53. Dvorák: sinfonia nº 9, "Do Novo Mundo" |
A "Sinfonia nº 9" de Antonín Dvorák e os sons de casa nas páginas "Do Novo Mundo".
Para o Paulo, que deu a conhecer um mundo novo a quem lhe dera a conhecer um mundo novo também.
A história de Antonín Dvorák (1841-1904) e da sua Sinfonia nº 9, em mi menor, op. 95, "Do Novo Mundo", iniciar-se-ia curiosamente nas docas nova-iorquinas, mais propriamente nos armazéns de Francis Thurber, um lugar e uma actividade comercial indispensáveis à obtenção do exorbitante montante de um milhão e meio de dólares (nos anos noventa... do séc. XIX!, é importante salientar) que Jeanette, a melómana esposa, despenderia num fiasco chamado Companhia de Ópera em Língua Inglesa, o que a levaria a insistir por outras actividades artísticas, uma mania que viria a culminar na criação do Conservatório de Música de Nova Iorque. Uma melo...mania que daria frutos históricos, como se viria a confirmar.
O Conservatório de Música de Nova Iorque era uma instituição pouco usual para aquela época. O objectivo da sua fundadora, Jeanette Thurber (perdoem a insistência nominativa, que justifico sob forma de singela homenagem à vontade de ferro da senhora...), era de estabelecer uma escola nacional americana de composição. A escola não atribuiria qualquer diploma, mas, em contrapartida, oferecia um ensino gratuito a TODOS aqueles que não conseguiam suportar os custos e encorajava o envolvimento de estudantes negros. Em síntese, a escola da sra. Thurber "só" ensinava a compor TODOS os que quisessem por lá aparecer... e se sujeitar a aprender com alguns dos melhores que percorriam os caminhos da Terra e do Espírito por aqueles dias. Uma ideia dum humanismo sem paralelo, e, também por isso, excessivamente progressista, mesmo perigosa, para algumas opiniões estabelecidas na praça... do género daquelas que, dois milénios antes, haviam pregado aquelas Ideias numa cruz.
No virar daquele século, e apesar da maioria dos compositores europeus considerarem a aventura americana com extrema cautela (ou não se tratasse, como diria Hugo Wolf, de "um lugar onde nem os rouxinóis cantam"; sendo reconhecido que a metáfora conduz ao exagero, este será um bom exemplo na minha opinião), a direcção que Dvorák, um dos melhores, seguiria, levá-lo-ia de facto a Nova Iorque e a mostrar o caminho que Gustav Mahler trilharia alguns anos a seguir. Depois de vários meses de negociação e de uma soma irrecusável de $15000 de salário anual, um valor incomparável aos $600 que auferiria no Conservatório de Praga (...a um ano de trabalho em Nova Iorque corresponderiam vinte e cinco em Praga! Uma America Great... That Day), Dvorák partiria para Nova Iorque, com a esposa e duas das suas filhas, em Setembro de 1892, cidade onde permaneceria na direcção daquele Conservatório de Música até 1895, três anos em tempo americano e setenta e cinco em europeu (é só fazer a conta...), pelo que menos que a excelência a sua empregadora não lho poderia permitir, tendo sido isso mesmo aquilo que ele lhe ofereceu quando, pela primeira vez, pegou na caneta que Lewis Waterman estaria a inventar por aquela altura, não longe dali.
E assim nasceria a Sinfonia do Novo Mundo, escrita entre Dezembro de 1892 e Maio de 1893, a partir da sua acolhedora casa da End 17th Street, Stuyvesant Park, com vista para os bosques da Boémia e para as planícies Americanas, a primeira obra que escreveria naquele país, logo após a calorosa recepção dada pelos emigrantes checos à sua chegada e subsequente temporada que passaria em Spillville, no Iowa, uma estadia organizada pelo jovem violinista checo-americano, Josef Jan Kovhrik, num lugar famoso pela sua comunidade checa e, ao que parece, pelas fortes celebrações báquicas decorrentes e recorrentes, um ambiente que, à partida, não só lhe proporcionaria um lá-mi-ré de casa, como também todas as restantes notas das variadas escalas musicais... Há quem diga que a principal inspiração neste Novo Mundo, teria sido mesmo aquela que teria vivido em Spillville... na "Boémia"...
