sábado, 24 de dezembro de 2022


76. Falla: O amor bruxo, Noites nos jardins de Espanha |

Manuel de Falla, o amor por uma terra encantada e as saudades das flores da Andaluzia.






Aos horizontes que se abriram naquelas férias de Natal passadas em Salamanca.
Para os protagonistas que o tornaram possível.






A procura da inspiração que pudesse de algum modo enriquecer estas páginas, trar-me-iam à memória neste mês de Dezembro uma das melhores experiências que pude usufruir num outro Dezembro já longínquo: o das férias de Natal a fazer música com amigos na bela cidade espanhola de Salamanca.
Estávamos em 1989 e essas recordações do adolescente que descobria pela primeira vez a realidade fora das fronteiras da sua língua, levariam a que algumas das escolhas auditivas desta época natalícia recaíssem na obra do compositor espanhol Manuel de Falla (1876-1946), nomeadamente no seu bailado "O amor bruxo" e nas suas "Noites nos jardins de Espanha", para piano e orquestra, duas obras-primas que aprecio particularmente e a cuja audição costumo retornar algumas vezes durante o ano. 
Manuel de Falla nasceria na cidade portuária de Cádiz, banhada pelo oceano atlântico no sul de Espanha, sendo por isso previsível que a música popular andaluza que o rodeara toda a vida viesse a inspirar e a colorir as suas composições.
No entanto, seria necessário que chegasse aos trinta anos de idade e a uma estadia de sete anos em Paris (de 1907 a 1914), para que Falla viesse a ser reconhecido como um dos maiores compositores espanhóis do seu tempo, aproveitando os contactos e as amizades cimentadas com alguns dos mais admirados músicos franceses que pudessem ser encontrados nas melhores ruas impressionistas de Paris, com destaque para os geniais Debussy e Ravel (fascinados naquela época por tudo o que era espanhol!), cujos conselhos e encorajamento teriam um papel vital na sua vida e na sua obra, tendo o compositor andaluz mostrado a inteligência de absorver as influências da escola francesa moderna, ao mesmo tempo que retinha as características essenciais da música tradicional do seu próprio país.
"O amor bruxo" viria assim a tornar-se na obra mais famosa do compositor, reflectindo o seu amor pela música feroz e perfumada da região onde teria crescido, a sua amada Andaluzia. Esta obra, escrita entre 1914 e 1915, teria a sua origem numa sugestão levada a cabo pela famosa dançarina de flamenco, Pastora Imperio, de que Falla deveria escrever algo especial para o seu conhecido grupo de dança, algo que ela pudesse dançar, mas também cantar. Falla daria ouvidos a Pastora, e, nesse sentido, a obra viria a surgir pela primeira vez ao público sob a forma de um bailado em um acto, com canções interpretadas no dialecto dos ciganos andaluzes e danças inspiradas numa antiga lenda andaluz, tendo a sua estreia sido apresentada pela família Imperio e um agrupamento de câmara no dia 15 de Abril de 1915, em Madrid, mas sem grande sucesso. Este desagradável desfecho levaria Falla a rever a obra, transformando-a numa suite de concerto logo a seguir, tendo esta nova forma sido apresentada pela primeira vez em 1916, agora com elevada aceitação, tornando-se na sua obra mais popular a partir da produção realizada pelo Thèâtre du Trianon Lyrique de Paris com coreografia da famosa dançarina "La Argentina", em 1925, e vindo definitivamente a alcançar o reconhecimento internacional em 1928 com uma nova produção da Opéra-Comique, também em Paris.
O libreto atribuído ao dramaturgo Martínez Sierra, mas que seria afinal da autoria da sua esposa, Maria de la O Lejárraga García, conta-nos a história amorosa protagonizada por Candela, uma bela cigana de Cádiz; o fantasma do seu falecido marido; Carmelo, o pretendente de Candela e Lucía, outra bela cigana, amiga de Candela.
A suite definitiva do bailado seria formada por treze quadros e a trama seria mais ou menos assim: Candela, uma bonita cigana andaluza (Introdução e cena [1]), amaria perdidamente um cigano infiel e ciumento, mas ao mesmo tempo fascinante e sedutor, que viria a falecer precocemente (Na gruta [2]); embora tivesse vivido uma vida de infelicidade, ela lamentava a sua perda, sendo incapaz de o esquecer (Canção do amor doloroso [3]), permitindo que o seu fantasma continuasse a assombrá-la (O Aparecido [4]) e a levá-la a dançar com ele todas as noites (Dança do terror [5]); a primavera regressaria e com ela chegaria a promessa de um novo amor na pessoa de Carmelo (O Círculo Mágico - Romance do Pescador [6]), um jovem galante que a deseja cortejar (À meia-noite - Os sortilégios [7]); mas as assombrações impedem-na de se entregar a este novo amor e sempre que Carmelo se aproxima o espectro retorna e aterroriza Candela, impedindo-a de trocar o "beijo de amor perfeito" exorcizador (Dança ritual do fogo - Para afugentar os maus espíritos [8]); o feitiço do mal precisa ser quebrado (Cena [9]) e Carmelo acredita ter encontrado a solução na conhecida fraqueza por mulheres bonitas do falecido, fraqueza que continuaria a manter mesmo após a sua morte (Canção do fogo fátuo [10]); Carmelo convence Lucía, uma jovem e bela cigana, amiga de Candela, a fingir aceitar os avanços do fantasma e Lúcia aceita por amizade a Candela mas também por curiosidade (a ideia de seduzir um fantasma parece-lhe atraente... e o morto era tão atrevido em vida...); Lucía junta-se a Carmelo quando este volta a cortejar Candela (Pantomima [11]...); o espectro aparece e não resiste à beleza do novo rosto e a todo o potencial de sedução da jovem Lucía (...Pantomima [11]), bajulando-a e implorando-a, com a bela cigana a levá-lo quase ao desespero (Dança do jogo de amor [12]); finalmente amanhece, Candela e Carmelo trocam o tão desejado beijo libertador e ficam agora a salvo para viverem o seu amor (Os sinos do amanhecer [13]). Romântico, exótico, místico e, por isso, simplesmente maravilhoso.

