67. Gershwin: Rhapsody in Blue, Um Americano em Paris |
O valor do movimento na música de George Gershwin: do musical para o jazz, do bailado para o blues... da cozinha para o hall, de Brooklyn para Paris.
À memória de Diniz Camelo e Eugénio Abrantes (desaparecido recentemente), com quem tive o privilégio de fazer música.
Tinham em comum o amor pela banda da sua terra e pelas orquestras de música ligeira que despontavam em Águeda nos anos 50.
Não cheguei a merecer a moeda do Diniz. Mereci ter sido parceiro de estante do Eugénio.
George Gershwin, ou melhor, Jacob Gershwine, um judeu com raízes ucranianas da cidade de Odessa, local de nascimento do seu avô paterno, nasceria em Nova Iorque no ano de 1898 e viria a falecer em 1937 na cidade de Los Angeles. Embora tenha vivido apenas uns escassos trinta e oito anos e dez meses, o seu génio musical, carisma viciante e "joie de vivre" (já lá vamos...) deixar-nos-iam uma herança incontornável de música "clássica" norte-americana e vários tesouros sonoros que permaneceriam no quotidiano do comum apreciador d"o belo" passado quase um século. A sua cunhada Leonore, esposa do seu irmão, ou melhor, "cúmplice no crime", Ira, terá inclusive dito numa "bela ocasião": "Sempre que entrava numa sala ele capturava-a instantânea e completamente, não que ele fosse arrogante, mas porque tinha uma vitalidade infecciosa irresistível e um magnetismo pessoal arrebatador, à semelhança das maiores estrelas de cinema"; um comentário seguramente verosímil, bastando para isso apontar quem se destaca na fotografia de 1937, o ano do seu trágico desaparecimento, deixada propositadamente em baixo para ilustrar este pretexto. O dedo apontará sem dúvida para um sorriso, o de George Gershwin.
O entusiasmo característico e o gosto pela música fariam com que viesse a estudar piano clássico e composição na juventude, ao mesmo tempo que cultivava amizades e aprendia com os grandes músicos de jazz que "pecavam" na vizinhança da sua casa de Brooklyn, pelo que o seu virtuosismo ao piano e facilidade para a melodia certamente que terão crescido por ali.
Talvez a peça jazzística de concerto mais famosa alguma vez escrita seja a sua Rhapsody in Blue [RB], uma obra escrita à pressa em 1924 mas que o levaria depressa do East Side para o Carnegie Hall, numa altura em que não teria uma reputação como compositor sério ou músico de jazz "fora da lei", sendo considerado acima de tudo como um compositor de canções de sucesso, ajudado pelas magníficas letras de Ira, e já com alguns musicais da Broadway bem acolhidos pelo público.
Rhapsody in Blue viria assim a estrear-se no dia 12 de Fevereiro de 1924 no Aeolian Hall de Nova Iorque, num dos lendários concertos da série "An Experiment in Modern Music" levados a cabo pela famosa Orquestra de Paul Whiteman. Whiteman haveria encomendado um concerto para piano a Gershwin três meses antes, pedido que teria sido, entretanto, esquecido pelo compositor, que por aquela altura se encontraria preocupado com a apresentação do seu novo musical Sweet Little Devil. Agora imagine-se a surpresa de Gershwin, quando em Janeiro abre o jornal e descobre a data de estreia de um concerto para piano ainda por escrever. Em pânico, telefona a Whiteman e os dois chegam a um compromisso: a obra deixaria de ser um tradicional concerto para piano e a orquestração para o inusual ensemble do patrão ficaria a cargo do arranjador Ferde Grofé (que viria a reorquestrá-la duas vezes mais, uma para Jazz Band, em 1926, e outra para orquestra sinfónica, em 1942). E assim, Grofé, na altura o principal orquestrador de Whiteman, ocupar-se-ia de transformar a redução para piano de George na partitura para a orquestra inchada de Paul. Na realidade, a constituição exótica do agrupamento viria compreensivelmente a influenciar o colorido sonoro desta obra-prima, considerando que para além dos instrumentos habituais das Jazz Bands daquela época, a orquestra compreenderia também um conjunto de oito violinos e um multifacetado baixista, que ademais de se ocupar do contrabaixo de cordas assumiria com igual responsabilidade a parte da tuba, o que curiosamente me faz lembrar semelhante polivalência e virtuosismo no sr. Diniz, sobejamente conhecido pelo seu contrabaixo de cordas na orquestra e não menos apreciado pelo fulgor do seu bombardino na banda (eu que o diga, que ficava muitas vezes à sua frente durante aquelas aberturas da Tannhäuser e do Guilherme Tell).