Com efeito, e embora Dvorák faça uso de ritmos e melodias afro-americanas ou ameríndias, a realidade é que esta obra seria ainda muito checa na sua substância. Poderia ter sido criada na realidade fascinante dum Mundo Novo, e, no entanto, o que a preencheria seriam as memórias nostálgicas do Mundo Antigo, especialmente do das canções e danças da sua Boémia.
Seria conhecida a apreciação do compositor pela expressividade e conteúdo melódico das canções de trabalho das plantações de algodão e dos espirituais negros, um gosto que lhe teria surgido após ter escutado as canções interpretadas por H. T. Burleigh, um talentoso estudante negro do conservatório, e a obra do compositor Stephen Foster, o "Pai da música Americana". Juntando-se a este facto, Dvorák conheceria já a tradução em língua checa do poema épico Song of Hiawatha, um retrato poético das lendas dos nativos ameríndios do dramaturgo Henry Longfellow, absorvendo assim as influências americanas nós só da música como também da literatura.
Essa influência seria particularmente verdadeira nos dois andamentos centrais, onde, nas palavras do compositor, o Largo [II] evocaria o funeral trágico de Minnehaha, a amada do líder Hiawatha, enquanto que o Scherzo seguinte [III] descreveria uma boda na floresta, e, mais concretamente, a dança do agitador Pau-Puk-Keewis. Na realidade, as semelhanças existentes nos ritmos sincopados e harmonias pentatónicas eslavas e americanas, criariam dificuldades na identificação clara de cada uma das influências, e se à justificação do título "Do Novo Mundo" fosse referido que apenas se quereria subentender "impressões e saudações do Novo Mundo" e que "apenas utilizei temas que criei, nos quais incorporei características da música dos negros e dos índios vermelhos", também não poderíamos deixar de notar a tristeza de alguém que se encontraria a seis mil quilómetros de casa, da maioria da família e de todos os amigos, porque, e apesar do acolhimentos entusiasta inicial, não havia feito nenhum amigo próximo naquela comunidade de imigrantes ou mesmo na sua principal admiradora, que não deixaria de ser também a sua patroa e alguém que teria desejado uma ópera baseada na obra de Longfellow e teria recebido uma sinfonia em vez disso... A resposta sobre se o material melódico é mais americano ou mais checo cedo gerou controvérsia exagerada e discussão inútil, que poderiam ter sido seguramente evitadas pela compreensão daquilo que o autor declararia ao New York Herald na véspera da estreia: "A Sinfonia nº 9 é música checa nascida do patriotismo, mas eu nunca teria sido capaz de a escrever se não fosse pela influência do Novo Mundo". Parece-me que isto diz tudo.
Finalmente, a sinfonia seria estreada no Carnegie Hall de Nova Iorque a 16 de Dezembro de 1893, pela Philharmonic Society com direcção de Anton Seidl, e embora não tivesse participado no ensaio aberto da véspera, Dvorák estaria presente na apresentação daquilo que seria um enorme sucesso. Não só teria havido um Encore do segundo andamento (Largo) como o compositor teria recebido uma ovação de pé... a cada andamento(!), pelo que a obra seria considerada um marco no reportório de concerto internacional, desde então, e um cartão de visita de todos os grandes maestros checos, como são os exemplos de Kubelik e Pesek, em interpretações propostas a seguir.
E como estamos no mês de Maio, em plena Primavera de aparições, onde florescem coisas boas e nascem outras tantas, é de igual modo importante salientar que Antonín Dvorák concluiria esta partitura a 24 de Maio de 1893, sendo curiosa a anotação na última página sobre um telegrama que teria chegado às 13h33min desse dia, informando-o que os seus outros filhos teriam chegado a Southampton, a caminho da América onde iriam passar o Verão. Os sons de casa nas páginas do Novo Mundo, mais uma vez... não?