Manuel de Falla começaria a escrever as "Noites nos jardins de Espanha" em 1909 como um conjunto de nocturnos para piano solo a pedido do pianista Ricardo Viñes, mas só viria a finalizá-la depois de retornar a Espanha no despertar da 1ª Guerra Mundial. Por essa altura, estes nocturnos seriam já a obra para piano e orquestra que hoje conhecemos, forma com que se estrearia em Madrid, em 1916, pelo pianista José Cubilès e o maestro Fernandez Arbos.
Embora o piano desempenhe um papel destacado nesta obra, com as suas intervenções solísticas brilhantes, acredita-se que a criação de um concerto para piano tradicional não estaria nos desejos do compositor. Com efeito, Falla pretenderia acima de tudo que a sonoridade cristalina do piano fizesse parte integrante da variada textura instrumental, numa obra que faria transparecer de forma clara (pleonasmo que lá saiu sem premeditação prévia... e lá bisei outra vez... bom, o melhor é mesmo parar por aqui) a influência do movimento impressionista da época, mais concretamente a do seu amigo Debussy, restando poucas dúvidas sobre a ligação entre esta obra e os famosos "Nocturnos para orquestra" do celebrado compositor francês, ao que se acrescentariam também alguns dos ensinamentos aprendidos com as orquestrações de Rimsky-Korsakov, incrivelmente tão próximas das melodias andaluzes e do Cante Jondo originário dos antigos muçulmanos da península ibérica que se murmuram nesta partitura.
Estas características fariam com que estas "Noites nos jardins de Espanha" fossem muitas vezes denominadas como um grupo de três "impressões sinfónicas combinadas com um poema rapsódico", uma designação que apesar de longa, e comercialmente pouco recomendável, se pensarmos bem, até que poderá fazer algum sentido. Já para os que pretenderem conhecer as intenções do compositor de forma textual, a sugestão é que escutemos as palavras que o próprio diria sobre esta sua obra-prima impressionista: "O propósito para o qual esta obra foi escrita é nenhum outro que a invocação de lugares, sensações e sentimentos. Os temas utilizados são baseados nos ritmos, modos, cadências e figuras ornamentais que distinguem a música popular da Andaluzia. A música não tem a pretensão de ser descritiva (é meramente expressiva), e existiu algo mais do que festivais e danças a me inspirarem para estas "invocações sonoras", porque a melancolia e o mistério também terão feito a sua parte". Temos de concordar com o Manuel de que umas "invocações sonoras" soam de facto melhor...
...Por isso, à primeira "invocação", "No Generalif" [1], repleta de exotismo e com um dos clímaces mais exuberantes de que guardo memória (a versão de Geoffrey Simon, em baixo, é de cortar a respiração), ser-lhe-ia atribuída o nome do jardim da residência de verão dos Reis Mouros que haviam governado Granada nos séculos XIII e XIV a partir do Palácio de Alhambra próximo dali; já na segunda, "Dança distante" [2], a sua natureza sedutora e melancólica far-nos-ia recordar por breves momentos a sensualidade feroz daquela jovem cigana de Cádiz chamada Lucía; até que finalmente chegaria a terceira, "Nos jardins da Serra de Córdoba" [3], e com ela a lembrança dos sons da azáfama de um acampamento cigano nas encostas da montanha, que mais tarde se desvaneceriam em saudade (...emprestada pelo outro lado da fronteira, não esqueçamos).
Manuel de Falla viveria feliz durante vários anos na sua casa florida de Granada, na Andaluzia, mas com a situação política na Europa e a Guerra Civil Espanhola resolveria partir para a Argentina em 1939, país onde viria a falecer a 14 de novembro de 1946, em Alta Gracia, a cidade que teria escolhido para viver por lhe fazer lembrar a sua Granada, e, curiosamente, também ela uma cidade pertencente a uma província de Córdoba, que na sua terra natal lembrava Andaluzia, aquele nome que o seu coração invocava. 


