domingo, 31 de março de 2024


85. Mahler: sinfonia nº 4 |


A Sinfonia nº 4 de Gustav Mahler, a história de uma criança e a visão do Reino dos Céus.






À memória das palavras doces e do abraço forte da Etelvina Oliveira [23/05/1945 - 29/01/2024].






Muitos de nós aproveita a altura da Páscoa para imaginar como será o fim, se será o alfa, o ómega ou alguma coisa pelo meio. Nesse sentido, as várias formas de arte tentam ajudar a matar a curiosidade humana, com a sugestão de variadas hipóteses, das mais objectivas e palpáveis, às mais subjectivas e imateriais, fornecendo um catálogo de opções para todos os gostos entre os adeptos do corpo e os da mente.
A forma de arte suprema que é a música, só poderia liderar as respostas ansiadas pelos adeptos da mente, com as suas propostas do sublime a dar hipótese aos mais atentos e pacientes, de algum entendimento sobre aquilo que nos transcende. O espírito de cada um certamente agradecerá. E o corpo, já agora, também.
Gosto daquela sensação de tranquilidade que vem depois da exaltação, e confesso que a apoteose da juventude sempre me terá inclinado para obras que reflectem a monumentalidade da chegada aos céus. Foi, por isso, uma surpresa, quando percebi que os reflexos mais grisalhos me haviam levado a olhar agora para a inocência divina que nos aguarda no fim do caminho, pelo que, a escolha da sinfonia nº 4 de Gustav Mahler (1860-1911) neste Domingo de Páscoa, tem tudo a ver com isso.
A história da quarta sinfonia de Mahler começa curiosamente pelo seu último andamento, um dos mais inesperados finais que alguma vez se poderia imaginar para uma sinfonia naquela época. Apoteose sublime? - Não existe. Monumentalidade orquestral? - Também não a encontro. Grandiosidade sonora? - Tão pouco a reconheço. Canção para soprano e orquestra que descreve a visão infantil das delícias do céu? -  Ora vamos cá ver o que diz o poema "Das Himmlische Lebend"*...
 

"A Vida Celestial"*

Saboreamos os prazeres celestes,
por isso evitamos todas as coisas terrenas.
No céu não se escuta
nenhum rumor do mundo!
Todos vivem em serena paz!
Levamos uma vida angelical,
mas somos também muito alegres!
Levamos uma vida angelical,
dançamos e cantamos,
saltamos e pulamos!
E no céu, São Pedro observa-nos!
São João solta o pequeno cordeiro,
Herodes, o carniceiro, aguarda por ele!
Levamos o manso,
inocente e manso
e doce cordeirinho, para a morte!
São Lucas abate o boi
sem muito pensar ou sentir,
o vinho não custa um tostão
nas caves celestes,
e os anjos cozem o pão.
Ervas aromáticas de diversos tipos,
crescem no jardim celeste!
Bons espargos, feijões,
e tudo o que quisermos!
São-nos servidos pratos fartos!
Boas maçãs, boas peras, e boas uvas!
Os jardineiros deixam-nos provar tudo!
Se quereis corças ou lebres,
eles surgem correndo
pelas ruas espaçosas!
E se é dia de jejum,
todos os peixes nadam alegremente até à tona!
E eis São Pedro que chega
com a sua rede e engodo
ao viveiro celeste.
Santa Marta deve ser a cozinheira!
Não existe música na Terra,
que se compare à nossa.
Onze mil virgens
lançam-se numa dança!
Santa Úrsula observa e ri!
Não existe música na Terra,
que se compare à nossa.
Cecília e os seus pares
são magníficos músicos de câmara!
As vozes dos anjos
estimulam os sentidos,
e tudo desperta para a alegria.


