sábado, 27 de fevereiro de 2021


50. Mendelssohn: Um sonho de uma noite de Verão |

"Um sonho de uma noite de Verão" que Shakespeare um dia escreveu e que Mendelssohn uma vida folheou... para que outros continuassem ainda a sonhar. 






Para a Madalena.

...no dia do seu neto João, o filho de um sonho de uma noite de Verão.  






Se a admiração de Felix Mendelssohn (1809-1847) pela obra de William Shakespeare pode ser compreendida pelo culminar de uma infância feliz e culturalmente cultivada, fruto da leitura frequente, em família, das obras do dramaturgo inglês nas traduções de August Schlegel (o irmão do tio Friedrich), e da intimidade com Goethe e Hegel que apenas as suas amizades poderiam proporcionar, já a particular adoração por Um sonho de uma noite de Verão só poderá ser explicada pelo fascínio de Felix por aquele enredo, que seria mais ou menos assim: Teseu, o Duque de Atenas, e Hipólita, a Rainha das Amazonas, encontram-se nas vésperas do seu casamento que viria a decorrer naquela cidade; Hérmia ama Lisandro mas o seu pai, Egeu, exige que esta se case com Demétrio; este impasse obriga Teseu a intervir; ou ela casa, ou ela morre, ou ela isola-se e renega o amor para sempre (...sim, sempre ela e eles nada); sem opções, Lisandro combina fugir com Hérmia para a floresta encantada; Hérmia conta a sua intenção à amiga Helena, que, por sua vez, é apaixonada por Demétrio; Helena, porventura de forma pouco inteligente, denuncia a fuga a Demétrio e os quatro entram na floresta encantada, o domínio de Oberon, o Rei dos duendes, e lar do elfo Puck; Oberon e Puck combinam uma travessura a infligir a Titânia, Rainha das fadas e esposa de Oberon, que passaria pela utilização de uma flor mágica que faz com que qualquer um se apaixone pelo primeiro ser que vê à sua frente; este plano faz com que Titânia se apaixone perdidamente por um burro falante, que mais não é do que o maior egocêntrico da trupe de artesãos e actores amadores que ensaiavam uma peça para o casamento de Teseu e Hipólita, aqui transformado por Puck (num burro, relembro); o travesso Puck volta a fazer das suas com a flor mágica, baralha-se e provoca a paixão de Lisandro por Helena, armando maior confusão entre os casais; Puck retrata-se das confusões que provocou; Lisandro faz par com Hérmia, Demétrio com Helena e Titânia faz as pazes com Oberon; Puck resta como o que mais se divertiu numa trama que mais não teria sido do que "um sonho de uma noite de Verão". Difícil não gostar, não é.
Desta forma, não será, seguramente, também difícil de visualizar, o manuscrito Shakespeariano debaixo do braço de Felix durante os percursos que o próprio faria entre as salas de aula da Universidade de Berlim, onde, nos intervalos, uma Abertura começaria a ganhar a forma musical para os dois pianos da família, o seu e o da sua irmã Fanny, como, aliás, a teria já feito suspeitar através de uma carta que anteriormente lhe teria escrito: "Hoje ou amanhã vou começar a sonhar um sonho de uma noite de Verão...". Suspeitas razoavelmente fundadas, admito eu.
Estávamos em 1826 quando os dois irmãos leem juntos a obra de Shakespeare e Felix adormece no sonho prometido ao colo de Fanny (uma proximidade aparentemente censurável, que alguma correspondência faria suspeitar...), a sua alma gémea e também ela uma pianista talentosa. Naquele Verão, a composição para orquestra da Abertura para Um sonho de uma noite de Verão, op. 21, tornar-se-ia no ponto alto de uma época certamente bem aproveitada pelo jovem compositor, como se de um "dia festivo sem pausas, repleto de poesia, música, peças instigadoras e brincadeiras espirituosas, guarda-roupa e actuações" se tratasse (dito pelo próprio, e, por esse motivo, de considerável veracidade).
Aqueles sons, representados brilhantemente numa partitura por um jovem igualmente iluminado, ouvir-se-iam pela primeira vez nos jardins da casa da família Mendelssohn, em Berlim, por uma orquestra e uma audiência composta exclusivamente por familiares e amigos, ficando a estreia pública reservada para 26 de Agosto desse ano, em Stettin, na Prússia (hoje Szczecin, na Polónia), sob a direcção de Carl Loewe, o famoso organista da catedral daquela cidade, naquele que seria o primeiro concerto público de Felix como músico, e, onde, para além daquela estreia, ainda se ouviriam o seu concerto para dois pianos, interpretado pelo próprio e por Loewe, o Konzertstück em fá menor para piano e orquestra de Weber, com Felix de novo ao piano, e a nona sinfonia de Beethoven, com Felix a sentar-se na estante dos primeiros violinos. Nada que um prodígio não conseguisse realizar...