   
Nuno Oliveira




"O amor bruxo"
"Noites nos jardins de Espanha"


✨ Extractos que proponho para audição:
  • Huguette Tourangeau
  • Orchestre Symphonique de Montréal
  • Charles Dutoit
  • Decca, 410 008-2 DH (O amor bruxo)
"o belo": toda a obra (Uma interpretação excitante levada a cabo pelo mestre Dutoit
                onde se destacam a sonoridade exuberante da orquestra canadiana e os timbres
                apelativos dos instrumentos solistas, com relevo para o trompete e o corne inglês.
                A excelente voz de Tourangeau é perfeita para dar vida à protagonista Candelas.
                O registo de referência desta obra. Imperdível desde 1981!), com alguns
                destaques, identificados a seguir;
                [1] tutti, trompete ("o belo" tema no brilhante trompete!) [youtube]
                [2] oboé, aos 1:40-2:10 (Um vislumbre de luz a partir das profundezas.) [youtube]
                [3] mezzo soprano (O som de um coração partido.) [youtube]
                [4] tutti (Um cheirinho ao Carnaval zoológico de Camille, não?) [youtube]
                [5] tutti (E eis que chega "o belo" ritmo de "Sabbat" à noite!) [youtube]
                [6] tutti (Terá "o belo" Aaron pescado nestas águas primaveris?) [youtube]
                [7] tutti (Parece simples, mas é feitiço...) [youtube]
                [8] corne inglês, tutti (A afugentar os maus espíritos a partir d"o belo" corne 
                inglês!) [youtube]
                [9] corne inglês, flauta (Cena... na natureza.) [youtube]
                [10] mezzo soprano (O mítico fogo fátuo na voz de Tourangeau!) [youtube]
                [11] tutti, trompete, violoncelo, violino, trompa ("o belo" da capo e muito mais
                num fim de tarde andaluz icónico!) [youtube]
                [12] mezzo soprano (Hora do conto e de acertar contas...[youtube]
                [13] tutti, sinos, mezzo soprano (... e final a rebate.) [youtube]






