86. Berlioz: Sinfonia Fantástica |
A "Symphonie Fantastique" de Hector Berlioz, "l'esprit d'avant-garde" francês.
Para a "Citroën de Mangualde".
Pelos 25 anos de uma história em comum, apaixonante e desafiante como esta Fantástica francesa.
Assim como me é quase automática a nomeação do legado de André Citroën como "l'esprit d'avant-garde" da indústria automóvel francesa (embora os que nunca ouviram falar de um Boca de Sapo ou de um 2 Cavalos sejam livres de contestar esta afirmação), também a escolha da "Sinfonia Fantástica, op. 14, Episódio da vida de um artista", de Hector Berlioz (1803-1869), para a obra musical que melhor pudesse representar o pico da irreverência romântica francesa, poder-se-á comparar a um acto reflexo (artístico) da minha parte.
Berlioz partiria aos dezassete anos de La Côte-Saint-André para Paris, com o objectivo de estudar medicina e, deste modo, continuar o legado familiar. O seu pai Louis, que era doutor, fazia gosto que o filho pudesse compreender as noções de acupunctura pelas quais era um conhecido apaixonado, enquanto que o filho, Hector, haveria de preferir a frequência do Conservatoire e da Òpera de Paris à da École de Médicine e do Hôpital de la Pitié, realidade essa que, depois de conhecida em La Côte-Saint-André, provocar-lhe-ia alguns amargos de boca e reduções na mesada, uma precaridade que só viria a ser recomposta em 1828, após ter finalmente alcançado algum reconhecimento com a atribuição do segundo lugar no Prémio de Roma, depois de duas tentativas falhadas. Há terceira teria sido de vez, como diz a regra popular, mas seguramente que a sua determinação, dedicação e paixão pela composição, presentes na sua vida desde o fascínio com a revelação em criança da música de Gluck, muito terão contribuído também para essa "sorte" (que em 1830 se viria ainda a reflectir na obtenção do primeiro prémio naquele conceituado concurso).
O ponto alto da programação de 1827 do Théâtre de l'Odéon, seria a temporada das obras de Shakespeare representadas por uma companhia de teatro inglesa. A curiosidade ter-se-ia alastrado por Paris, tendo um grupo de jovens românticos ocorrido ao Odéon na expectativa de descobrir para onde recairíam as suas próprias inclinações, após experimentarem o que o genial inglês lhes teria para oferecer. Nesse grupo estariam, entre outros, a futura tríade do romantismo francês, composta por Victor Hugo, Engène Delacroix e Hector Berlioz, o dia seria o 11 de Setembro e a peça seria o Hamlet, com o papel de Ophelia a ser representado pela actriz irlandesa Harriet Smithson.
O espírito do romantismo teria seguramente baixado em Berlioz nessa noite, tendo o compositor ficado irremediavelmente (para não dizer obsessivamente) apaixonado pela actriz e refém do amor que o iria inspirar a escrever, entre 1829 e 1830, a sua famosa Sinfonia Fantástica.
Berlioz já seria conhecedor da obra de Beethoven por essa altura (teria ouvido as suas terceira, quinta, sexta e sétima sinfonias, em concertos da Societé des Concerts du Conservatoire) e embora a música do compositor alemão tivesse chegado como uma revelação para os jovens românticos parisienses da era pós-napoleónica, a sua maior influência teria sido no encorajamento à inovação orquestral, na experimentação de narrativas intencionais e na procura de novas cores e texturas sonoras (embora também se possa eventualmente apontar a Pastorale de Beethoven como um bom exemplo para esta Fantástica, com os seus também cinco andamentos a expressar, de igual modo, a paixão humana e a glória da natureza).
