quinta-feira, 26 de agosto de 2021


59. Stravinsky: A Sagração da Primavera |

"A Sagração da Primavera" como resposta física de Igor Stravinsky a um acumular de energia latente... para não lhe chamarmos outra coisa, de caracter mais íntimo. 






Para a rapaziada da turma de 1993 do DEM-FCTUC da Universidade de Coimbra.
...sagrámos algumas Primaveras juntos.

Ouvi esta obra algumas vezes ao vivo, e, no entanto, o momento que mais vezes recordo, pela sua ínfima raridade ou, quem sabe, estreia, é o de uma A Sagração da Primavera... em Viseu, com a Orquestra Filarmónica Portuguesa e o maestro Osvaldo Ferreira.   
Confirmo que existiu algum choque nas bancadas do pavilhão multiusos... [14-04-2018]






O dia 29 de Maio de 1913 ficaria marcado pelo maior escândalo alguma vez ocorrido na apresentação de uma peça musical: nesse dia estreava em Paris no Théâtre des Champs-Elysées, o bailado A Sagração da Primavera pelos lendários Ballets Russes de Sergei Diaghilev, com música de Igor Stravinsky (1882-1971) e coreografia de Vaslav Nijinsky. Nessa noite, e apesar do fraco resultado da coreografia complexa de Nijinsky, o maior visado da fúria dos espectadores viria a ser Stravinsky, que no centro de todas as vaias, gritos e assobios, chegaria mesmo a temer pela própria segurança. A plateia encontrava-se em choque após assistir a um bailado mediocremente dançado (Nijinsky não teria chegado a apanhar o tempo... a tempo) ao som de uma música composta por ritmos bárbaros e inaudível para a maioria dos ouvintes, que compreenderiam seguramente alguns executantes de fagote, porventura desagradados com o "inaudível" começo da peça... (nada mais nada menos do que um belíssimo solo do seu instrumento, numa ária de dificuldade extrema cantada nos limites do registo agudo). Com efeito, a história desta estreia tornar-se-ia lendária no folclore da música do séc. XX e Stravinsky deixaria de ser o "mero" compositor dos Ballets Russes (A Sagração da Primavera seria o seu terceiro bailado, depois de O Pássaro de Fogo e de Petrushka) para se transformar na figura mitológica simbolizadora de tudo o que era novo e estranho, ou por outras palavras, "moderno". Para termos uma ideia do nível do fiasco de 1913, acrescentam-se ainda os relatos centrados na própria mãe de Igor, Anna, que depois de assistir à apresentação da obra pela primeira vez em 1938 (25 anos depois!), ainda lhe teria sido escutado um murmúrio: "Eu não acho que seja o meu tipo de música", seguido da resposta mais sonora que daria sobre se iria expressar publicamente aquele murmúrio: "Não, porque eu não sei assobiar". Um escândalo... (opiniões artísticas à parte, esta relação mãe-filho teria sido seguramente interessante de analisar por algum especialista na matéria... o vienense Sigmund Freud, por exemplo, estaria a dois dias de Paris pelo Expresso do Oriente).
Todavia, os escândalos tendem a tornar-se menos infames com o passar do tempo, e passado um ano da estreia de Paris a música já seria escutada com a devida atenção e o merecido entusiasmo, em apresentações levadas a cabo pelos maestros mais famosos da época (Koussevitsky, Monteux, ...), num interessante exemplo que justifica a sobrevivência de ditos populares do tipo: "primeiro estranha-se, depois entranha-se" (a música e não só, com a dança a chegar no tempo certo passados alguns anos... e coreógrafos) ou "o ódio é um sentimento muito próximo do amor" (afortunadamente ou o seu contrário, consoante o caso ou a casa...).
Algo do género se passaria também com alguns detalhes da partitura original de 1913, retocada para a primeira edição de 1921 e revista em 1947, sem que deixasse, contudo, de proporcionar um extraordinário desafio àqueles que se arriscariam a colocá-la na estante e de ser venerada por personalidades como Olivier Messiaen ou Nadia Boulanger, que a utilizavam "religiosamente" no ensino de futuros músicos, deixando transparecer a influência incalculável que teria tido no desenvolvimento do Modernismo na música do séc. XX, mas que poderemos ensaiar quantificar se atendermos aos 330.000£ da venda do esboço da obra, ocorrida em Londres em 1982, o valor mais alto alguma vez pago por um manuscrito de música. Um escândalo... (neste caso a pecar pela insuficiência, considero eu).
