49. Schubert: sinfonia nº 8, "Incompleta" |
Uma Oitava Sinfonia na vida "Inacabada" de um poeta dos sons chamado Franz Schubert.
Á memória do Francisco, no dia de aniversário do Franz.
...guardo a leveza de um trombone "Schubertiano" e de um sorriso que partiu cedo de mais.
É curioso como sempre que o nome de Franz Schubert me vem à memória, a definição de génio musical surge de forma automática. Refiro-me à minha própria definição de génio musical, é claro (...escuro ou de outra cor qualquer, dependendo da visão estética do melhor que há em nós), uma percepção e um gosto que acredito partilhar com outros seres apreciadores de "o belo" também, em quantidades seguramente insuficientes mas que a qualidade individual de cada um certamente agigantará... por toda a parte onde se encontrem a escutar Schubert, numa rede humanista da Cidade do Cabo a Reiquiavique que o mundo certamente agradecerá.
Franz Schubert nasceria no dia de hoje, há 224 anos, a 31 de Janeiro de 1797 no bairro de Himmelpfortgrund, por detrás da Volksoper de Viena, e viria a falecer a 19 de Novembro de 1828, na casa do seu irmão Ferdinand do nº 6 da Kettenbrückengasse, próximo da Staatsoper da mesma cidade, a sua Viena, sem que se suspeitasse que os poucos trinta e um anos e quatro quilómetros que a sua vida percorreria tivessem o impacto inversamente proporcional ao muito que a sua influencia na música viria a provocar.
Franz iniciaria cedo a aprendizagem da música com o seu pai, o reconhecido professor primário Franz Theodor, e mais tarde com o competente António Salieri, aproveitando, entretanto, as aulas práticas proporcionadas pelas soirées musicais que aconteciam de forma frequente na sala de estar da casa da família Schubert, junto da sua mãe Maria Elisabeth e dos seus irmãos, aos que se lhe juntavam os seus brinquedos favoritos como o eram o violino, a viola e o piano, com os quais começaria já a brincar de forma virtuosística. Mais tarde, já em adulto, alguém daria nome a essas soirées: as "Schubertíades", que mais não eram que as tertúlias mais famosas de Viena, passadas agora, maioritariamente, em casa dos seus amigos.
Apesar de todo o talento que lhe era reconhecido pelo seu círculo de amizades, constituído em grande parte por jovens escritores, poetas e artistas que tão bem conheciam as suas mais de seiscentas (!!!) canções, muitas delas com poemas de mestres como Heine ou Goethe musicados palavra-a-palavra na perfeição, Schubert testemunharia durante toda a vida a negligência das suas obras instrumentais por editores de visão curta que o consideravam "apenas" um compositor de lieder, o que levaria a que muitas das suas sinfonias fossem descobertas e interpretadas pela primeira vez várias décadas após a sua morte, deixando para as posteriores gerações de compositores como Schumann (que desempoeirou a sua sinfonia nº 9 e...), Mendelssohn (...que a estreou), Dvorak ou Brahms, o reconhecimento da influência decisiva da sua música durante o período romântico e nas suas próprias composições, em particular através das suas últimas sinfonias, que ofereceriam uma alternativa de incomparável lirismo às sinfonias de Beethoven, o compositor da moda daquele tempo e naquele lugar. Tivesse Schubert vivido mais e maiores diferenças teriam certamente existido na música daqueles senhores, e, seguramente, na de outros, senhores e senhoras, pois nada do que o precedera ou do que lhe seguiria viria a suplantar a visão genial deste compositor, na qualidade das suas ideias melódicas em íntima harmonia com a palavra. Os incontornáveis ciclos de canções Die schöne Müllerin (A bela Moleira) e Die winterreise (Viagem de Inverno), com as suas melodias inspiradoras e o acompanhamento do piano de extraordinária qualidade, são o exemplo vivo disso mesmo, e poucos haverá que discordem.
Franz teria provavelmente começado a trabalhar na sua sinfonia nº 8, na tonalidade de si menor, no Verão de 1822, no período de ousadia e experimentação que se sucedeu ao sucesso do seu celebrado Quartettsatz de 1820. A 30 de Outubro, copia finalmente os dois primeiros andamentos e as duas primeiras páginas de um Scherzo, cuja existência de um esboço descoberto em 1883 e que sobreviveria até aos nossos dias, coloca dúvidas sobre a história das páginas em falta que se seguiriam a essas duas primeiras, e, eventualmente, das outras que formariam o quarto andamento final. Depois disso pouco mais se sabe com certeza, embora muito se possa especular com a devida imaginação. Quaisquer que fossem as intenções do compositor, se teria desistido da obra ou não, se parte se teria perdido ou não, se pretenderia uma estrutura com os tradicionais quatro andamentos ou não, o que conhecemos é a existência de uma Sinfonia nº 8, "Inacabada", em dois andamentos por si só tão completos que atrever-me-ia a considerá-la "Acabada", mesmo correndo o risco sobre a eventual falta de ambição ou superação auditiva da minha parte, que alguns poderão considerar. Mas a verdade é que, sempre que acabo de a escutar, fico com o sentimento de que não lhe (talvez, melhor: me) falta mesmo nada... que mexer seria diminuir, à semelhança do que me acontece muitas vezes também com Mozart... porventura por algum do destino que ambos partilhariam, música escrita era música perfeita, e, por isso raramente corrigida, para além daquele saborzinho a improviso fresco com uma casca de limão.