O compositor rejeitaria, assim, a forma tradicional da sinfonia a favor de uma sequência autobiográfica dramática em cinco quadros, que traçaria a progressão do herói (ele próprio) de uma época de ternura até ao declínio final, fazendo-se acompanhar ao longo da obra por um tema repetitivo que o compositor chamaria de "idée fixe". Seria a primeira vez que um compositor se autorretrataria através do seu trabalho, com a amada, representada pela "idée fixe", a ser, claro está, a fria actriz irlandesa, que durante todos aqueles anos se havia recusado a receber o apaixonado Hector (uma recusa entretanto suavizada pelo amparo da jovem pianista Camille Moke, que a seguir o deixaria para passar a chamar-se Camille Pleyel, esposa do renomado fabricante de pianos com esse apelido... conta-se que terá havido intenções de duelo, assassinatos e eventual suicídio), mas que aceitaria casar com ele a 3 de Outubro de 1833, para logo se separar em 1841 após um relacionamento desastroso, levado por sentimentos de inveja e ciúmes da fama do compositor (um desastre entretanto minimizado pelo afago da cantora Marie Recio, que o acompanharia por toda a Europa e com quem voltaria a acreditar no sacramento do matrimónio em 1854...). Há episódios na vida de um "artista" que são mesmo assim...
Nos dois primeiros anos após aquela récita de Hamlet, a paixão do compositor francês mantinha-se forte (louca até) enquanto a da actriz irlandesa se mostrava indiferente, demonstrando que a suposta intuição feminina ainda teria funcionado por algum tempo. As terríveis reacções aos seus avanços levá-lo-iam ao desespero (daí o "louca até"), como podemos perceber pelas palavras que escreveria a um amigo após a partida de Harriet de Paris: "Ela está em Londres e mesmo assim eu sinto-a à minha volta. Sinto o coração a saltar e o seu bater parecem as pancadas do êmbolo de um motor a vapor. Cada músculo do meu corpo treme de dor. Inútil! Assustador!". Palavras que o comum dos mortais poderia perfeitamente compreender e o André Citroën perfeitamente exemplificar.
Assim, é fácil prever que este estado febril por um amor inacessível originasse todo o drama colocado nesta Sinfonia Fantástica, com a volumosa orquestra a tornar-se o palco e os diferentes temas musicais as personagens, com cada um dos seus humores a serem caracterizados pelos diferentes timbres e dinâmicas instrumentais do mais variado que alguém poderia imaginar em Paris... à excepção de Hector Berlioz. De facto, apesar das incoerências técnicas da partitura que haveriam de ofender os mais puristas, a sua originalidade e espírito inovador seriam reconhecidos e esta Sinfonia Fantástica passaria rapidamente a ser considerada o símbolo sonoro do romantismo francês.
A obra estrearia a 5 de Dezembro de 1830, em Paris, com direcção de François-Antoine Habeneck (o maestro que já anteriormente lhe havia proporcionado escutar as sinfonias de Beethoven), sendo acompanhada por um programa autobiográfico escrito pelo próprio compositor, que focaria mais ou menos isto: Rêveries - Passions [I], um jovem músico, dotado de uma imaginação fértil, conhece a mulher dos seus sonhos e é constantemente assolado por pensamentos sobre ela, a "idée fixe" (flautas e violinos) surge pela primeira vez no Allegro, enquanto o artista se vê submetido a correntes de ternura, paixão, ciúmes, fúria e medo; Un bal [II], o artista encontra-se num baile parisiense, o ambiente é elegante, com candeeiros de cristal e dançarinos rodopiantes, "ela (?!)" (oboé e flauta) aparece e desaparece por duas vezes entre os pares; Scéne aux champs [III], após grande agitação, o jovem encontra a esperança e acredita que os seus sentimentos serão correspondidos, ouve no campo a melodia tocada por dois pastores (oboé e corne inglês) que recolhem uma manada de gado, isto fá-lo mergulhar num sono reconfortante, voltando a escutar-se a "idée fixe", mas a dúvida assalta-o novamente, permanecendo depois o silêncio; Marche au supplice [IV], rejeitado pela mulher que ama, o artista tenta cometer suicídio através do consumo de ópio, mas a dose é insuficiente, fazendo-o, por sua vez, mergulhar num sonho alucinante, ele sonha que mata aquela que ama, que é sentenciado à morte e que testemunha a sua própria execução, no último momento volta a vê-"la", mas a sua imagem é cortada violentamente pela lâmina fatal; Songe d'une nuit de Sabbat [V], o artista vê-se no meio de um sabbat de bruxas, rodeado de espectros e monstros de todo o tipo reunidos para o seu funeral, a sua amada junta-se depois à "festa" e com ela a sua melodia, que deixa de ser nobre e graciosa para se transformar numa canção grotesca, o clímax da imaginação delirante de Berlioz chega depois com os sinos fúnebres a soarem no Dies Irae (do juízo) final.
