88. Verdi: Requiem |
O Requiem de Manzoni, escrito por Verdi (para Rossini) e o nó no estômago que a humanidade, em uníssono, decidiu herdar.
Para quem sentimos ao nosso lado.
Por sugestão de um deles.
A escolha de um Requiem para assinalar um dia de convívio festivo, poderá, à primeira vista, ser pouco consensual. A maioria atribuir-lhe-á o pesar das cerimónias fúnebres, esquecendo que só o entendimento do limite poderá fazer usufruir o presente de forma plena. Há que aproveitar o momento, por isso, caros ouvintes de requiens, aproveitemos.
Como todos os requiens, aquele que Verdi (1813-1901) viria a compor, partiria, também ele, do acontecimento trágico ocorrido no início de Maio de 1873, enquanto Alessandro Manzoni, o maior escritor italiano vivo, caía dos degraus da igreja da sua preferência, sendo levado para casa inconsciente. A fragilidade física dos seus oitenta e nove anos de uma vida de emoções plenamente vividas, não mais o faria regressar, vindo a falecer duas semanas depois, no dia 22 desse mês, para profunda tristeza de Giuseppe Verdi, o maior compositor italiano vivo.
Manzonni seria uma espécie de herói pessoal de Verdi, que o considerava um exemplo de talento, virtude e nobreza desde os dias, na flor da juventude, em que lera I promessi Sposi, a obra-prima de Manzonni publicada em 1827, que captaria o espírito progressista daquela época, utilizando uma linguagem bela, simples e directa, de um italianismo puro que pudesse ser lido e apreciado por todos. A unificação italiana seria o movimento do século e a história contada no I promessi Sposi viria a ser um importante unificador, sendo talvez por isso que Verdi não a considerasse apenas um mero conto, mas como "a consolação para toda a humanidade" escrita por um homem santo, um julgamento que aquele rapaz de catorze anos iria manter durante os seus oitenta e oito anos de uma vida, também ela, de emoções plenamente vividas.
Apesar da esposa de Verdi já ter sido apresentada a Manzoni e este lhe ter oferecido uma fotografia sua, com a dedicatória "Para a glória de Itália", Verdi continuaria a refrear as tentativas de o conhecer, mesmo quando a maioria dos seus compatriotas considerassem as duas figuras como as glórias gêmeas de Itália. A realidade é que ambos prezavam imenso a sua vida privada, pelo que Verdi privaria com Manzoni apenas por uma vez, em 1868, tendo Manzoni supostamente proferido: "Verdi, você é um grande homem.", ao que Verdi prontamente respondeu: "Mas você é um homem santo.".
O funeral de Manzoni seria uma ocasião de luto nacional, na qual Verdi se juntaria de forma sincera, embora não tivesse encontrado a força necessária para participar nas cerimónias, preferindo, por sua vez, visitar a sepultura mais tarde e prestar os seus respeitos sozinho. O seu estado de espírito ficaria registado numa carta ao seu editor Ricordi, no dia seguinte à morte de Manzoni: "Estou profundamente triste com a morte do nosso grande homem, mas não irei a Milão, porque não possuo o coração para assistir ao funeral. Irei em breve visitar o seu túmulo, sozinho e sem ser visto, e talvez (depois de reflectir mais e ter medido as minhas forças) propor alguma coisa para honrar a sua memória.".
Teria sido por essa altura que a possibilidade de compor um requiem teria surgido, e, com ela, o plano que ligaria para sempre a memória de Manzoni à de Rossini, o compositor mais reverenciado por Verdi, que havia falecido em 1868.
O sentimento de perda associado aqueles dois homens estaria na cabeça de Verdi desde a sua carta para a condessa Clarina Maffei, uma amiga comum com Manzoni: "Quando o outro como ele já não existir, o que é que nos sobra?", tendo Verdi sugerido a composição de uma Missa de Requiem para lembrar o primeiro aniversário da morte de Rossini.