  • Alicia de Larrocha
  • London Philharmonic Orchestra
  • Rafael Frühbeck de Burgos
  • Decca, 410 289-2 DH (Noites nos jardins de Espanha)
"o belo": (Performance replecta de fantasia e lirismo, demonstrando a afinidade de
                Larrocha e Frühbeck de Burgos para com esta música. Detalhes poéticos subtis a
                contrastar com os clímaces de arrepiar que nos transportam para outros mundos.
                O registo de referência desta obra. Imperdível desde 1983!), com alguns
                destaques, identificados a seguir;
                [1] piano, aos 0:00-... (Exotismo a rodos!); tutti, metais aos 8:25-9:24 ("o belo"
                exemplo de um clímax orquestral de outro mundo!) [youtube]
                [2] piano, tutti (Ecos de danças sensuais...) [youtube]
                [3] piano, tutti (...com a aragem da Serra de Córdoba a bater em cheio nas faces
                deste ouvinte!) [youtube]






  • Sarah Walker, Margaret Fingerhut
  • London Symphony Orchestra
  • Geoffrey Simon
  • Chandos, CHAN 10232X (O amor bruxo, Noites nos jardins de Espanha)
"o belo": (Uma magnífica opção para os que pretendem as duas obras num só disco. Som
                luxuriante, voz envolvente e simultaneamente poderosa de Walker e o brilhantismo
                pianístico de Fingerhut, numa interpretação dirigida com mestria por Geoffrey
                Simon. Gravação equilibrada entre a delicadeza e os tuttis poderosos, destacando-se
                um de cortar a respiração (!), que podemos encontrar aos 8:28-9:25 do primeiro
                andamento das "Noites nos jardins de Espanha". Uma escolha de eleição!)
                OAB: [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube], [4] [youtube], [5] [youtube],
                [6] [youtube], [7] [youtube], [8] [youtube], [9] [youtube], [10] [youtube],
                [11] [youtube], [12] [youtube], [13] [youtube]
                NNJE: [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]






  • Jean-François Heisser
  • Orchestre de Chambre de Lausanne
  • Jesus Lopez-Cobos
  • Erato, 0630-14775-2 (Noites nos jardins de Espanha)
"o belo": (A sonoridade viva e espontânea numa interpretação idiomática de excelência.
                Pianismo colorido de Heisser e direcção soberba do nativo Lopes-Cobos. Uma
                magnífica escolha.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]






  • Martha Argerich
  • Orchestre de Paris
  • Daniel Barenboim
  • Erato, ER2 45266 (Noites nos jardins de Espanha)
"o belo": (A espontaneidade e a bravura que só a tensão libertada num registo ao vivo
                 pode oferecer. O carisma de Argerich destaca-se e a direcção envolvente do
                mestre Barenboim também. Um registo de qualidade para descobrir.)
                [1] [youtube], [2-3] [youtube]





  
   
✰ Outras sugestões:
  • Jennifer Larmore/Hugh Wolff/The Saint Paul Chamber Orchestra/Teldec, 4509-90852-2 (A voz poderosa de Larmore, o lirismo orquestral e a direcção competente de Wolff numa opção a ter em conta também.) OAB: [1-13] [allmusic], [3] [youtube]




  • Artur Rubinstein/Eugene Ormandy/The Philadelphia Orchestra/RCA, 09026 61863 2 (O registo icónico de Rubinstein gravado em 1969. Destaque para o colorido e brilhantismo do genial pianista, sobrepondo-se a uma aproximação mais mística da obra, e à direcção excitante de Ormandy. Uma boa escolha.) [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube]