Ora, sobre esta tirada de génio do adolescente Felix de dezassete anos, que faria sensação desde a sua estreia, poucos esperariam que se voltasse a repetir dezassete anos depois, desta vez pelo Herr Mendelssohn, com trinta e quatro, mergulhado uma vez mais e de forma igualmente genial naquele mundo de elfos, duendes e fadas, à semelhança do que tivera feito de forma inovadora e inimitável muitos anos antes. A maioria que o não esperaria enganar-se-ia claramente, já os que tivessem percebido de que afinal aquele livro nunca lhe teria verdadeiramente saído debaixo do braço, teriam feito jackpot. No fundo tratava-se ainda daquele Felix Mendelssohn, o único daquela idade a conseguir provocar uma revolução na sensibilidade musical com tamanho sucesso, numa escala a que nem mesmo Mozart, também ele possuidor de uma maturidade musical precoce, tivesse porventura imaginado que pudesse vir a acontecer. Bastava folhear novamente aquelas páginas mágicas e toda a música surgiria de forma natural... ou melhor, sobrenatural...
Na realidade, não existem evidências de que o jovem Felix estaria a pensar numa produção teatral quando escreve a Abertura (op. 21). Esta questão só se tornaria pertinente em 1843, no momento em que o Imperador Frederico Guilherme IV da Prússia decidiu apresentar a peça de Shakespeare no Palácio Novo, em Potsdam, pelo que, e apesar da elevada actividade inerente às suas responsabilidades como Maestro da Orquestra da Gewandhaus de Leipzig, Director do Conservatório e Director Geral da Música da Prússia, Mendelssohn acabaria por aceitar a encomenda para a Música de cena (op. 61), cuja estreia viria a dirigir a 14 de Outubro desse ano.
A música para Um sonho de uma noite de Verão (Abertura, op. 21 e Música de Cena, op. 61), é composta por onze quadros (existem ainda alguns melodramas, perfazendo um total de dezoito partes). Inicia-se com a Abertura [1], que nos dá uma imagem geral do conto de fadas de Shakespeare, com algumas ilustrações de sombra e de luz que serão sentidas pelas personagens da história. O 2º acto, que é passado numa floresta encantada próxima de Atenas, abre com um Scherzo [2]. O diálogo mágico entre o elfo Puck e uma fada é transformado em música sublime, numa atmosfera de suave sensibilidade para com a natureza à qual se juntam as travessuras dos protagonistas. Seguir-se-ia o momento da acção com Oberon, Titânia e correspondente comitiva élfica, para a qual o compositor escreveria a maravilhosa Marcha dos Elfos [3]. O momento do drama onde Titânia se retira para dormir é seguido por uma canção de encantar com solistas e coro feminino (Lied mit Chor) [4], na qual os pequenos elfos lutam com animais ameaçadores, numa melodia simples e de escuta viciante... quando interpretada pelas melhores vozes (como são exemplos Sandrine Piau e Delphine Collot). No final do 2º acto, quando Hérmia acorda na floresta, depois de um pesadelo, para descobrir que teria sido abandonada por Lisandro, Mendelssohn introduz um Intermezzo [5] que expressaria não só o medo e desapontamento de Hérmia, mas também a sua determinação. Chega um Nocturno [6], o silêncio espalha-se por toda a cena e os casais, cansados e confusos, adormecem na floresta. A esta suave envolvência, seguir-se-ia o forte contraste provocado pela fanfarra introdutória da Marcha nupcial (uma marca por si só...) [7] de Teseus e Hipólita. Depois da Fanfarra [8] e da Marcha fúnebre [9] (que, convem explicar, acompanharia uma tragédia ocorrida na peça que entretinha os convidados da boda... luz e sombra de novo. Cómico? No mínimo, surreal...), chegaria a Dança dos palhaços [10] (Mendelssohn apelidaria os artesãos-actores desta forma...) e o conclusivo Finale [11], que reuniria fragmentos da Abertura acrescidos por um "coro de fadas", até ao baixar do pano, com suaves harmonias nos sopros a fazer recordar o inicio da obra.
A fantasia tímbrica da orquestração em andamentos como o Scherzo e a Marcha dos Elfos, com os seus trilos e trompas "élficas", revela distinções entre instrumentos de época e instrumentos modernos com excepcional clareza. Por outro lado, a utilização do oficleide, o precursor da tuba moderna, demonstraria uma vez mais a originalidade e curiosidade de Mendelssohn, materializada, neste caso, num instrumento patenteado pela primeira vez apenas alguns anos antes, em Paris.
Com efeito, Franz Liszt viria a referir "numa bela ocasião": "...não existiu ninguém que conseguisse igualar a sua habilidade para retratar a neblina do arco-íris e o brilho nacarado destes pequenos duendes, ninguém que conseguisse reproduzir a celebração de um casamento na corte tão bem quanto ele".
Um comentário compreensível, embora controverso... sobre a verdade de uma proeza aos dezassete, que jamais alguém alcançará. (!) (?...)
  