Os momentos musicais desta missa deveriam ser escritos de forma independente por doze compositores italianos diferentes, sendo Verdi um deles, e sem qualquer tipo de pagamento, pelo que seria considerado como um tributo à memória do mestre. Apesar do entusiasmo inicial e da ampla divulgação, esta obra seria um fiasco (na realidade só viria a ser estreada a 11 de Setembro de 1988, por Helmuth Rilling, no Festival Europeu de Música de Estugarda), transformando-se o gesto nobre de Verdi numa humilhação pública, salvando-se apenas a contribuição do compositor, o magnífico Libera Me, que mais tarde serviria de ponto de partida, núcleo e conclusão deste seu Requiem para Manzoni.
Com efeito, esta experiência faria com que Verdi aprendesse a não fazer anúncios públicos prematuros e a não confiar na boa vontade dos outros. A 3 de Junho de 1873 escreveria de novo a Ricordi, propondo-lhe escrever um Requiem à memória de Manzoni, que seria apresentado no primeiro aniversário da morte do escritor, em Milão, a sua terra natal. Verdi oferecer-se-ia para dirigir esse concerto, mas pediria a Ricordi para obter o acordo do município de Milão para o pagamento dos músicos, tendo recebido uma resposta entusiástica. O Requiem de Verdi estrearia, assim, no dia 22 de Maio de 1874 na Igreja de S. Mateus, em Milão, sendo depois repetido por três vezes no La Scala com estrondoso sucesso.
Se, de repente, for perguntado a um comum ouvinte se este se lembra do Requiem de Verdi, a resposta mais certa será porventura uma evocação à terrível ferocidade do Dies Irae. Esta secção, presente no início da obra, a meio e no Libera me final, estaria já presente na missa de 1868, e Verdi, um homem conhecedor do teatro como ninguém, estaria consciente do seu poder dramático, suspeitando-se que o compositor teria introduzido uma secção completa deste Dies Irae logo ao início para causar um impacto máximo na sala; seguramente prodigioso na plateia letrada e desconcertante no balcão mais temerário a Deus, como só aquele fff subito em allegro agitato após o tranquilo Christie eleison a desvanecer-se, poderia provocar no sensível estômago humano.
Muito desta obra seria esculpido pelos hábitos operáticos do compositor. Os papeis dos solistas seriam traçados como o poderiam ser numa ópera, não apenas no caracter assumido de cada voz, mas também na apropriação de cada ária e na variedade dos conjuntos. Verdi possuiria o sentimento inato para o canto, usando as vertentes lírica e declamatória para contrastar, uma ressonância rica e a capacidade de nos emocionar pela beleza do timbre (aquele Requiem aeternam final como se o escutássemos às portas do Céu...) e estreita humanidade (aquele Hostias que nos aperta o coração...).
Talvez fosse por isso que este Requiem seria apupado de "operático", por quem se julgasse capaz de emitir uma opinião fundamentada, ou designado de "a sua maior ópera", por quem se sentisse particularmente espirituoso. Na verdade, a obra iria encontrar vários adversários. O célebre maestro Hans von Bülow condená-la-ia num artigo do Allgemeine Zeitung de 21 de Maio de 1874 (antes mesmo de ouvir qualquer nota, portanto...), referindo-se a Verdi como o "Átila da laringe", o Vaticano publicaria uma encíclica a banir este tipo de música para uso eclesiástico, enquanto os notáveis da música britânica alegavam que Verdi não havia escrito música religiosa, mas sim uma ópera com textos sagrados, que, neste caso, se dividiria em sete partes e vinte e uma secções, constituindo-se magnificamente pelo: Requiem e Kyrie (Requiem aeternam [1] e Kyrie Eleison [2]), Sequenza (Dies irae [3], Tuba mirum [4], Mors stupebit [5], Liber scriptus-Dies irae [6], Quid sum miser [7], Rex tremendae [8], Recordare [9], Ingemisco [10], Confutatis-Dies irae [11] e Lacrymosa [12]), Offertorio (Domine Jesu Christe [13] e Hostias [14]), Sanctus [15], Agnus dei [16], Lux aeterna [17] e Libera me (Libera me, Domine [18], Dies irae [19], Requiem aeternam [20] e Libera me, Domine [21]).
