69. Bruckner: sinfonia nº 7 |
A Sinfonia nº 7 de Anton Bruckner; mais do que uma memória do ídolo, o reconhecimento do Pai.
Para a rapaziada da irmandade que era aquele "7A" dos anos 90.
Os meses de Queima (das Fitas) são propícios à recordação dos momentos lendários vividos pelo Miranda, juntamente com o Vinnie, o Fuji, o Náná, o Carlos, o Tony, o Freud, o Porkys, o Mário Rui, o Bruggie, o Paulo, o Nuno Pinto, e também o Joca e o Rui de Direito, e outros de que já não me lembro, não esquecendo a Dona Céu, e também a Dona Piedade (e respectiva família...).
Uns vinham do Norte, outros do Centro e outros do Sul, uns eram de Direito, outros de Letras, outros de Ciências e ainda outros de Farmácia, mas todos se juntavam ali, a viver aqueles anos de juventude plena, entre a obrigação diurna que era cortejada lá em cima, no Pátio das Escolas, e a tentação nocturna que era seduzida lá em baixo, na Praça da República.
Entre o Céu e o Inferno, ali ficava o nº 7A do Bairro Sousa Pinto, a fazer pender a balança do Purgatório coimbrão...
Não houvesse tudo isto, e só o nº da publicação já merecia um: "7A! Uiiiiiiiii que bom!".
Foi sempre claro para mim que ao propósito bloguístico de ligação da cifra 7A à genialidade de uma peça de música só poderia corresponder a 7ª do Anton, a mais melódica, ousada e majestosa sinfonia de Bruckner (1824-1896), possivelmente a sua obra mais popular e sem dúvida a minha preferida.
Existem muitas histórias que ilustram a simplicidade infantil, rusticidade e falta de sofisticação de Anton Bruckner (numa bela ocasião teria dedicado uma sinfonia "Ao Senhor Deus" e após ter conhecido o seu ídolo Richard Wagner, ter-se-ia prostrado de joelhos a seus pés e declarado: "Mestre, eu venero-o!"), mas nenhuma será porventura mais reveladora do que a contada pelo maestro que viria a apresentar a sua Sinfonia nº 7 em Viena, o ilustre Hans Richter. O abastado maestro encontrava-se a preparar a estreia da quarta sinfonia do compositor em Fevereiro de 1881, e durante um dos ensaios o ingénuo sinfonista, visivelmente satisfeito com o trabalho realizado, ter-lhe-á dado 1 táler austríaco de gorjeta e proferido: "Tome lá e beba uma caneca de cerveja à minha saúde". A história bem que poderia acabar aqui, só que, na realidade, a parte para mim mais importante viria a seguir: o normalmente imperturbável Richter agradeceu a moeda e usou-a na sua corrente de relógio o resto da vida, chamando-lhe "a lembrança de um dia em que chorei". "o belo" que é quando o Romantismo se enche de Humanismo, não é.
Bruckner viria a escrever a sua sétima sinfonia entre 23 de Setembro de 1881 e 5 de Setembro de 1883, mas a estreia só aconteceria um ano depois. Antes disso, os seus alunos Joseph Schalk e Ferdinand Löwe fariam uma apresentação da obra para quem estivesse interessado, numa versão para dois pianos, na Bösendorfer Saal de Viena a 27 de Fevereiro de 1884. Já a esperada estreia aconteceria no Stadttheater de Leipzig a 30 de Dezembro de 1884, dirigida por um dos seus maiores defensores, o famoso jovem maestro, Artur Nikisch, com o extraordinário sucesso que os aplausos de mais de um quarto de hora faria supor, tornando-se no seu maior triunfo a partir daí. Seguir-se-iam apresentações em Munique, na Holanda e na América, até chegar finalmente a Viena e a Hans Richter.