Nuno Oliveira

                          



"Um sonho de uma noite de Verão", Abertura, op. 21 e Música de cena, op. 61.


✨ Extractos que proponho para audição: (ver também publicações nº 48, 70 e 82)
  • Sandrine Piau, Delphine Collot
  • Orchestre des Champs-Élysées, Choeur da la Chapelle Royale & Collegium Vocale Gent
  • Philippe Herreweghe
  • Harmonia Mundi, HMX 2901502
"o belo": toda a obra (Vozes verdadeiramente de encantar, ensemble instrumental de
                época de classe mundial, direcção distinta do mestre Herreweghe e o ambiente 
                de conto de fadas do Théâtre des Champs-Élysées. Uma maravilha a não
                perder!)com alguns destaques a seguir;
                [1] - tutti, aos 0:00 - 12:23 (Magia no ar... sombra, luz e tudo o resto que existe
                entre as duas!), aos 5:55 - 6:26 (Demasiada emoção para os dezassete!?) [youtube]
                [2] - tutti, aos 0:00 - 4:57 (As conversas num dialecto mágico que todos entendem...
                será esta "a bela" linguagem universal?[youtube]
                [3] - tutti, aos 0:00 - 1:21 (A banda sonora de mistérios que não são deste Mundo...)
                [youtube]
                [4] - vozes solistas, aos 0:00 - 4:09 (Seres perigosos, não se aproximem... Rouxinóis,
                boa noite e durmam bem. Piau e Collot magníficas! "o belo" é assim![youtube]
                [5] - tutti, aos 0:00 - 3:27 (Sentimentos variados e um génio que se mostra mais uma 
                vez!) [youtube]
                [6] - trompas, aos 0:00 - 1:31 e 3:00 - 4:44 (Lullaby and horns? YES!) [youtube] 
                [7] - tutti, aos 0:00 - 4:40 (Uma Ⓡ que dispensa apresentações!) [youtube] 
                [8] - [youtube][9] - [youtube] 
                [10] - tutti, aos 0:00 - 1:42 (Dança com cheirinho a apoteose...[youtube] 
                [11] - tutti, aos 0:00 - 4:44 (... e viveram felizes para sempre!) [youtube]    