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A felicidade chamada Granada

Manuel de Falla no jardim da sua casa de Granada [c1928]




Os amigos Claude Debussy e Maurice Ravel

Fotografia de Debussy com dedicatória a Manuel de Falla




Fotografia de Ravel com dedicatória a Manuel de Falla





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As férias em Salamanca num Natal longínquo

Os protagonistas. Em cima: Nuno, Francisco, Tiago, Renato e Hugo. Em baixo: Luís, Arnaldo Nogueira (Presidente Dir. Banda Alvarense) ,
Manolo (Comerciante de Salamanca) e Jacinto  [Espanha, Salamanca, Plaza Mayor, Dezembro/1989]


Princípio,...




...meio...





....e fim.





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terça-feira, 1 de novembro de 2022


75. Beethoven: sinfonia nº 5 |

A "Sinfonia nº 5" de Ludwig van Beethoven e a transição espiritual da humanidade ao encontro de um "Destino" Romântico de proporções cósmicas.






Em homenagem às 5 Bandas Filarmónicas que constituem a União de Bandas de Águeda; durante décadas sinónimas de:
Bravura sonora, Brilhantismo artístico, Beleza interpretativa, Bondade colectiva e Brio individual.
Tudo isso merece um grande Bravo, tudo isso merece uma enorme 5ª do gigante Beethoven.