No entanto, ninguém poderia prever um melhor futuro para este Requiem. Todas as capitais europeias queriam ouvi-lo, de preferência dirigido pelo próprio compositor. As salas estavam sempre cheias, ou a abarrotar se por acaso se visualizasse Verdi no pódio, e assim continuaria até aos nossos dias, sendo hoje considerado um produto de um génio maduro, que utiliza todo o seu poder criativo e força emocional para, de forma inteligente, respeitar a mensagem e o valor do texto através dos mais fabulosos sons.
Hans von Bülow viria, mais tarde, a pedir-lhe perdão pelo infame acto jornalístico, tendo recebido um eloquente: "Para além disso, quem sabe? Talvez até tenha tido razão dessa vez!". A irreflectida peça de imprensa havia provocado tamanho estrilho, que até um outro génio da música haveria de sentir necessidade de estudar a partitura para si próprio. Johannes Brahms fá-lo-ia com seriedade, tendo chegado a uma singela conclusão: "Bülow errou e fez papel de tolo para todo o sempre. Um trabalho deste tipo só poderia ser escrito por um génio.". Mais uma vez de um lirismo taxativo, o nosso caro Brahms.
Para quem quiser duvidar, é só ouvir e repetir para comprovar.
Eu aposto que não se irão fartar.
Nuno Oliveira
"Messa da Requiem"
✨ Extractos que proponho para audição:
- Luba Orgonasova, Anne Sofie von Otter, Luca Canonici, Alastair Miles
- Orchestre Révolutionnaire et Romantique, Monteverdi Choir
- John Eliot Gardiner
- Philips, 442 142-2 PH2
instrumentos de época próxima da perfeição. Solistas escolhidos a dedo,
sonoridade rica e penetrante. Daqueles para levar para a ilha deserta.)
[1-2]: tutti, aos 0:00-2:15 e 3:43-5:29 ("o belo" mistério da passagem para a outra
margem.) [youtube]
[3]: tutti, aos 0:00-1:17 ("o belo" ícone que é esta ira de Deus e as...) [youtube]
[4-5]: metais e coro, aos 0:00-1:40 (...fanfarras do apocalipse!) [youtube]
[6]: [youtube]
[7]: solistas e fagote, aos 0:00-3:41 ("o belo" lamento na voz, acompanhado pela
suave bondade de uma palheta dupla.) [youtube]
[10]: tenor e oboé, aos 0:00-3:20 (Súplica na voz e na madeira.) [youtube]
[11]: tutti, aos 3:31-4:19 ("o belo" ícone que é esta ira de Deus: meio.) [youtube]
[12]: solistas, aos 0:00-5:43 (Quarteto em oração.) [youtube]
[13-14]: tenor e baixo, aos 4:26-5:56 e 6:21-6:46 ("o belo" registado numas
Hostias que nos alimentam a alma, mas apertam o coração.) [youtube]
[18-21]: soprano e fagotes, aos 1:01-2:22 (Agitação e mistérios, com um
cheirinho ao Hogwarts britânico a pairar no ar); tutti, aos 2:23-4:00 ("o belo"
ícone que é esta ira de Deus: fim.); soprano, aos 4:40-7:51 ("o belo" que se escuta
às portas do céu.); soprano e tutti, aos 11:45-12:08 (Fúria divina e suspensão
estratosférica!) [youtube]
- Angela Gheorghiu, Daniela Barcellona, Roberto Alagna, Julian Konstantinov
- Berliner Philharmoniker, Swedish Radio Chorus, Orfeón Donostiarra
- Claudio Abbado
- EMI, 7243 5 57168 2 8
magnética do mestre Abbado. Solistas de eleição, coro fresco e cristalino. Um
registo fabuloso e simplesmente imperdível.)
- Susan Dunn, Diane Curry, Jerry Hadley, Paul Plishka
- Atlanta Symphony Orchestra & Chorus
- Robert Shaw
- Telarc, CD-80152
dos solistas. O som orquestral poderá ser menos exuberante, mas o coro é uno
e único. Uma magnífica escolha, também a não perder.)
- Michèle Crider, Markella Hatziano, Gabriel Sadé, Robert Lloyd
- London Symphony Orchestra & Chorus
- Richard Hickox
- EMI, CDC 5 56563 2
e solistas de grande qualidade, com timbres um pouco diferentes do habitual,
nomeadamente o do baixo. A sonoridade global é luxuriante, como se fosse
gravada no próprio céu. Estupenda opção.)
