Symphony Orchestra
  • Adam Fischer
  • Nimbus, NI 5284 (Suite de Háry János, Danças de Galánta)
"o belo": toda a obra (Um registo de referência interpretado por músicos que
                conviveram com esta música durante toda a vida, dirigidos de forma
                idiomática, detalhada e colorida pelo mestre húngaro. O ADN cultural
                sente-se no som do cimbalão de Háry János e no final de cortar a respiração
                das Danças de Galánta. Uma escolha de carácter a não perder!)
                     [HJ-I]: tutti, aos 0:00-1:35 (O mistério na partida de uma fábula "nacional-
                -impressionista"[youtube]
                [HJ-II]: sinos e madeiras, aos 0:00-2:00 ("o belo" ambiente da festa que fica
                para a memória!) [youtube]
                [HJ-III]: viola, aos 0:00-0:48; cimbalão, madeiras e tutti, aos 0:49-5:38 (Sons
                de outras paragens que nos transportam... a trote (2:43-3:32)!) [youtube]
                [HJ-IV]: tutti, aos 0:00-3:42; saxofone, aos 3:43-4:32 (Banda sonora grotesca,
                a celebração do tutti húngaro e o lamento do saxofone francês.) [youtube]
                [HJ-V]: cimbalão e tutti, aos 0:00-5:26; trompa, aos 1:55-2.20 (Folclore para o
                entretenimento dos ouvidos nativos e não nativos!) [youtube]
                [HJ-VI]: tutti (A apoteose Real dando largas à imaginação!) [youtube]
                [DG]: trompa, oboé e tutti, aos 0:00-1:42 ("o belo" desfecho romântico de uma
                frase falada ao ouvido...); clarinete e tutti, aos 2:34-5:35 e 7:04-8:31 (D.
                Clarinete, "o belo", e a sua corte!); tutti, aos 13:47-15:31 e 16:44-17:06 (E
                virou!!!... "o belo" que é!) [youtube]






  • Seattle Symphony Orchestra
  • Gerard Schwarz
  • Delos, DE 3083 (Suite de Háry János, Danças de Galánta)
"o belo": (Sonoridade fabulosa e interpretação viva e calorosa, com as nuances
                 musicais bem vincadas. Destaque para o solo de saxofone e para o som do
                 cimbalão bem presente em Háry János, e para o final excitante das Danças
                 de Galánta. Uma proposta de eleição.)
                 [HJ-I] [youtube], [HJ-II] [youtube], [HJ-III] [youtube], [HJ-IV] [youtube],
                 [HJ-V] [youtube], [HJ-VI] [youtube], [DG] [youtube]






  • Chicago Symphony Orchestra
  • Georg Solti
  • Decca, 443 444-2 DH (Suite de Háry János)
"o belo": (O registo brilhante e distinto de uma das especialidades musicais do
                 mestre Solti. A sumptuosidade das cordas de Chicago e os solos magníficos,
                 com o cimbalão a notar-se a cada intervenção. Uma escolha de excelência,
                 a não perder também.)
                 [HJ-I] [youtube], [HJ-II] [youtube], [HJ-III] [youtube], [HJ-IV] [youtube],
                 [HJ-V] [youtube], [HJ-VI] [youtube]






  • The Saint Paul Chamber Orchestra
  • Hugh Wolff
  • Teldec, 9031-73134-2 (Danças de Galánta)
"o belo": (Sonoridade rica e detalhada, linguagem eslava da primeira à última
                nota e "o belo" solo de clarinete de Timothy Paradise! Uma magnífica
                performance. Simplesmente imperdível.)
                [DG] [Ext./Andante maestoso: youtube] [Ext./Allegro molto vivace: youtube]






   
✰ Outras sugestões:
  • Neeme Järvi/Chicago Symphony Orchestra/Chandos, CHAN 8877 (Suite de Háry János, Danças de Galánta) (Proposta que prima pela elegância e onde se destacam a qualidade da orquestra norte-americana e os solos de saxofone (Háry János) e clarinete (Danças de Galánta). Uma escolha a ter em conta.), [HJ-I] [youtube], [HJ-II] [youtube], [HJ-III] [youtube], [HJ-IV] [youtube], [HJ-V] [youtube], [HJ-VI] [youtube], [DG] [youtube]




  • Kurt Masur/New York Philharmonic/Teldec, 9031-77547-2 (Suite de Háry János) (Cimbalão bem integrado no resultado final, metais exuberantes e solos sublimes de saxofone e trompa. A proposta levada a cabo pelo mestre Masur para descobrir.), [HJ-I] [youtube], [HJ-II] [youtube], [HJ-III] [youtube], [HJ-IV] [youtube], [HJ-V] [youtube], [HJ-VI] [youtube]




  • Iván Fischer/Budapest Festival Orchestra/Hungaroton (Brilliant), 6514 (Danças de Galánta) Interpretação mais directa e com alguns detalhes de interesse. Uma boa opção.), [DG] [youtube]






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Zoltán Kodály com a esposa Sarolta e o interprete de cimbalão Gilbert Webster
[ensaio da Suite de Háry János, 01-10-1960]








Zoltán Kodály com a esposa Sarolta [Londres, 1965]







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"Ladislau e Glória, música e descendência"



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