quinta-feira, 1 de julho de 2021


56. Prokofiev: sinfonia nº 1, "Clássica" |

O charme neoclássico da "Primeira Sinfonia" de Sergei Prokofiev, um habitué do ataque ao establishment transformado num adepto de subtilezas defensivas... para ganho de todos.






Para os "Primeirinhos!": o António, o Cândido e o Rui Luís.






É razoável acreditar que nos momentos que antecedem a obrigatória audição musical, muitas vezes despendidos numa viagem ao ritmo do folhear das brochuras duma integral sinfónica conhecida, seja admissível supor-se que a Sinfonia Clássica de Sergei Prokofiev (1891-1953), a primeira das sete escritas por este compositor, pudesse ser uma obra de principiante. No entanto, e apesar das suposições serem maioritariamente bem-vindas, os factos constatar-se-iam bem diferentes. Com efeito, em 1917, no ano de nascimento desta sinfonia, o enfant terrible russo de vinte e seis anos teria já no seu portfolio criativo duas outras sinfonias (não publicadas) e uma sinfonietta, bem como dois concertos para piano, e ainda uma suite para orquestra (Suite Cita) e um bailado (O Bufão), tudo peças do mais alto calibre, não só no que diz respeito à "violência de ataque" (musical, entenda-se), como também de controvérsia, na medida em que, segundo a crítica da época, deixavam habitualmente o público "gelado de medo e com os cabelos em pé", num sinal de aprovação pelos jovens daquela geração (...hirta e provavelmente despenteada), e, ao mesmo tempo, da contrária desaprovação pela burguesia anciã instalada (no aconchego calvo da lareira, seguramente...).
Desta vez, porém, as coisas viriam a ser diferentes... Depois de se aperceber dos sinais evidentes de marginalização por parte do conservadorismo decisor, devido às suas obras "agressivamente modernas", Sergei decide escrever uma sinfonia inspirada naquela que Haydn poderia ter escrito se tivesse vivido naquele tempo, aproveitando, deste modo, a dieta à base da obra deste compositor com que se alimentava a classe de direcção do Professor Tcherepnin, no Conservatório de São Petersburgo onde estudava. A sua intenção seria a de deliciar a audiência em vez de a tentar chocar, um objectivo, ainda assim, todavia não alcançado, uma vez que a expectativa gorada do habitual estilo musculado se tivesse mostrado ainda chocante para alguns dos gregos ou troianos mais difíceis de agradar, ou para, quem sabe, o alegado alvo da escolha do título da obra, retratado num célebre "para provocar os gansos". Na verdade, para além da graça que seria testemunhar a surpresa de determinados sábios, Sergei teria também a esperança de que a sua Sinfonia Clássica se viesse a tornar num clássico do reportório. Ambos os desejos viriam a ser alcançados: o primeiro, ao que parece, o segundo, sem sombra de dúvida. Com efeito, seria o próprio Prokofiev a referir estas ideias na sua autobiografia: "Eu imagino que se Haydn tivesse vivido até aos nossos dias ele teria preservado a sua maneira de compor, ao mesmo tempo que teria absorvido algo de novo. Este foi o tipo de sinfonia que eu quis escrever: uma sinfonia ao estilo clássico. À medida que se começou a desenvolver, chamei-lhe Sinfonia Clássica, em primeiro lugar por ser a maneira mais simples de a chamar, em segundo, para agitar um ninho de vespas, e, finalmente, na esperança de que a sinfonia se provasse, com o tempo, um verdadeiro clássico, o que me iria beneficiar de forma considerável". Exceptuando-se a perceptível incoerência zoológica entre citações, no final tudo bateria certo... como nas estreias de teatro...
Prokofiev começaria, assim, a compor esta obra em 1916 a partir da sua datcha no meio da natureza, terminando a partitura a 10 de Setembro de 1917, num ambiente de tensão política entre as Revoluções Russas de Fevereiro e Outubro desse ano, e dirigindo a estreia em Petrogrado (vulgo Leninegrado, vulgo São Petersburgo, ...) a 21 de Abril de 1918, numa sala que contaria, entre outros, e para além das eventuais referências zoológicas já citadas, com a presença de Anatoly Lunacharsky, o recém nomeado "Comissário do Povo para a Educação" e o representante dos Bolcheviques que teriam subido ao poder no mês anterior. Supostamente, o sucesso desta obra ter-lhe-á proporcionado a permissão oficial para as deslocações e permanência fora do solo russo, uma benesse que Prokofiev tivera o mérito de manter desde 1913 até ao seu regresso duradouro em 1936, para, nas palavras de Shostakovich: "Cair dentro da sopa como uma galinha", ao que acrescento, aromatizada, ou melhor, "harmonizada" com o Realismo Socialista característico da altura.
Na realidade, se a leveza das texturas e a graciosidade das obras de Haydn são recordadas nesta sinfonia, já a espiritualidade e o apelo da modernidade terão sido responsabilidade exclusiva do génio de Prokofiev, no tal volte face dado pelo compositor que pouco teria de original, uma vez que semelhante ocorrência ter-se-ia já passado recentemente com Richard Strauss, um autor que havia apresentado o seu Cavaleiro da Rosa em 1911, depois de já nesse século ter dado a conhecer obras como Salomé ou Elektra
E assim, a obra viria a apresentar os quatro andamentos habituais, como seria de esperar. Iniciar-se-ia com um elegante Allegro [I], surgindo depois o belo e surpreendente Larghetto [II], uma lenta polonaise de um lirismo extraordinariamente sedutor. Seguir-se-ia uma Gavotte [III], replecta de vivacidade, em substituição do comum Minueto das sinfonias de Haydn, um andamento que (o, quem sabe, ainda rebelde...) Prokofiev gostava particularmente, tanto que o viria a inspirar para o seu Romeu e Julieta vinte anos mais tarde, até chegarmos finalmente a um Finale, Molto Vivace [IV] de grande brilhantismo.
Apesar dos detalhes apelativos que lhe trariam a fama imediata, passar-se-ia algum tempo até que o mundo da música percebesse a inteligência e intuição desta Sinfonia. Afinal, da mesma forma que cada fim tem um princípio, também a maravilhosa música "Clássica" do séc. XX seria inspiração da melhor música que o séc. XVIII fôra capaz de oferecer.

