domingo, 7 de junho de 2020


31. Shostakovich: sinfonia nº 5 |

A 5ª Sinfonia de Dmitri Shostakovich e o ADN inconfundível aos primeiros compassos... com um twist de ironia Realista Socialista...






Para os dois "Evil Teddy Bears" (o Xavier e o Luís) que me inspiraram a rever esta magnífica obra, e para todos aqueles que procuram compreender a música para lá do primeiro olhar...


(E à memória de uma noite no Coliseu de Lisboa, na companhia desta 5ª, Mariss Jansons e da Orquestra Filarmónica de Berlim [em 04-05-2003])






Estávamos em 1937, e em Leninegrado (hoje São Petersburgo) vivia-se na curiosidade do que o delfim dos compositores russos, o jovem Dmitri Shostakovich (1906-1975), a entrar nos 30, iria apresentar a seguir...
Desde muito cedo que Dmitri demonstrara uma habilidade especial para a música, detectado precocemente pela sua mãe, Sofiya, que viria a ser, simultaneamente, progenitora do menino da classe alta liberal soviética e a sua primeira professora de piano (... que eventualmente também saberia falar francês, visto ser esta uma língua usada fluentemente nos corredores da banca russa, muitas vezes percorridos pelo sogro e correspondente avô paterno da criança, porventura mimada).
Os bons ensinamentos que terá recebido da mãe, levaria Dmitri a ingressar mais tarde, em 1919, com 13 anos de idade, no conservatório da sua cidade natal, Petrogrado (Leninegrado a partir de 1924, e, como já referi, a São Petersburgo dos nossos dias, depois de 1991... porventura um exemplo de surrealismo dentro dum realismo soviético), onde teria como professores Alexander Glasunov e o genro de Rimsky-Korsakov, Maximilian Steinberg, mestres que lhe terão aprimorado todo o talento que lhe reconheceriam, o de compositor e o de pianista, este último seguramente justificado face à sensação que o seu recital de graduação teria causado em 1923, com 17 anos de idade (um menino ainda, portanto).
No entanto, o jovem Dmitri voltar-se-ia para a composição, escrevendo a sua primeira sinfonia em 1925, um sucesso que lhe traria a reputação internacional, ou não tivesse sido estreada por, nada mais nada menos, Bruno Walter, em Berlim, e adoptada logo a seguir por, nada mais nada menos também, Toscanini e Stokowski (... porventura os três maiores maestros daquele tempo, bastante diferentes uns dos outros e, no entanto, convergentes numa coisa: todos gostavam de uma sinfonia escrita recentemente por um rapaz de 19 anos... ora, se isto não é o reconhecimento da excelência, então não sei o que será!), a que se seguiria a abstracção da segunda e terceira sinfonias, e a boa aceitação da sua ópera "Lady Macbeth do Distrito de Minsk", estreada alguns anos depois, em 1934.
Tudo corria bem a Dmitri, até que chegaria o ano de 1936 e a história da desgraça e humilhação de Shostakovich. Após Estaline ter assistido à ópera "Lady Macbeth do Distrito de Minsk", no Teatro Bolshoi de Moscovo, em Janeiro, esta é considerada imoral e imediatamente atacada pelo jornal oficial do Comité Central do Partido Comunista Soviético, Pravda (considerado o órgão sentenciador dos julgamentos populares e das execuções em massa, na União Soviética daquele tempo), levando-o a considerar a trama, "uma obscenidade orquestral sem sentido" (haveria, de facto, alguma mistura de sexo e crime... contudo, numa aparente ménage à deux, com a devida orientação... que finalmente levaria ao assassinato da personagem tirânica da História... operática. Estaline não terá apreciado... vá-se lá saber porquê...), e o cidadão Shostakovich, "um formalista burguês" desenquadrado com o positivismo do "Realismo Socialista" vigente, o que o condenaria à vida de fora-da-lei da sociedade (obrigando os seus amigos a afastarem-se de si), e à de um potencial candidato às purgas Estalinistas, o que lhe terá trazido justificáveis sentimentos de insegurança pessoal (teria medo não só pela sua vida, mas também pelas vidas dos seus familiares, como viria mais tarde a admitir), e mágoas profundas, nesses anos do pré-2ª Guerra Mundial (1939-1945), como um prenúncio de um confronto igualmente terrível e doloroso para uma humanidade que desejava ser livre, onde se incluiria, sem dúvida, o compositor.
Face a esta situação, Dmitri faria duas coisas: retiraria a sua 4ª sinfonia (... porventura
insuficientemente positivista aos olhares realmente socialistas...), que já se encontraria na fase de ensaios para a estreia prevista nesse ano, e iniciaria a composição de uma resposta adequada, que se traduziria na obra-prima que é a sua sinfonia nº 5.
A sinfonia estrearia a 21 de Novembro de 1937, em Leninegrado, pela Orquestra Filarmónica local com a direcção de Yevgeny Mravinsky, e é recebida com um entusiasmo tremendo pelo público e pelo partido, pois teriam escutado (aparentemente, apenas) a música simultaneamente triunfal e optimista por detrás de uma obra, que segundo o compositor consideraria mais tarde (quando Estaline já não se encontrava por perto, é claro!), seria: "...como se alguém estivesse a bater-te com uma vara e dissesse: 'O teu negócio rejubila, o teu negócio rejubila!', e tu levantavas-te, trémulo, e resmungavas: 'O nosso negócio rejubila, o nosso negócio rejubila.'...". Como sugeriria o seu amigo Mstislav Rostropovich, teria sido apenas a ovação de quarenta minutos dessa noite, o que teria salvo Dmitri do destino de tantos outros naquela altura (ao exemplo de um outro amigo, Vsevolod Meyerhold, que, entretanto, havia desaparecido misteriosamente... na neblina do rio Neva), num raro exemplo dum caso, em que foi o povo quem mais ordenou... (e duma tremenda sorte que protegeu a tua audácia, Dmitri!).
Ao sucesso de Leninegrado, seguir-se-iam no ano seguinte representações em Moscovo (Janeiro), Nova Iorque (Abril) e Paris (Junho), com idêntico resultado, pelo que a sinfonia viria a ser gravada em Abril de 1939, por Stokowsky, com a Orquestra de Filadélfia.
Só os mais atentos e curiosos se aperceberão da suave ambiguidade e ironias, escondidas por trás da cortina de sons heroicos desta obra de referência. Rostropovich chegaria a dizer sobre o final da sinfonia: "O fim é uma tragédia irreparável, onde a vítima, esticada pela inquisição destruidora, ainda tenta sorrir na sua dor. Alguém que pense que o final é a glorificação é um idiota.". Já o que Shostakovich talvez quisesse dizer, fosse aquilo que pensou quando utilizou de relance o tema de uma outra obra sua, os "Quatro Romances", com textos de Pushkin, que acompanharia estas palavras: "...e a confusão passa ao lado da minha mente atormentada, enquanto aparecem visões de um dia mais brilhante".
A esperança legitima de um dia que nunca chegou...
  