"Tcham, tcham, tcham, tchaaaaam!".
Seria assim que naquele ano de 1808 Ludwig van Beethoven (1770 - 1827) daria a conhecer ao mundo a sua "Sinfonia nº 5, em dó menor", obra maior que teria começado a esboçar a partir de 1804 e que o imortalizaria na memória dos homens, tornando-se a sua imagem de marca mais popular, reconhecida em qualquer recanto do mundo (à partida...).
Na realidade, este famoso tema de quatro notas ferozes que dominaria o primeiro andamento e apareceria nos restantes três, seria aquele que viria a provocar pela primeira vez na obra do compositor uma sensação de coerência num desenvolvimento crescente até se alcançar o resultado final, fosse este conseguido através do contexto puramente musical, com a produção de diversidade melódica a partir daquela unidade temática simples, ou ligando-a eventualmente a alguma ideia de carácter mais poético ou mesmo filosófico. Por outras palavras, a defesa da razão que daria a tal sensação de unidade aos quatro andamentos e a consequente fama a esta sinfonia, dividir-se-ia entre os que se apoiariam nas relações internas da própria música e os que, por outro lado, entenderiam a existência de um programa poético por trás de tudo isto (na minha infância aprendi que a tabuada cantada tinha outra graça, pelo que provavelmente todos terão um pouco de razão se apostarmos num pensamento equilibrado).
Em todo o caso, podemos sempre contar com a declaração que o próprio compositor faria acerca do início violento desta sua quinta sinfonia: "E é assim que o destino bate à porta!". Ora, se dúvidas houvessem as mesmas tender-se-iam a dissipar com esta referência categórica, pelo que na mente do público esta obra viria a estar tendencialmente ligada a ideias não musicais, como seriam o conflito, o triunfo, a liberdade e a fraternidade, todas elas noções associadas a uma Revolução Francesa ocorrida à já quase duas décadas (admite-se que o nosso Ludwig van estaria à muito tempo obcecado com ideias de revolução e igualitarismo, existindo inclusive uma peça coral do estimado Cherubini escrita com um texto alusivo à Revolução Francesa, que anteciparia vivamente o famoso motivo que viria a servir de base a esta sinfonia). Para além disso, Anton Schindler, o secretário pessoal do compositor e o seu primeiro biógrafo, viria ainda a introduzir a ideia de uma "chave do destino", e, com base nisso, a apelidar esta obra de "Sinfonia do destino", definindo, a partir daí, as linhas de orientação para a sua interpretação romântica, com o drama a ocupar o lugar central no palco, que muitos ilustrariam como a chegada da luz da manhã depois de uma noite de trevas ou como a batalha até à vitória final.
Beethoven começaria então a escrever a sua quinta sinfonia logo após a conclusão da terceira ("Heroica"). Contudo, diversas razões, incluindo a necessidade de ganhar a vida com outras composições (recordo que o mestre seria um dos primeiros compositores independentes do seu tempo, sem um empregador ou uma remuneração regular), fariam com que Beethoven viesse a interromper o seu trabalho por várias ocasiões ("pausa" entre 1804 e 1806 para escrever o concerto para piano nº 4, a sinfonia nº 4 e o concerto para violino; "attacca" de novo em 1807 ao mesmo tempo que escreve a sua sinfonia nº 6, "Pastorale", concluída poucos meses depois desta quinta), sendo que a carta que o compositor enviaria ao Conde Franz von Oppersdorf, personalidade que lhe teria encomendado esta sinfonia, viria a confirmar que a mesma não teria sido concluída até à primavera de 1808, provando, deste modo, o extenso período de gestação da obra, com praticamente cinco anos passados desde o seu esboço inicial.
Por outro lado, apesar da obra já ter sido paga, o Conde viria ainda a receber uma mensagem do compositor em Novembro desse ano: "Querido Conde! Sei que vai ficar com pouca consideração por mim, mas fui obrigado a vender a sinfonia que tinha escrito para si... a outro". Este "nobre" desagrado não teria, porém, valido a pena, visto que as dificuldades económicas de Beethoven não ficariam resolvidas com o histórico concerto de beneficência da Academia Musical de Viena, realizado a 22 de Dezembro de 1808 no Theater an der Wien, onde para além da estreia desta sua quinta sinfonia, seriam também apresentados o seu concerto para piano nº 4, a cena e ária "Ah! Perfido", excertos da missa em dó maior, e as estreias da sinfonia nº 6, "Pastorale" e da Fantasia Coral! Com efeito, o concerto não teria tido a aceitação que o compositor desejaria, tendo um jornal da época inclusive escrito que: "Existe apenas uma palavra para descrever este concerto: insatisfatório".
Para além disso, embora esta sinfonia tivesse sido apresentada com sucesso várias vezes no ano seguinte, os inúmeros erros cometidos viriam a impossibilitar a sua publicação (as cópias dos editores e as correcções do compositor teriam sido perdidas), pelo que a mesma só viria a ser publicada em 1826, no ano anterior ao da morte do compositor, e numa versão que, segundo reza a história, não o satisfaria particularmente. Beethoven viria ainda a exigir urgentemente aos editores a correcção dos erros existentes, mas seria tarde de mais, pelo que, infelizmente, nenhuma outra versão seria publicada no seu derradeiro ano de vida, nem tão pouco nos 150 anos seguintes.
Chegados aos nossos dias, podemos constatar algumas diferenças entre as várias versões disponíveis, umas baseadas na antiga publicação e outras representadas por estudos mais recentes sobre as intenções originais do compositor, elaboradas após análises cuidadas dos seus "Cadernos de Conversação" e da correspondência dos amigos (existe, aliás, uma carta famosa escrita por Franz Oliva a 10 de Abril de 1820, que diz assim: "Eu esqueci-me de lhe dizer que ontem alguns diletantes abreviaram a sua sinfonia; no terceiro andamento foi omitida quase metade da música."), diferenças essas que poderão ser percebidas de forma notória no terceiro andamento, com a introdução da repetição do primeiro tema (o registo de Kurt Masur é um bom exemplo), dando a este Allegro a estrutura de cinco partes habitual na obra de Beethoven desse período artístico.
Novidades à parte, no fundo, apesar desta obra icónica começar com um momento de inspiração "Cherubiniana", tudo o que se desenvolveria a seguir devemo-lo exclusivamente ao génio de Beethoven, pela criação das linhas melódicas a partir das quatro notas ferozes iniciais no Allegro con brio [I] e a sua utilização sob forma de variação subtil no Andante con moto [II], pelo fugato vigoroso no Allegro [III] que parodia o estilo orquestral do séc. XVIII com a atribuição da mesma linha melódica a violoncelos e contrabaixos (como a comédia de costumes que se adorava representar naquela época), pela passagem ininterrupta ao heroico Allegro [IV] e pela reaparição de sonoridades antigas vindas do além (o fantasma do tema...) antes da recapitulação final, vencidas pela força da luz que irradia dos triunfantes, dentre estes, os cinco novos que só chegariam agora: o flautim, o contrafagote e os três trombones, que de forma brilhante comunicarão pela primeira vez na literatura sinfónica a vitória final sobre a tragédia. Teria sido a primeira, mas seguramente que não seria a última...
...Desde 1843 que entre nós o Código Morse representa a letra "V", como Vitória, pelas sílabas "dit-dit-dit-dah". Á falta de melhor explicação, poder-se-á supor que o espírito artístico do romantismo (o fantasma do tema...) terá decerto baixado no pintor Samuel Morse.
...Desde 1977 que a sonda espacial Voyager 2 viaja para os lugares mais longínquos do universo. Leva consigo um disco de cobre com a gravação desta música para que outros possam escutar um exemplo de humanidade (...à chegada). Uma escolha acertada... seja ela pela crença na Criação da diversidade a partir da Unidade, seja ela pela vontade poética de transformar as trevas em Luz e a derrota em Vitória.    