Apesar de ter sido bem recebida, esta obra só alcançaria definitivamente o reconhecimento com a excelente crítica de Robert Schumann no jornal alemão Neue Zeitschrift für Musik e a transcrição para piano de Franz Liszt. Nada mais apropriado, pois, que uma alma atormentada e um ilusionista (do piano) para celebrar esta música única. Nada mais esperado, também, que a defesa do resultado sonoro (um deles...) de um amor julgado impossível, partisse do sofredor mor do romantismo europeu e da testemunha do seu casamento com a belíssima Harriet Smithson, aquela menina de olhos negros, cheveux doux... and heart of stone.
Nuno Oliveira
"Sinfonia fantástica, op. 14, Episódio da vida de um artista"
✨ Extractos que proponho para audição: (ver também publicação nº 83)
- San Francisco Symphony
- Michael Tilson Thomas
- RCA, BG2 68930
do mestre Tilson Thomas que seguramente ficará para a história. Som glorioso,
alucinante, selvagem. Orquestra virtuosa e interpretação simplesmente imbatível.
Este é um dos poucos luxos que se podem adquirir por pouco dinheiro.)
[I]: tutti, aos 0:00-4:28 (Lição de expressividade no seio d"o belo".) e 9:38-10:14
(Lição de métrica na ordem dentro do caos.) [youtube]
[II]: tutti, aos 0:00-... (Dança para fadas ou para outros seres mágicos que gostem
de dar ao pé.) [youtube]
[III]: tutti, aos 0:00-... (O virtuosismo instrumental que expressa a serenidade
natural.) [youtube]
[IV]: tutti e fagote, aos 0:00-... (Mistério e brilhos de archote... perdão, fagote.);
tutti, aos 4:41-... (Poderoso suplício (o contrário é que não poderia ser).) [youtube]
[V]: tutti, aos 0:00-...; flautas, aos 0:26 e 1:08; clarinete, aos 1:24 e 1:43; fagote, aos
1:51; metais, aos 1:31, 2:28, 5:46, 7:40, 8:37 e 9:00; sinos, aos 2:48; oficleide, aos
3:12 e cordas, aos 8:07 (O caso em que o pecado é "o belo". No ouvinte o sonho é
alucinante e de São Francisco a realidade até parece virtual.) [youtube]
- Royal Concertgebouw Orchestra
- Colin Davis
- Philips, 454 530-2
interpretação excitante. Inesquecível embalo maternal no primeiro andamento e
um Dies irae de fazer tremer no último. Um registo lendário e a referência para
muitos admiradores desta obra.)
- Orchestre de l'Opéra Bastille
- Myung-Whun Chung
- Deutsche Grammophon, 445 878-2 GH
perto da overdose fatal. Rotação elevada e expressividade com vários graus de
liberdade. Sinos majestosos. Os trompetes estalam, mas a loucura juvenil é
mesmo assim: nua e crua. Escolha de excelência.)
- Orchestre Symphonique de Montréal
- Charles Dutoit
- Decca, 414 203-2 DH
ferocidade do último andamento. Sonoridade orquestral luxuriante, embora
a escolha dos sinos pudesse ter sido mais bem pensada. Não há amor perfeito,
mas este chega lá perto.)
- The London Philharmonic
- Zubin Mehta
- Teldec, 4509-90855-2
depois nos oferecer um romantismo arrebatador. Sinos grandiosos e percussão
bem marcada. Metais majestosos, com uma sonoridade polida e acolhedora.
Uma escolha espectacular para os que gostam de espectacularidade.)
[I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube], [V] [youtube]
- Radio-Sinfonieorchester Stuttgart des SWR
- Roger Norrington
- Hänssler, CD 93.103
estreia da obra. Registo muito interessante, com a sonoridade natural típica
dos instrumentos de época e a interpretação viva e excitante a merecerem
destaque. Uma escolha de eleição para quem valoriza a diferença e sonoridades
mais antigas. Eu adoro.)