Nuno Oliveira




"Sinfonia nº 5, em ré menor, op. 47"


Extractos que proponho para audição:
  • Concertgebouw Orchestra
  • Bernard Haitink
  • Decca, 410 017-2 DH
"o belo": toda a obra (A visão de uma nobreza sem igual pelo mestre holandês, numa
                interpretação imaculada da magnífica orquestra de Amesterdão!), com
                alguns destaques, identificados a seguir;
                I: tutti (O ADN de Shostakovich perceptível aos primeiros compassos, e a voz
                celestial da misteriosa... celesta!) [youtube]
                II: tutti (Sonoridades burlescas...) [youtube]
                III: tutti, madeiras (Angústia avassaladora! "o belo" só pode ser assim...!) [youtube]
                IV: tutti (A corrida para o abismo e uma pergunta que fica por responder...) [youtube]





 
  • Royal Philharmonic Orchestra
  • Vladimir Ashkenazy
  • Decca, 421 120-2 DH
"o belo": (Interpretação Real pelo mestre russo e a sua excelente orquestra britânica.)
                I [youtube], II [youtube], III [youtube], IV [youtube]





 
  • Scottish National Orchestra
  • Neeme Jarvi
  • Chandos, CHAN 8650
"o belo": (A visão segura e irrepreensível do mestre letão e dos seus Highlanders.)
                I-IV [youtube]





 
  • Leningrad Philharmonic Orchestra
  • Evgeny Mravinsky
  • Erato, 2292-45752-2 ou Praga/Harmonia Mundi, PR 7250085
"o belo": (Dois registos ao vivo, um em 1984 [Erato] e o outro em 1967 [Praga], pela
                autoridade suprema daqueles que a deram a ouvir ao mundo pela primeira
                vez: Mravinsky e LPO. Imperdível nas colecções dos amantes desta obra.)
                Erato/1984 - I [youtube], II [youtube], III [youtube], IV [youtube]



                 Praga/1967 - I [youtube], II [youtube], III [youtube], IV [youtube]




  

  • New York Philharmonic
  • Leonard Bernstein
  • CBS, CD 35854
"o belo": (Interpretação onde a expressividade, o melancolismo e o brilhantismo
                se evidenciam, num registo ao vivo do concerto de 1979 em Tóquio,
                dirigido pelo maestro norte-americano que Shostakovich mais admirava:
                Leonard Bernstein. Mítico.)
                I-IV [youtube]






   
Outras sugestões:
  • Georg Solti/Wiener Philharmoniker/London, D 106448 (Expressividade e humor de Solti numa interpretação que merece ser ouvida.), I [youtube], II [youtube], III [youtube], IV [youtube]



 
  • Eugene Ormandy/Philadelphia Orchestra/Sony, SBK 53261 (Maravilhosa interpretação de Ormandy, acompanhado pela orquestra que gravou a obra pela primeira vez, sob o comando de Leopold Stokowski.), I [youtube], II [youtube], III [youtube], IV [youtube]



   
  • Mstislav Rostropovich/National Symphony Orchestra of Washington, D.C./Deutsche Grammophon, 410 509-2 GH (O olhar através de um amigo próximo.), I [youtube], II [youtube], III [youtube], IV [youtube]



 
  • Riccardo Muti/Philadelphia Orchestra/EMI, 5 72978 2 (Uma gravação mais recente pela referência que é a Philadelphia Orchestra, comandada pelo maestro italiano Riccardo Muti.), I [youtube], II [youtube], III [youtube], IV [youtube]






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Dmitri Shostakovich [São Petersburgo, 1938]




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Melhor dupla [OSPCM, Casa da Música - Porto, 07-12-2019].



Two "Evil Teddy Bears" [ARMAB, Cineteatro Alba - Alb. Velha, 04-03-2018].



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