...bingo!
Na realidade, esta Das Himmlische Lebend seria composta em 1892, integrada no seu ciclo de canções Des Knaben Wunderhorn (A trompa mágica do rapaz), com poemas tradicionais alemães compilados por Achim von Arnim e Clemens Brentano, e, como já percebemos, viria a ter um destino muito particular.
Mahler estaria por aquela altura a trabalhar na sua segunda sinfonia, uma obra que só estrearia três anos depois. Entre 1893 e 1896 comporia a sua terceira sinfonia, pensando que Das Himmlische Lebend lhe haveria de proporcionar um final adequado. Contudo, e já próximo de concluir esta sinfonia, o compositor mudaria de opinião, vindo a decidir que, na vez disso, a canção deveria fazer parte do final de uma sinfonia inteiramente diferente.
Um ano após terminar a sua terceira sinfonia, Mahler muda-se para Viena, uma cidade que lhe imporia a atarefada agenda de maestro e responsável artístico da Ópera que o viria a impedir de compor durante dois anos. Seria apenas nas férias de verão de 1899 e 1900 que o compositor haveria de arranjar o tempo e a paz necessária para trabalhar na sua quarta sinfonia, enquanto usufruía do que as estâncias balneares de Bad Aussee e Maiernigg teriam para oferecer.
Esta obra viria a ser estreada no ano seguinte, a 25 de Novembro de 1901, em Munique, com direcção do próprio Mahler. Seria recebida com frieza, justificada, por alguns, pelo choque provocado por uma aparente "mistura irresponsável de géneros e estilos" (virtualmente desconhecida naquela época, hoje muito mais familiar aos ouvidos dos apreciadores do misto instável de ternura e ironia que é a música de Mahler) que o compositor, de forma descarada, teria entendido como a maneira natural de expressar a sua visão do mundo. Outros haveria, também, que chegariam a invocar uma suposta "ligação ultrajante entre sofisticação e ingenuidade", ligação que na verdade existe, mas que é tudo menos ultrajante depois de percebermos toda a história de Gustav Mahler: o director da Ópera de Viena e o segundo de catorze filhos, sete dos quais haviam falecido na infância.  
De um quase fiasco no século XX para uma das suas obras mais populares no século XXI: talvez um século de compreensão do design artístico tenha contribuído para isso... Com efeito, como Das Himmlische Lebend já existia como quarto andamento, os três primeiros tiveram de ser desenhados cuidadosamente de forma a preparar o conhecido final, a tal invocação à candura pueril proposta no poema. Esse facto contribuiria para a escrita de uma obra mais curta e de sonoridade mais leve do que as suas segunda e terceira sinfonias, evitando as suas grandes dimensões e recursos orquestrais massivos, embora ainda necessitasse de uma orquestra de dimensões generosas, apesar da ausência de trombones e tuba.
Julga-se que Mahler provavelmente teria pensado num programa para esta sinfonia, mas, se assim foi, tê-lo-á guardado para si próprio. O que se conhece, é que ele teria originalmente pensado chamar o primeiro andamento de Die Welt als ewige Jetztzeit (O Mundo como um eterno agora) e o segundo de Freund Hein spielt auf (Ataca Amigo Hein), sendo o "Freund Hein" um termo eufemístico e alegórico alemão para a personificação da morte... neste caso do artista, e, mais concretamente, do violinista solista.
Se esta obra retrata realmente o percurso de uma criança ao encontro de Deus, uma suposição suportada simbolicamente pelo trenó, com as suas campainhas a chilrear aos primeiros compassos [I], num ambiente encantado a fazer lembrar um "era uma vez", e a imagem do "Freund Hein" a tocar o seu violino no segundo andamento [II], com uma sonoridade semelhante à dos antigos tocadores de rabeca do Ländler austríaco (com o violino a ser afinado em scordatura, ou seja, um tom acima, de forma a proporcionar o efeito rústico pretendido), então "o belo" terceiro andamento [III], l...e...n...t...o, seguramente descreverá a última etapa da viagem, o vislumbre ansioso de um Paraíso que parece inatingível, imaginado numa sumptuosa partitura para cordas e alguns breves apontamentos de bravos metais (a língua portuguesa, magnífica, também oferece destas coisas sublimes, como aliterações e outras, se formos atentos e pacientes...).
Depois, já nesse Paraíso que é o último andamento [IV], a entrada da voz faz recuar tudo o resto. Os versos sobre a abundância da cozinha celestial são ponctuados delicadamente pelas madeiras e pelos sons frágeis das mesmas campainhas que haviam iniciado a obra, agora uma memória de algo deixado à muito para trás. O último verso começa e o distanciamento ao mundo real alarga-se, a tonalidade de sol passa suavemente a ré, transportando-nos para um mundo diferente, cuja porta se vai fechando lentamente até ao calar das notas de harpas e contrabaixos, quase inaudíveis, até ao silêncio perfeito de uma recordação do divino.
Agrada-me pensar que voltamos a ser crianças quando retornamos aos Céus. Um pensamento que faz sentido: o Céu na Terra é vivido nos momentos de criança, naqueles dias simples de verão passados à beira-rio, num qualquer Souto de Lavar.