A razão da escolha de Leipzig para a estreia em detrimento de Viena prender-se-ia com o receio pela possível hostilidade vienense liderada pelo crítico Hanslick e por Hugo Wolf. As más experiências passadas em Viena teriam motivado a preferência por uma cidade que o aceitaria melhor e um maestro que depois de ter visto a partitura da obra teria afirmado que "depois de Beethoven não haveria nada que se aproximasse". Quando posteriormente foi colocada a possibilidade de apresentação da obra em Viena, Bruckner teria inicialmente negado a iniciativa, alegando que "As razões têm exclusivamente a ver com a infeliz situação local no que diz respeito à influência dos críticos, o que apenas contribui para o crescimento da minha reputação na Alemanha". Mais tarde viria a ser persuadido a permitir a apresentação, e seria essa a ocasião que marcaria o momento do seu real reconhecimento nessa cidade, cuja aprovação teria a maior importância para ele. Hanslick teria continuado com os tradicionais julgamentos e afirmações sobre "tédio" e "superexcitação febril", mas Anton já teria sido chamado inúmeras vezes ao palco e saciado os seus instintos mais primitivos (e uma das suas imagens de marca) durante o jantar oficial oferecido em sua honra. Após uma vida de luta árdua, imaginem a satisfação trazida pelo reconhecimento de Hanslick sobre as repetidas ovações do público e o descobrir-se a si próprio uma celebridade aos sessenta anos de idade, quatro anos depois da estreia da sua quarta sinfonia, até aí o único vislumbre de aceitação e "inusual sucesso", como teria sido forçado a admitir o hostil Neue Freie Presse naquela altura.
Bruckner viria a dedicar esta sinfonia (constituída pelos quatro andamentos habituais) ao Rei Ludwig II da Baviera, o protector de Wagner ou, como Anton gostava de chamar, do "ideal inalcançável e muito querido e imortal mestre dos mestres", uma admiração que seria recíproca, sendo conhecida a comparação de Bruckner a Beethoven que Wagner teria feito no último encontro entre os dois, ocorrido em Bayreuth em 1882, pela altura da estreia do Parsifal a 26 de Julho. Este último encontro e a intuição sobre a saúde frágil de Wagner teriam um profundo efeito em Bruckner, pelo que na viagem de regresso a Viena, finaliza o terceiro andamento (Scherzo) [3] e escreve a maior parte do primeiro, um Allegro moderato [1] com a mais longa melodia de um tema principal escrita pelo compositor e a fazer lembrar harmonicamente o início d'O Ouro de Reno do "mestre dos mestres"... se bem que Bruckner tivesse referido também que este tema, maravilhosamente apresentado pelas trompas e violoncelos (dupla de sonho!) e suportado por suaves trémulos nas cordas, lhe haveria aparecido num sonho protagonizado pelo seu amigo à muito falecido, Ignaz Dorn, à viola...
É razoável admitir que Bruckner terá pressentido no início de 1883 que o seu ídolo estaria perto da morte (Wagner encontrava-se seriamente doente em Veneza e viria a falecer a 13 de Fevereiro), mas no entanto permanece a dúvida sobre se o icónico Adagio (segundo andamento) [2] teria sido ou não concebido como uma elegia pela morte de Wagner. Embora o esboço deste andamento tivesse sido escrito a 22 de Janeiro, três semanas antes do falecimento de Wagner, a verdade é que Bruckner teria insistido através de uma carta ao seu aluno, o maestro Felix Mottl, de que a ideia de uma marcha fúnebre ter-lhe-ia chegado pouco tempo depois de ter recebido a notícia da saúde precária de Wagner ("Um dia cheguei a casa muito triste e pensei para comigo que era impossível que o mestre vivesse muito mais tempo. Foi quando o adagio em dó# menor me veio à cabeça"). Por outro lado, a ideia de inclusão de quatro tubas wagnerianas na partitura (utilizadas pela primeira vez numa sinfonia) ocorreria a Bruckner apenas mais tarde, assim como a pancada de pratos no clímax deste andamento (exactamente na letra "W" da partitura!) que o compositor teria alegadamente adicionado por sugestão de Nikisch, mas que todavia mais tarde não viria a aparecer no manuscrito original, pelo que, e independentemente da versão utilizada, a sua polémica aplicação prática tem vindo a ser decidida consoante o entendimento particular dos maestros, o que é razoável porque se fosse decidido pelas administrações seria porventura pior (no que me diz respeito, eu pessoalmente passo bem sem a pancada...). Ainda sobre este ponto de discórdia (o W...), o jovem Welser-Möst retém-na, por exemplo, enquanto o ancião Wand já não (para mais informações: WWW.pancadanospratosounaoeisaquestao... ou como diria um famoso da nossa praça, porventura parecido em sofisticação ao herói da nossa história: "peanners"). Ainda sobre este sublime Adagio, importa referir que Anton quis que as quatro tubas wagnerianas introduzissem o tema musical de modo "Muito solene e Muito lento" e que o lamento que se escuta recua a um motivo utilizado no "Non confundar in aeternum" ("Eu não me vou decepcionar para sempre") do Te Deum que teria começado a compor em 1881 (para o seu Deus), e que nos fala da tristeza que se sente com uma incomensurável perda... como se de uma "música fúnebre para o mestre" se tratasse.