Embora Stravinsky tenha declarado que ele próprio teria sido "o receptáculo por onde a Sagração passou", o que nos faria supor a ausência de algum tipo de inspiração para além das palpitações, ou melhor, das marcações metronómicas, que um coração caseiro de trinta e um anos faria imaginar, é bem possível que também tivesse bebido alguma inspiração nas melodias do folclore russo. Por outro lado, é de igual modo provável a influencia de um poema de Sergey Gorodetsky, que descreveria antigos sacrifícios russos ao Deus da Primavera, e do pintor e etnógrafo Nikolay Roerich, considerado uma autoridade da cultura pagã russa, que seria o autor do guarda-roupa e dos cenários originais do bailado e com quem Stravinsky teria partilhado as suas ideias sobre um sonho que tivera em 1910: "Eu vi um ritual pagão solene: velhos sábios sentados em círculo, observavam uma jovem rapariga dançar até à morte. Eles sacrificavam-na em tributo ao Deus da Primavera". Um escândalo... (não ter apanhado o Expresso do Oriente nessa noite...).
Tudo isto conduziria à recriação artística do ambiente dos rituais pré-cristãos das antigas tribos eslavas, numa evocação do retorno da Primavera e da necessidade do homem propiciar os favores da terra através do sacrifício humano. O desenrolar dos acontecimentos através da narrativa seria posto de lado, ficando um conjunto de rituais pagãos encarregue da condução duma acção que se imaginaria excessivamente vigorosa, mesmo inadequada, para os padrões aceites na época.
Ajudar-nos-á certamente relembrar, que antes de A Sagração da Primavera nenhuma outra música ocidental tivera tão enfatizado o fenómeno do ritmo. A convenção ditava que o ritmo seria a consequência que emergia naturalmente da melodia e da harmonia, noção que na cabeça de Stravinsky não parecia suficientemente fundamentada e aplicável ao trabalho que teria em mãos. Era preciso coragem para mudar alguma coisa e foi isso que Stravinsky mostrou quando rejeitou o aparato e refinamento do Romantismo Tardio e os exemplos aprendidos com Rimsky-Korsakov e Scriabin, e os substituiu por melodias e harmonias simples, muitas vezes sobrepostas, com a orquestra a comportar-se como se fosse um gigantesco instrumento de percussão. O resultado seria uma música musculada, composta por movimentos rítmicos poderosos e obstinados, mas também ela bem calculada e precisa, composta por sons de arestas afiadas a fazer lembrar as telas cubistas que Pablo Picasso pintaria por aquela altura, também ele próximo das margens concordantes do Sena.
Desta forma, as catorze cenas que formam as duas partes deste bailado (A Adoração da Terra e O Sacrifício) seriam ligadas entre si pelo ritmo, e seria também o ritmo o elemento unificador das sonoridades massivas debitadas pela extensa orquestra de Stravinsky, uma sensação que o próprio experimentaria dirigir pela primeira vez em 1926, mostrando um pulso firme e pulsação controlada num Concertgebouw de Amesterdão a abarrotar de pessoas e música. A dança não teria aparecido nessa ocasião dando asas a que a música pudesse voar sozinha, o que viria a acontecer inúmeras vezes a partir daí.
O bailado inicia-se com uma velha mulher a ensinar os segredos da natureza e os seus mistérios a um grupo de homens jovens (Introdução [1]). A estes junta-se um grupo de jovens raparigas (Dança das jovens raparigas [2]) e o que começa num jogo inofensivo entre dois grupos (Jogo do rapto [3]) transforma-se numa batalha dos sexos (Dança primaveril [4]). As raparigas retiram-se e o grupo de homens emergem em campo (Jogos das tribos rivais [5]). A sua dança atinge um pico de êxtase (Dança da terra [8]) cujo clímax é precedido da entrada de homens mais velhos (Cortejo do sábio ancião [6]) que veneram a terra com gestos implorantes (A adoração da terra [7]).
A segunda parte começa pela escolha de uma das raparigas para o sacrifício (Introdução [9]). As restantes jovens (Círculos míticos das jovens raparigas [10]) glorificam-na com uma dança selvagem que enfeitiça a vítima escolhida (Glorificação da eleita [11]). Antes do ritual do sacrifício, os antepassados são evocados com uma dança ritual solene (Evocação dos antepassados [12]), até que a cerimónia final começa (Ritual dos antepassados [13]) e a escolhida dança até à morte (Dança sacrificial [14]).
É incrível como passado mais de um século, a vida levada ao limite nesta "Sagração da Primavera" ainda continue a chocar ouvintes por toda a parte. Talvez os ícones de modernidade e ousadia sejam isso mesmo: capazes de se perpetuarem no tempo... depois de um começo que em nada o faria prever.