Nuno Oliveira
"Sinfonia nº 9, em mi menor, op. 95, Do Novo Mundo"
✨ Extractos que proponho para audição: (nota: ver também publicação nº 36 e 89)
- New York Philharmonic
- Kurt Masur
- Teldec, 9031-73244-2
Tensão do princípio ao fim, com destaque para a extraordinária expressividade
do segundo andamento, um Largo inesquecível. Do melhor que o catálogo tem
para oferecer. A não perder!), com alguns destaques, identificados a seguir;
[I]: tutti, aos 0:00-1:00 (Tensão perceptível...) e 1:00-... (...que os jogos comecem!)
[II]: corne inglês, aos 0:41-2:12, 3:58-4:28 e 9:36-10:06 ("o belo" e maravilhoso
corne inglês!); trompas, aos 4:44-5:09 (O som e a sua recordação...); oboé e
tutti, aos 5:10-5:44 (...a máxima expressividade!); tutti, aos 10:07-11:11 (Quando
a música é a própria ausência do som... isso é "o belo"!) [youtube] [iTunes]
[III]: tutti (Determinação do primeiro ao último compasso.) [allmusic] [iTunes]
[IV]: tutti, aos 0:00-1:12 (Início poderoso...); clarinete e tutti, aos 1:48-2:42
[III]: tutti (Determinação do primeiro ao último compasso.) [allmusic] [iTunes]
[IV]: tutti, aos 0:00-1:12 (Início poderoso...); clarinete e tutti, aos 1:48-2:42
(melancolia, a seguir...); tutti, aos 5:48-6:55 (expressividade dos fff aos ppp...);
cordas, aos 6:56-7:50 (friccionas por sentimentos profundos...); trompas, aos 8:25-
8:42 (Virtuosismo? Presente!); metais, aos 8:42-9:34 (A sonoridade grandiosa...);
- Scottish National Orchestra
- Neeme Järvi
- Chandos, CHAN 8510
onde se destaca o equilíbrio entre a excitação e o relaxamento. Músicos
escoceses em plena forma e direcção sublime do mestre Neeme Järvi. Outra
gravação a não perder.)
- Berliner Philharmoniker
- Rafael Kubelik
- Deutsche Grammophon, 457 300-2 32
berlinense e o maestro Rafael Kubelik. Fresco, vigoroso e intemporal.
Um registo obrigatório em qualquer colecção.)
- Royal Liverpool Philharmonic Orchestra
- Libor Pesek
- Virgin, VC 7 90723-2
andamento majestoso e um final fulgurante. Uma boa escolha também.)
- Concertgebouw Orchestra, Amsterdam
- Colin Davis
- Philips, 420 349-2 PM
simplicidade e o lirismo dominam. Músicos holandeses de parabéns e
o maestro inglês também. Uma versão a escutar e a ter em conta.)
[I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]
- Royal Concertgebouw Orchestra
- Antal Dorati
- Philips, 454 538-2 10
de adrenalina no final. Um clássico para coleccionadores, que merece
ser descoberto apesar do som tradicional dos anos 50.)
- Jirí Belohlávek/Czech Philharmonic Orchestra/Supraphon, SU 3639-2 031 (Sonoridade fresca e interpretação de carácter tradicional, mais polida do que tensa. Excelentes solistas no largo.) [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]
- Georg Solti/Chicago Symphony Orchestra/Decca, 410 116-2 DH (Uma sinfonia talhada para o som exuberante da Chicago Symphony. Direcção expressiva do mestre Solti a condizer.) [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]
- André Previn/Los Angeles Philharmonic Orchestra/Telarc, CD-80238 (Som cheio que privilegia a elegância à agressividade, e uma leitura sem arestas a acompanhar.), [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]
- Lorin Maazel/Wiener Philharmoniker/Deutsche Grammophon, 410 032-2 GH (Sentimentos mais distantes nesta visão directa e objectiva do mestre Maazel.), [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]
- Wolfgang Sawallisch/The Philadelphia Orchestra/EMI, CDC 7 49114 2 (Um registo que privilegia a contemplação à disrupção, com a tensão a sentir-se suave no segundo andamento. O "Scherzo capriccioso", Op. 66, é um excelente bónus.), [I-IV] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]
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