Embora Schubert tivesse afirmado que estaria "No caminho para uma grande sinfonia", numa carta escrita em 1824, já um ano antes, em 1823, teria oferecido o manuscrito de presente ao seu amigo Anselm Hüttenbrenner, que o guardaria numa gaveta da sua secretária de trabalho, repleta de outros papeis, o lugar onde viria aparentemente a permanecer por mais de quarenta anos. Se assim foi, então a hipótese de abandono da obra após os dois primeiros andamentos poderá ser plausível, apesar da justificação para tal decisão não apresentar uma resposta óbvia. Embora tivesse sido escrita para uma grande orquestra onde se incluiriam três trombones (de leveza... "Franciscana"), esta seria uma música de caracter tão pessoal e de natureza tão intimista, que dificilmente poderia receber a simpatia do público que frequentava os concertos da época de Beethoven, a figura titânica da Viena de então e o colosso que ensombrava (fazia sombra...) os demais compositores daquele tempo (...que também necessitavam de luz). Deste modo, é razoável considerar que teria sido o entendimento da insistência na criação de uma obra que literalmente não viria a ter a audiência desejada, aquilo que levaria Schubert a colocá-la de parte. Por outro lado, o ano extremamente difícil de 1823, passado seriamente doente durante muitos meses com a sífilis que o diminuía e as dificuldades económicas que os escassos pagamentos dos editores provocavam, mas que os inúmeros amigos tentavam colmatar (é inclusivamente possível que a "oferta" a Hüttenbrenner tenha sido feita para honrar uma dívida), evidentemente que poderia ter reduzido o ânimo de um jovem de vinte seis anos e atacado a confiança necessária para a tentativa de juntar aos dois andamentos já completos, outros dois que se lhes igualassem em qualidade, drama e eloquência.
Outra possibilidade seria a de que a obra teria sido de facto completada, mas que o restante do manuscrito em falta teria sido perdido ou dispersado, sendo inclusive sugerido que o longo e poderoso entreacto do seu bailado Rosamunde, escrito em 1823, também em si menor e para o mesmo ensemble orquestral com a adição dos três trombones, formaria uma parte ou mesmo todo o final original da sinfonia.
1865 seria o ano em que Hüttenbrenner finalmente enviaria o manuscrito ao maestro Johann von Herbeck, concluindo-se, assim, que seriam necessários mais de quarenta anos até à estreia da obra a 17 de Dezembro, na Hofburg de Viena.
Para uma obra cuja história é rodeada de incerteza, o primeiro andamento [I] não se poderia iniciar de forma mais apropriada. Misterioso e enigmático, faria lembrar-nos memórias antigas que pretendemos esquecer, mas que não conseguimos. O som canaliza-nos o pensamento e sempre que julgamos estar no limiar da libertação, uma sombra transita-nos de novo ao cárcere desesperante de uma lembrança indesejada. Mas eis que surge o segundo andamento [II], e com ele a consolação final e a serenidade quase sobrenatural, numa conclusão pouco convencional, mas que se prova adequada face à sensação de liberdade que nos faz suscitar.
O lirismo sensual desta sinfonia, inteiramente novo naquela época, representaria uma alternativa convincente à visão de Beethoven, pelo que a sua descoberta seria considerada o facto marcante da década, e apesar das inúmeras tentativas de completar a estrutura sinfónica, seria na sua forma original que a obra viria a ser interpretada na grande maioria das vezes.
E, assim, esta música permaneceria como é conhecida e apreciada hoje em dia, assimétrica e, no entanto, perfeitamente balanceada de um "Allegro moderato" a um "Andante con moto", gravados à velocidade estratosférica que a pena de Franz atingia para registar aquele infinito de ideias...
Nuno Oliveira
"Sinfonia nº 8, em si menor, D759, "Incompleta""
✨ Extractos que proponho para audição:
- Philharmonia Orchestra
- Giuseppe Sinopoli
- Deutsche Grammophon, 410 862-2 GH
maravilhosamente fresca, refinada e espontânea, do melhor que Sinopoli
nos legou. Luz e Sombra, Mágico e Imperdível!), com alguns destaques,
identificados a seguir;
[I]: tutti, aos 0:00-0:20, 3:47-4:04, 7:41-8:01 e 14:48-... (Sombras misteriosas...);
trombones, aos 9:37-10:42 (Metais nobres "Schubertianos") [youtube]
[II]: tutti, aos 0:00-0:37 e 11:31-... (...e revelações luminosas...); trombones, aos
3:45-4:15 (Sons "Franciscanos" que sobressaem num mar de palavras...) [youtube]
- The Chamber Orchestra of Europe
- Claudio Abbado
- Deutsche Grammophon, 429 364-2 10 GB
- Wiener Philharmoniker
- Georg Solti
- Decca, 414 371-2 DH
medida pela batuta do mestre Solti e a tensão elevada sentida na Sofiensaal.)
- New York Philharmonic
- Bruno Walter
- Sony, SMK 64 487
norte-americanos empenhados em testemunhar a história de um Bruno
Walter ao seu melhor. Precioso.)
[I] [youtube], [II] [youtube]
- Scottish Chamber Orchestra
- Charles Mackerras
- Telarc, CD-80502
de mistérios dirigida pelo mestre Mackerras a não perder também.)
- Kölner Rundfunk-Sinfonie-Orchester
- Günter Wand
- RCA, GD 60099
[I] [youtube], [II] [youtube], [I-II] [iTunes]
- Wiener Philharmoniker
- Riccardo Muti
- EMI, CDC 7 54066 2
a sentir-se nos ossos. Uma escolha de qualidade para ouvir com atenção.)
- James Levine/The Met Orchestra/Deutsche Grammophon, 439 862-2 GH (Uma visão alternativa por Levine e os músicos nova-iorquinos que merece ser escutada também.), [I-II] [Allmusic]
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