Nuno Oliveira

                          


"A sagração da Primavera"


✨ Extractos que proponho para audição: (ver também publicação nº 15)
  • Kirov Orchestra, Mariinsky Theatre, St. Petersburg
  • Valery Gergiev
  • Philips, 468 035-2 PH
"o belo": toda a obra (Uma poderosa interpretação, replecta de espectáculo e misticismo,
                com a extraordinária direcção de Gergiev na ponderação e equilíbrio entre os
                dois. Simplesmente imperdível!)com alguns destaques a seguir;
                [1] - fagote, aos 0:00 - 1:02 e 2:48 - 3:00 ("o belo" tema de um fagote com voz de
                senhora. Mítico!) [youtube]
                [2] - tutti (A obstinação sinónima de um transbordar de vida!) e trompa aos
                1:39 - 1:48 (A frase inocente antes da escalada ao...[youtube]
                [3] - tutti (... caos!) e trompa aos 0:40 - 0:44 (Por "sinal" há um rapto![youtube]
                [4] - [youtube], [5] - [youtube], [6] - [youtube][7] - [youtube][8] - [youtube],
                [9] - [youtube], [10] - [youtube] 
                [11] - tutti (A glorificação pelo ritmo!) [youtube]    
                [12] - [youtube], [13] - [youtube] 
                [14] - tutti (O "sagrado" extase final!) [youtube]    






  • City of Birmingham Symphony Orchestra
  • Simon Rattle
  • EMI, 2 06876 2
"o belo": (A criatividade do mestre Rattle numa interpretação imaculada da orquestra
                de Birmingham. Um registo de referência a não perder.)
                [1-3] [youtube], [11-13] [youtube], [14] [youtube]






  • The Philadelphia Orchestra
  • Riccardo Muti
  • EMI, CDM 64516
"o belo": (Violência sonora e velocidades elevadas numa interpretação icónica do mestre
                Muti. Philadelphians sublimes num registo "brutal" a não perder também.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube], [11] [youtube], [14] [youtube]






  • The London Philharmonic
  • Kent Nagano
  • Virgin, VCK 7 91511-2
"o belo": (Interpretação menos extremada que o habitual, com sonoridades mais redondas
                 e menos massivas. A urgência sente-se sem ser enfatizada, a performance orquestral
                é refinada e atlética. Magnífica opção.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube], [11] [youtube], [14] [youtube]






  • Detroit Symphony Orchestra
  • Antal Dorati
  • Decca, 400 084-2 DH
"o belo": (Interpretação viva e excitante dos músicos norte-americanos dirigidos
                magistralmente pelo mestre Dorati. Uma proposta a ter em conta.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube], [11] [youtube], [14] [youtube]






  • Concertgebouw Orchestra, Amsterdam
  • Colin Davis
  • Philips, 438 662-2
"o belo": (Som esplendoroso num drama irresistível dirigido pelo maestro britânico.
                Uma excelente escolha.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube], [11] [youtube], [14] [youtube]






  • Israel Philharmonic Orchestra
  • Leonard Bernstein
  • Deutsche Grammophon, 445 538-2 GMA2 (versão de 1913)
"o belo": (A visão do mestre Bernstein da partitura original. Uma boa escolha a
                ter em conta também.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube], [11] [youtube], [14] [youtube]













  • Orchestre Symphonique de Montréal
  • Charles Dutoit
  • Decca, 414 202-2 DH 2 (versão de 1921)
"o belo": (A versão de 1921 apresentada pelo binómio de sucesso Dutoit-Montréal.)
                [1-8] [youtube], [9-14] [youtube]






  • Berliner Philharmoniker
  • Herbert von Karajan
  • Deutsche Grammophon, 415 979-2 GH
"o belo": (A integridade, sofisticação e atenção ao detalhe do mestre austríaco,
                numa escolha a ter em conta também.)
                [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube], [11] [youtube], [14] [youtube]





  
   
✰ Outras sugestões:
  • Pierre Boulez/The Cleveland Orchestra/Deutsche Grammophon, 435 769-2 GH (A visão de Boulez para descobrir.), [1-8] [youtube], [9-14] [youtube]














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Igor Stravinsky [Leysin, Suíça, 1914]


Tête de jeune fille
[Pablo Picasso, 1913 - Centre Pompidou, Paris].

(Un éventuel portrait de l'Élue? Il peut choquer aussi...)





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Vestígios do choque original...
[Théâtre des Champs-Élysées, Paris, 2014].






Homens jovens e uma jovem rapariga
[DEM-FCTUC UC, Coimbra, 1997].





Sagração da Primavera de 1997
[Queima das Fitas, Coimbra, 1997].





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