Nuno Oliveira




"Sinfonia nº 4, em sol maior"


✨ Extractos que proponho para audição: (ver também publicações nº 1, 23, 28 e 41)
  • Kiri Te Kanawa
  • Chicago Symphony Orchestra
  • Georg Solti
  • Decca, 410 188-2 DH
"o belo": toda a obra, principalmente os últimos dois andamentos (Uma interpretação
                intensa e profundamente sentida, com os metais a soarem de forma gloriosa,
                cordas exuberantes e a voz luminosa de Te Kanawa que nos toca o coração. "o belo"
                terceiro andamento é de ir às lágrimas. Memorável e imperdível.)
                     [I]: tutti, aos 0:00-16:18 (Sabor a férias de Natal e danças de roda.) [youtube]
                [II]: tutti, aos 0:00-9:30 (Tons escuros e o gosto pela música de câmara.) [youtube]
                [III]: tutti e oboé, aos 0:00-3:26 (Expressividade a marcar a entrada.); tutti e metais,
                aos 12:04-12:52 (Drama e metais acutilantes para "amuse-bouche".); tutti e cordas,
                aos 15:23-16:48 ("o belo" prato principal e a recordação de um abraço forte.);
                metais, aos 17:20-18:08 (Sobremesas escaldantes às portas do Céu); tutti, aos 18:09-
                20:05 (Suave digestivo através dos campos verdejantes do Divino.) [youtube]
                [IV]: voz, aos 1:27-1:40, 2:46-2:59 e 4:02-4:25 (Palavras doces na cozinha Celeste.)
                [youtube]






  • Judith Raskin
  • Cleveland Orchestra
  • George Szell
  • Sony, SBK 46 535
"o belo": (Liderança precisa do mestre Szell e um monumento ao virtuosismo orquestral
                 chamado Cleveland Orchestra. Voz acolhedora e performance elegante, com o
                  final do terceiro andamento a tender para o infinito. Um ícone dos anos 60 e a
                 referência absoluta para muitos apreciadores desta obra.)
                 [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]






  • Helmut Wittek
  • Concertgebouworkest Amsterdam
  • Leonard Bernstein
  • Deutsche Grammophon, 423 607-2 GH
"o belo": (Interpretação incandescente, gravada ao vivo na mítica sala de Amesterdão.
                 Direcção refinada, com apontamentos pessoais do mestre Bernstein bem visíveis.
                 Timbre cristalino do corajoso soprano infantil. Um registo lendário e irresistível.)
                 [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]






  • Amanda Roocroft
  • City of Birmingham Symphony Orchestra
  • Simon Rattle
  • EMI, CDC 5 56563 2
"o belo": (Expressividade ao limite, num registo fresco e detalhado. Terceiro
                andamento com pianíssimos arrepiantes, voz nobre da solista no quarto.
                Uma magnífica escolha, com o enigma do desconhecido a pairar no ar.)
                [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]






  • Ann Murray
  • Royal Philharmonic Orchestra
  • Andrew Litton
  • Virgin, 363277 2
"o belo": (Interpretação radiante e repleta de drama. Metais estratosféricos e voz
                límpida a contar a história sem rodeios. O dedo do mestre Litton nota-se
                bem. Fabulosa escolha também.)
                [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]






  • Kathleen Battle
  • Wiener Philharmoniker
  • Lorin Maazel
  • Sony, SMK 39072
"o belo": (Sonoridade gorda nos metais, madeiras quentes e aquele sotaque vienense
                nas cordas que nos prende a atenção. O sentimento, esse é vibrante, é de
                Maazel. A voz, essa é pura, é de menina, a minha favorita. Sem dúvida, uma
                das mais famosas e admiráveis gravações desta obra.)
                [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]






  • Barbara Hendricks
  • Los Angeles Philharmonic
  • Esa-Pekka Salonen
  • Sony, SK 48 380
"o belo": (A visão de Salonen numa noite de luar, umas vezes tranquila, outras mais
                irrequieta, mas sempre apelativa. Metais poderosos e voz gulosa, de mulher.
                Excelente opção.)
                [I-IV] [spotify], [I-IV] [iTunes], [IV] [youtube]






  • Juliane Banse
  • The Cleveland Orchestra
  • Pierre Boulez
  • Deutsche Grammophon, 479 7248 GB8
"o belo": (Voz suave, sonoridade orquestral luxuriante e direcção focada. Um registo
                para aqueles que preferem a luz directa à visão ao entardecer.)
                [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]






   
✰ Outras sugestões:
  • Mitsuko Shirai/Neville Marriner/Radio-Sinfonieorchester Stuttgart/Capriccio, 10 358 (Interpretação mais racional, com uma sonoridade orquestral acutilante e a voz familiar a chamar-nos para jantar.), [I-IV] [allmusic]




  • Roberta Alexander/Bernard Haitink/Concertgebouw Orchestra, Amsterdam, Philips, 412 119-2 PH (Visão sem rodeios ou excessos. Voz brilhante e canto apelativo. Boa opção.), [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]




  • Kiri Te Kanawa/Seiji Ozawa/Boston Symphony Orchestra/Philips, 411 072-2 PH (Elegância e graciosidade. Menos drama, mais cor, na voz e na orquestra.), [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]






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Gustav Mahler, com cinco anos, a segurar folhas de música [Iglau, 1865]




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Palavras doces e abraço forte

Da esq. para a dir.: Fernando, Paula, Paulo, Etelvina e Manuel [França, anos 70]


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