Por outro lado, acredita-se também que a encomenda desta obra teria sido uma manobra ousada de Paul Whiteman para trazer o jazz às salas de concerto "de boas famílias", e atendendo ao estrondoso sucesso da Rhapsody in Blue naquela noite, supõem-se que a infame proposta terá mesmo resultado. A noite estaria algo monótona até à entrada do jovem George de vinte e cinco anos, a esvoaçar nas suas asas de grilo até ao piano, e ao começo do icónico solo de clarinete. Os russo-americanos Sergei Rachmaninov e Jascha Heifetz, o austro-americano Fritz Kreisler, o anglo-americano Leopold Stokowski e o polaco-americano Walter Damrosch (há que tirar o chapéu aos norte-americanos pela qualidade dos vistos atribuídos...) presentes na audiência, teriam supostamente ficado de queixo caído, sendo conhecida a citação de um conhecido comentador musical, de que Gershwin: "sugeriu algo novo, algo que até agora ainda não foi dito na música... e talvez com isto tenha tirado o jazz para fora da cozinha". E pelos vistos tirou-o mesmo, ou aquela noite, a primeira de muitas outras, não se tivesse passado realmente no hall de entrada... para a história.
Já Um Americano em Paris [AP] (...et voilá), o poema sinfónico escrito em 1928 para uma orquestra sinfónica reforçada com saxofones, celesta e quatro buzinas de táxi (de preferência parisienses), é na realidade o resultado das várias viagens que George Gershwin faria a Paris a partir de 1923 e não apenas daquela que teria ocorrido entre Março e Julho desse ano. Seria aliás a viagem feita dois anos antes, aquela que lhe viria a proporcionar os elementos de inspiração mais significativos, como seriam as lendárias quatro buzinas de táxi que teria adquirido na loja de peças auto da Avenue du Grand Armée, depois de assistir a uma altercação sonora típica entre dois taxistas em plena Place de la Concorde, assim como a colectânea das obras completas de Debussy que teria comprado na Editora Durand da Place de la Madeleine.
Gershwin viria a classificar esta obra como um "bailado rapsódico", e mesmo com a falta de uma narrativa que servisse de fio condutor em mente, o programa da estreia de 13 de Dezembro de 1928 viria a conter um texto de Deems Taylor que serviria de suporte literário da obra. A história imaginada por Taylor, nessa noite ao som da Orquestra Filarmónica de Nova Iorque dirigida por Walter Damrosch, sobre um turista norte-americano solitário numa aventura à descoberta de Paris, algumas vezes nostálgico com saudades de casa, tornar-se-ia na sinopse perfeita para ilustração da música, um domínio posteriormente desafiado pelo argumento do filme vencedor dos Óscares da Academia protagonizado por Gene Kelly e Leslie Caron, que Vincente Minnelli realizaria em 1951.
Em boa verdade, agora que penso nisto, não me recordo de ter havido maior homenagem a uma peça de música do que a realização do filme Um Americano em Paris inspirado na música Um Americano em Paris.
Se assim for, George sem dúvida que o terá merecido.