   
Nuno Oliveira




"Sinfonia nº 1, em ré maior, op. 25, Clássica"


✨ Extractos que proponho para audição: (nota: ver também publicações nº 19, 79 e 87)
  • London Philharmonic Orchestra
  • Leonard Slatkin
  • RCA, 5661-2-RC
"o belo": toda a obra (Lirismo de audição viciante e virtuosismo levado ao extremo. A
                não perder para os amantes da música e da velocidade!), com alguns destaques,
                identificados a seguir;
                [I-IV] [youtube] [Spotify] (Nota: os tempos indicados referem-se à audição completa)
                [I]: tutti, aos 0:00-4:00 (A alegria no recreio da infância!)                
                [II]: tutti, aos 4:08-7:36 (A tranquilidade da sala de aula da professora São...) 
                [III]: tutti, aos 7:42-9:19 (Quase a acabar a lição... Há trabalhos para casa...) 
                [IV]: tutti, aos 9:20-13:13, com 10 segundos estratosféricos nas madeiras, aos
                9:39-9:49, 10:46-10:56 e 12:21-12:31 (A corrida dos "Primeirinhos" a caminho
                de casa!) 






  • Orpheus Chamber Orchestra
  • Deutsche Grammophon, 423 624-2 GH
"o belo": (Uma gravação de excelência e a primeira escolha para muitos melómanos.
                Em destaque o som personalizado do agrupamento norte americano e a
                excitação que transmitem do início ao fim. Simplesmente fenomenal.)
                [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]






  • Orchestre de Chambre de Lausanne
  • Alberto Zedda
  • Virgin, VC 7 91098-2
"o belo": (Sonoridade quente pelo magnífico agrupamento suíço, numa interpretação
                repleta de detalhes e subtilezas a não perder.)
                [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]






  • London Symphony Orchestra ou Los Angeles Philharmonic Orchestra
  • André Previn
  • EMI, CDC-7 47855 2 ou Philips, 442 399-2 PM
"o belo": (Esplendidos registos pelo mestre Previn à frente dos músicos londrinos nos
                anos 70 e em Los Angeles nos anos 80. Interpretações vivas e sonoridades
                coloridas a não perder também.)
                EMI: [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]
                Philips: [I-IV] [youtube]







  • Berliner Philharmoniker
  • Herbert von Karajan
  • Deutsche Grammophon, 400 034-2 GH
"o belo": (A articulação de Karajan junta-se ao som polido e acolhedor da orquestra
                de Berlim, nesta versão repleta de graciosidade e calor. Um registo de
                referência e uma excelente escolha também.)
                [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]






  • The Saint Paul Chamber Orchestra
  • Hugh Wolff
  • Teldec, 9031-77309-2
"o belo": (Som exuberante e rotação elevada. Uma interpretação confiante oferecida
                por Wolff e o seu magnífico agrupamento norte americano. Uma escolha de
                qualidade.)
                [I-IV] [allmusic], [II] [youtube], [II] [spotify], [IV] [spotify]




 
 
   
✰ Outras sugestões:
  • Seiji Ozawa/Berliner Philharmoniker/Deutsche Grammophon, 431 614-2 GX4 (Para os amantes do meio-fundo... Ozawa demora a dizer, mas nós entendemos.)  [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]




  • Stephen Gunzenhauser/Slovak Philharmonic Orchestra/Naxos, 8.553218 (Som cheio e interpretação vincada. Uma boa escolha.), [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]




  • Enrique Bátiz/London Philharmonic Orchestra/EMI, CDC 7 49055 2 (Sonoridade atmosférica, interpretação ágil e fresca. O estrilho do trompete era desnecessário, mas pode haver quem goste. A descobrir.), [I-IV] [spotify]






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Sergei Prokofiev [São Petersburgo, 1918]



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Um exemplar dos "Primeirinhos" (1987)



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