- Joan Sutherland, Marilyn Horne, Luciano Pavarotti, Martti Talvela
- Wiener Philharmoniker, Wiener Staatsopernchor
- Georg Solti
- Decca, 411 944-2 DH2
acutilância dos metais, a providenciar Um Dies irae e Tuba mirum épicos, e
para a fragilidade e espiritualidade da voz de Pavarotti num Hostias de ir às
lágrimas. Uma fantástica escolha também.)
- Cheryl Studer, Marjana Lipovsek, José Carreras, Ruggero Raimondi
- Wiener Philharmoniker, Konzertvereinigung Wiener Staatsopernchor
- Claudio Abbado
- Deutsche Grammophon, 435 884-2 GH2
de mãos dadas. Metais redondos, a tuba está nos seus "Dies iraes". Coro e solistas
expressivos, com Studer a nos oferecer um Requiem aeternam realmente divino.
Uma gravação de excelência, e seguramente a favorita de muitos ouvintes.)
- Cheryl Studer, Dolora Zajic, Luciano Pavarotti, Samuel Ramey
- Coro & Orchestra del Teatro Alla Scala, Milano
- Riccardo Muti
- EMI, CDS 7 49390 2
aberta e poderosa, com forte impacto coral. Extraordinário grupo de solistas,
bem visível num Hostias com elevada carga emocional. Uma opção de qualidade
a ter em conta também.)
- Renée Fleming, Olga Borodina, Andrea Bocelli, Ildebrando d'Arcangelo
- Kirov Orchestra & Chorus, Mariinsky Theatre, St. Petersburg
- Valery Gergiev
- Philips, 289 468 079-2 PH2
Provavelmente o mais electrizante Dies irae e Tuba mirum que existe. Fleming
sublime no Libera me, o começo da Lacrymosa com Borodina é outra loiça.
Uma escolha sofisticada e luxuriante.)
- Sharon Sweet/Florence Quivar/Vinson Cole/Simon Estes/Carlo Maria Giulini/Berliner Philharmoniker/Ernst-Senff-Chor/Deutsche Grammophon, 423 674-2 GH2 (Sonoridade calorosa a baixa rotação. Coro poderoso e solistas expressivos, com timbres marcantes. Uma interpretação diferente do habitual para descobrir), [1-2] [youtube], [3] [youtube], [4] [youtube], [7] [youtube], [11] [youtube], [13-14] [youtube], [18-21] [youtube]
- Alessandra Marc/Waltraud Meier/Placido Domingo/Ferruccio Furlanetto/Daniel Barenboim/Chicago Symphony Orchestra & Chorus/Erato, 4509-96357-2 (Interpretação polida e sonoridade calorosa, com contrastes menos vincados. Boa opção.), [1-2] [youtube], [3] [youtube], [4] [youtube], [7] [youtube], [11] [youtube], [13-14] [youtube], [18-21] [youtube]
- Anna Tomowa-Sintow/Agnes Baltsa/José Carreras/José van Dam/Herbert von Karajan/Wiener Philharmoniker/Konzertvereinigung Wiener Staatsopernchor/Chor der Nationaloper Sofia/Deutsche Grammophon, 415 091-2 GH2 (Interpretação operática e algumas idiossincrasias que parecem provocar desequilíbrio nas dinâmicas. O bombo do primeiro Dies irae poderia ser um pouco menos contrastante e o timbre melhor escolhido. Bom naipe de solistas.), [1-2] [youtube], [3] [youtube], [4-5] [youtube], [7] [youtube], [11] [youtube], [13-14] [youtube], [18-21] [youtube]
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Giuseppe Verdi (sentado, ao centro) rodeado de familiares e amigos [Sant'Agata, 1900]
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A preparação para a prova vínica...
Da esq. para a dir.: Tiago, João Nuno, Paulo, João, Nuno, André (em pé), Ivo e Rui [Folhadal, Nelas, 07-09-2024]
... e alguns momentos proporcionados por "Jovens Enólogos do Dão"
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