- Orchestre de Paris
- Semyon Bychkov
- Philips, 438-939-2 PH
e final estonteante. Um registo equilibrado, de que poucos falam. Aqui fica a
proposta para a sua descoberta.)
[I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube], [V] [youtube]
✰ Outras sugestões:
- Royal Philharmonic Orchestra
- Enrique Bátiz
- ASQ, CD DCA 590
e um final intenso. Madeiras persuasivas e metais poderosos a arriscar tropeçar.
Uma magnífica opção a ter em conta também.)
- Orchestre du Capitole de Toulouse
- Michel Plasson
- EMI, CDC 7 54010 2
da obra e algumas idiossincrasias, como os glissandos das cordas no segundo
andamento. Início delicioso, com pianíssimos refinados e a sonoridade gulosa
das madeiras. Os metais poderão ser menos exuberantes, mas o esforço global
da equipa vale bem a pena.)
- New York Philharmonic Orchestra
- Zubin Mehta
- Decca, 400 046-2 DH
brilhante e sonoridade exuberante da orquestra norte-americana. Cordas e
madeiras de eleição, fabuloso timbre dos sinos. Excelente escolha também.)
[I-V] [youtube]
- The Philadelphia Orchestra
- Riccardo Muti
- EMI, D 154244
o timbre poderão não ser para todos, mas a "vida do artista" está bem presente.)
- Roger Norrington/The London Classical Players/EMI, D 120760 (A sonoridade fina dos instrumentos de época, numa interpretação umas vezes viva, outra vezes recatada, sem lugar para excessos românticos. Para descobrir.), [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube], [V] [youtube]
- Pierre Boulez/The Cleveland Orchestra/Deutsche Grammophon, 453 432-2 GH (A preferência da racionalidade à excentricidade na visão do mestre Boulez. O casamento do romantismo com a precisão só poderia dar um resultado diferente, mas a qualidade está lá.), [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube], [V] [youtube]
- Claudio Abbado/Chicago Symphony Orchestra/Deutsche Grammophon, 410 895-2 GH (Som atmosférico, rápidas mudanças de velocidade e contrastes bem marcados. Abbado e alguns excessos numa interpretação interessante de ouvir.), [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube], [V] [youtube][youtube][youtube][youtube]
- Paavo Järvi/Cincinnati Symphony Orchestra/Telarc, CD-80578 (Intenso e estridente como o primeiro amor deve ser. Uma boa opção.), [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube], [V] [youtube]
- Mariss Jansons/Royal Concertgebouw Orchestra/EMI, CDC 7 54479 2 (O caminho para a tortura começa aos primeiros compassos, o futuro é incerto e sentem-se saudades do passado. Uma escolha a ter em conta também.), [I] [youtube][youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube], [V] [youtube][youtube][youtube][youtube][youtube]
- Colin Davis/Wiener Philharmoniker/Philips, 432 151-2 PH (Registo que privilegia a poesia e o lirismo, pelo que os que o preferem ficarão felizes. Para mim, faltará talvez um pouco mais de loucura e uma escolha dos sinos mais feliz.), [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube], [V] [youtube]
- Daniel Barenboim/Berliner Philharmoniker/CBS, MK 39859 (Interpretação sem rodeios do mestre Barenboim, com destaque para a sonoridade da orquestra berlinense, a escutar-se como uma família unida, mas afastada da vizinhança.), [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube], [V] [youtube]
- Christoph Eschenbach/Orchestre de Paris/Naïve, V 4935 (A sensibilidade feminina do primeiro andamento liga bem com a capa. Velocidades mais elevadas, ao gosto do mestre alemão.), [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube], [V] [youtube]
- Georges Prêtre/Wiener Philharmoniker/Vienna Philharmonic Records, WPH-L-GP-2013/1/2 (Registado ao vivo em 2013, tensão visível, começo hesitante e pensativo. O segundo andamento é vivido sem pressas. Seria uma excelente opção não fosse algum desequilíbrio e uma plateia ruidosa.), [Vienna Philharmonic Records]
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Lançamento dos novos Citroën Berlingo e Peugeot Partner [PSA Mangualde, Sector Ferragem, Novembro/2009]
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