Nuno Oliveira
"Rhapsody in Blue"
"Um Americano em Paris"
✨ Extractos que proponho para audição: (Rhapsody in Blue)
- Michael Tilson Thomas
- New World Symphony
- Michael Tilson Thomas
- RCA, 09026-68798-2 (v. original da estreia c/ a Orquestra de Paul Whiteman)
✿"o belo": (Realmente, é difícil imaginar melhor que isto. Um registo incontornável
e de referência absoluta, oferecido por um grupo de músicos de excepção!)
[youtube]: clarinete, aos 0:00-0:47 ("o belo" exemplo de sons que valem uma
"moeda", oferecido por Jerry Simas, o clarinetista da San Francisco Symphony
descendente de avô açoriano!); metais..., aos 4:56-5:08 (...derretidos.); piano,
aos 6:25-7:03 (A outra maneira de dizer.); madeiras, aos 10:57-11:45
(A aragem do Hudson... sentida em Manhattan...); tutti, aos 16:18-17:12
(O final que ansiamos ouvir!).
- Peter Donohoe
- London Sinfonietta
- Simon Rattle
- EMI, 5 57691 2 (orq. de Ferde Grofé p/ Jazz Band)
perder.) [youtube]
- Misha Dichter
- Philharmonia Orchestra
- Neville Marriner
- Philips, 411 123-2 PH (orq. de Ferde Grofé p/ orquestra)
a ter em conta também.) [youtube]
- Jean-Yves Thibaudet
- BBC Symphony Orchestra
- Hugh Wolff
- Decca, 460 503-2 DH (orq. de Ferde Grofé p/ orquestra)
pessoal e intimista a descobrir.) [youtube]
✨ Extractos que proponho para audição: (Um Americano em Paris)
- Cleveland Orchestra
- Riccardo Chailly
- Decca, 417 326-2 DH (também com a v. p/ dois pianos e orq. da Rhapsody in Blue, interpretada p/ Katia e Marielle Labèque; [youtube])
✿"o belo": (Visão sumptuosamente gravada e maravilhosamente interpretada. Repleta
de pormenores que nos fazem sentir Paris... e as buzinas só podem ser as dos
icónicos Citroëns! A não perder!)
[youtube]: tutti e percussão, aos 0:00-1:08 (A azáfama da urbe parisiense com
o buzinar dos bólides nativos.); madeiras, aos 3:15-3:54 (A doce nostalgia e as
saudades de casa sentida por aqueles "arrondissements".); trompete e saxofone
(sim!), aos 7:20-8:10 (Cabaret? Oui!); tuba, aos 15:07-15:25 (Solo!); tutti, aos
16:52-17:36 (O apogeu final!).
- San Francisco Symphony Orchestra
- Seiji Ozawa
- Deutsche Grammophon, 419 625-2 GH
norte-americana, sabiamente dirigida pelo mestre europ... perdão, nipónico. Um
clássico parisiense dos anos 70 a não perder. PS: excelentes complementos por
Bernstein e Russo.) [youtube]
- BBC Philharmonic
- Yan Pascal Tortelier
- Chandos, CHAN 9325
5:48-5:59 são um bom exemplo], fazem deste registo uma boa opção.) [youtube]
- Louis Lortie/Charles Dutoit/Orchestre Symphonique de Montréal/Decca, 425 111-2 DH, [RB - orq. de Ferde Grofé p/ orquestra] [youtube], [AP] [youtube]
- Andrew Litton/Dallas Symphony Orchestra/Delos, DE 3216, [RB - v. original da estreia c/ a Orquestra de Paul Whiteman] [youtube], [AP] [youtube]
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[Produção do filme "Shall We Dance", 1937]
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Diniz Camelo [2º à esq. no contrabaixo, orq. Camisas Verdes, Casal d'Álvaro, Águeda, 1970s...
e destacado no bombardino, Banda Alvarense, Casal d'Álvaro, Águeda, programa Arco Iris da RTP, 1987]
Eugénio Abrantes [1º à dir. no sax alto, orq. Rua d'Além, Águeda, 1950s].
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