  • Pamela Coburn, Elisabeth von Magnus
  • The Chamber Orchestra of Europe, Arnold Schoenberg Chor
  • Nikolaus Harnoncourt
  • Teldec, 9031-74882-2
"o belo": (Muito drama, mas também leveza e articulação por uma orquestra virtuosa
                dirigida por um dos grandes especialistas deste reportório: Harnoncourt. Um
                dos seus melhores registos. A adquirir sem receios.)
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  • Edith Wiens, Christiane Oertel
  • Gewandhausorchester Leipzig, Rundfunkchor Leipzig
  • Kurt Masur
  • Teldec, 2292-46323-2 (versão completa)
"o belo": (Uma interpretação maravilhosa. A elevada qualidade do coro e orquestra
                "de Mendelssohn" e da referência que é o mestre Kurt Masur sobressaem.)
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  • Arleen Augér, Ann Murray
  • Philharmonia Orchestra, Ambrosian Singers
  • Neville Marriner
  • Philips, 411 106-2 PH (versão inglesa)
"o belo": (Um registo admirável da versão inglesa por interpretes esclarecidos,
                dirigidos magistralmente pelo mestre Marriner. Versão a ter em conta.)
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  • Heather Harper, Janet Baker
  • Philharmonia Orchestra & Chorus
  • Otto Klemperer
  • EMI, CDC 7 47230 2 (versão inglesa)
"o belo": (Gravação icónica de 1960. Vozes sublimes e refinamento orquestral num
                registo da versão inglesa a conhecer.)
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  • Lucia Popp, Marjana Lipovsek
  • Bamberger Symphoniker & Chorus 
  • Claus Peter Flor
  • RCA, 07863 57905 2 (Abertura, op. 21), RD87764 (versão completa)
"o belo": (Uma orquestra radiante e intimismo, naquela que é, porventura, a
                gravação da vida de Claus Peter Flor. A não perder.)
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  • Eva Lind, Christine Cairns
  • Wiener Philharmoniker & Jeunesse-Chor
  • André Previn
  • Philips, 420 161-2 PH (versão completa)
"o belo": (A sonoridade cheia que só o Muzikverein oferece numa interpretação
                articulada da mítica orquestra vienense. Uma boa opção.)
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  • Lynne Dawson, Susanne Mentzer
  • Rotterdam Philharmonic Orchestra & Philharmonisch Koor Toonkunst Rotterdam
  • Jeffrey Tate
  • EMI, CDC 7 54393 2 (versão inglesa)
"o belo": (Som ressonante e interpretação espirituosa onde se "respira" magia.
                Basta ouvirmos as trompas no Nocturne [6] para percebermos isso.)
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✰ Outras sugestões:




  • Judith Blegen/Florence Quivar/James Levine/Chicago Symphony Orchestra & Chorus/Deutsche Grammophon, 415 137-2 DH (Extractos da versão inglesa. Som quente e interpretação a condizer. A trompa de Dale Clevenger no Nocturno deixa saudades.), [1] [youtube], [2] [youtube], [4] [youtube], [5] [youtube], [6] [youtube], [7] [youtube], [11] [youtube]




  • Armin Jordan/Orchestre de la Suisse Romande/Erato, 4509-91734-2 (Uma alternativa aos extractos da obra por Jordan e os músicos suiços.), [2] [youtube], [6] [youtube], [7] [youtube]










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Felix Mendelssohn em jovem [Eduard Bendemann, 1833]





Felix Mendelssohn [p/ cunhado e marido de Fanny, Wilhelm Hensel, 1847]







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Uma parte da Madalena e do João no Théâtre des Champs-Élysées, Paris [Abril, 2014].


🧚?✓. 👺?✓. 🧝?✓. ...?✓. ?!✓! + 👸?✓ = ∑💘👪
(PS: escrito numa espécie de élfico dos nossos tempos 😃)



Revolução habitual em Tavira [Agosto, 2014].



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