   
Nuno Oliveira




"Sinfonia nº 5, em dó menor, op. 67"


✨ Extractos que proponho para audição: (nota: ver também publicações nº 3, 45, 62 e 81)
  • New York Philharmonic
  • Kurt Masur
  • Teldec, T2-77313
"o belo": toda a obra (Uma interpretação verdadeiramente poderosa e electrizante, com
                destaque para a sonoridade exuberante da orquestra da Big Apple e o talento
                do mestre Masur. "Tons" suaves nas madeiras, quentes nas cordas e acutilantes
                nos metais, desde o icónico "Tcham, tcham, tcham, tchaaaaam!" inicial até ao
                final de cortar a respiração. Um registo de eleição.), com alguns destaques,
                identificados a seguir;
                [I]: tutti, aos 0:00-2:13 ("o belo" e mais grandioso tema da história da música
                ocidental!); trompas, aos 2:55-2:59 ("o belo" ainda mais acutilante!); oboé,
                aos 4:36-4:51 (Uma pausa para "o belo" lirismo...); tutti, aos 6:28-7:27 (... e o
                esperado drama final ao espírito romântico!) [youtube]
                [II]: cordas e madeiras, aos 0:00-0:55 (Cordas quentes e madeiras suaves.),
                4:02-5:03 (Cordas quentes...) e 5:15-5:57 (...e madeiras suaves.); tutti, aos
                8:40-9:10 (Pronúncio do "fim"...) [youtube]
                [III]: trompa, aos 0:21-0:27 e 3:40-3:45 (Dois alarmes a despertar...[youtube]
                [IV]: tutti (...para dez minutos e trinta e cinco segundos d"o belo" júbilo!) [youtube]






  • Wiener Philharmoniker
  • Simon Rattle
  • EMI, 7243 5 57566 2 6
"o belo": (Uma actuação ao vivo no Musikverein de Viena onde se sentem a frescura e
                expressividade características do maestro inglês. Os instrumentos são modernos,
                mas a inspiração retorna à época da estreia, com contrastes bem marcados,
                vibratos curtos nas cordas e um final de festa e liberdade. Uma interpretação
                a não perder.)
                [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]






  • Chamber Orchestra of Europe
  • Nikolaus Harnoncourt
  • Teldec, 0630-10014-2
"o belo": (A exigência do mestre é grande, mas a resposta do grupo é de que tudo
                parece fácil. Quem sabe, sabe, e Harnoncourt e os músicos europeus
                sabem-no como ninguém. Luminoso e excitante. Simplesmente fabuloso.)
                [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]






  • Orchestre Révolutionnaire et Romantique
  • John Eliot Gardiner
  • Deutsche Grammophon, 445 944-2 AH
"o belo": (Uma interpretação fulgurante, com a elevada rotação e o virtuosismo
                orquestral "comme il faut". Final arrebatador em instrumentos de época
                e sentimentos que reflectem a urgência do nosso tempo. Uma experiência
                estimulante a não perder.)
                [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]






  • Los Angeles Philharmonic Orchestra
  • Carlo Maria Giulini
  • Deutsche Grammophon, 410 028-2 GH
"o belo": (O registo famoso do maestro italiano ao comando da gloriosa orquestra
                norte americana no início dos anos 80. Interpretação arrebatadora e com
                um final majestoso. Uma escolha ímpar e a não perder também.)
                [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]






  • Sinfonieorchester des Norddeutschen Rundfunks Hamburg
  • Günter Wand
  • RCA, RD 60092
"o belo": (Visão clara e directa, sonoridades incisivas e um final excitante sabiamente
                conduzido pelo mestre Günter Wand. Uma interpretação com carácter e uma
                excelente escolha também.)
                [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]






  • Berliner Philharmoniker
  • Herbert von Karajan
  • Deutsche Grammophon, 413 932-2 GH
"o belo": (As sonoridades sumptuosas numa interpretação espontânea, como só o mito
                von Karajan/Berliner Philharmoniker podem oferecer. Uma magnífica opção.)
                [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]






  • The Philadelphia Orchestra
  • Riccardo Muti
  • EMI, CDC 7 47447 2
"o belo": (Como nos ensina a história: um maestro italiano e uma orquestra americana
                só podia dar numa 5ª explosiva. Uma boa escolha, e a ter em conta também.)
                [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]





  
   
✰ Outras sugestões:
  • Leonard Bernstein/Wiener Philharmoniker/Deutsche Grammophon, 431 049-2 GBE (Interpretação apelativa entre a excitação e a introspecção, com um final emocionante registado ao vivo no Muzikverein de Viena no final dos anos 70.), [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]




  • Kurt Masur/Gewandhausorchester Leipzig/Philips, 426 782-2 PH (Sonoridade redonda e interpretação controlada. Uma boa opção para os que preferem a majestosidade à rebeldia.) [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]




  • Carlo Maria Giulini/La Scala Philharmonic Orchestra/Sony, 82876782152 (O bater pausado do coração esclarecido do mestre Giulini, a caminho dos 80 anos de idade. Uma visão para descobrir.) [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]





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Ludwig van Beethoven [Viena, 1807]




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As 5 bandas filarmónicas da União de Bandas de Águeda (UBA)

34º Festival da UBA [Fermentelos, Águeda, 02-10-2022]


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Banda Alvarense (Casal d'Álvaro, n. 1905)

34º Festival da UBA [Fermentelos, Águeda, 02-10-2022]


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Banda Castanheirense (Castanheira do Vouga, n. 1896)

34º Festival da UBA [Fermentelos, Águeda, 02-10-2022]


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Banda Marcial (Fermentelos, n. 1868)

34º Festival da UBA [Fermentelos, Águeda, 02-10-2022]


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Banda Nova (Fermentelos, n. 1921)

34º Festival da UBA [Fermentelos, Águeda, 02-10-2022]


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Orquestra Filarmónica 12 de Abril (Travassô, n. 1925)

34º Festival da UBA [Fermentelos, Águeda, 02-10-2022]


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34º Festival da UBA [Fermentelos, Águeda, 02-10-2022]



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