Já o Scherzo (3º andamento) [3] não poderia ser mais diferente. As suas formas desapaixonadas entre o murmúrio e a explosão são o retracto das palavras do compositor quando refere que a melodia de abertura no trompete lhe teria sido "inspirada pelo cantar do galo", um portentoso e confiante animal sem dúvida, atendendo ao intervalo sonoro que faria tremer instrumentistas menos preparados para o salto de oitava e promover nos ouvintes sentimentos de pena do si...
A obra terminaria com o Finale (4º andamento) [4] e com ele a compaixão solene escutada no primeiro andamento e a sua transformação em força e energia. Tudo acaba como começa afinal... e depois de toda a agitação, permanece o conforto do que foi sentido naquele sonho que Alguém uma vez ofereceu.
Nuno Oliveira
"Sinfonia nº 7, em mi maior"
✨ Extractos que proponho para audição:
- New York Philharmonic
- Kurt Masur
- Teldec, 4509-97437-2
Setembro de 1991, no concerto de estreia do mestre Masur à frente da
Filarmónica da Nova Iorque. Interpretação idiomática, repleta de tensão,
sentimento e nobreza, com o vazio das inúmeras pausas a contribuir de forma
reflectida... para nos tirar o fôlego. Se o objectivo era atingir a lenda, para mim
conseguiram-no. Sublime e obrigatório!)
[Nota pessoal: este disco foi a banda sonora das inúmeras noites de preparação para os exames que
ocorreram naquele nº 7A, nos finais dos anos 90. Pode parecer estranho, mas a verdade é que ajudou.]
[I]: tutti, aos 0:00-2:21 (Nobreza musical para usufruto comum!); trompas, aos
6:14-6:19 (As trompas que existem por aqui...); tutti, aos 11:00-11:50 (O mistério
que só algum tipo de romantismo pode oferecer!); trompa e tutti, aos 12:19-13:23
(Realeza musical? Sim, vou repetir!) [youtube]
[II]: tubas wagnerianas e tutti, aos 0:00-2:42 ("o belo" numa das mais belas frases
da história da música!); cordas e flauta, aos 4:07-5:48 (Um acompanhamento
adequado para o estudo da "Termodinâmica"...); tutti, aos 12:21-13-24 (... e um
acompanhamento adequado para o estudo da "Mecânica dos Fluidos".); tubas
wagnerianas e metais, aos 17:27-18:26 (...a trabalhar de sol(o) a sol(i)!) [youtube]
[III]: trompas e metais, aos 1:00-1:03, 3:22-3:25 e 9:26-9:29 (3'' a descer para
subir o nível da performance!); tutti e flauta, aos 5:08-5:58 (Uma música de
fundo adequada também para o estudo, neste caso de "Vibrações"...) [youtube]
[IV]: metais, aos 3:13-4:03 e 6:45-7:42 (No Reino do metal!) [youtube]
- Radio-Symphonie-Orchester Berlin
- Riccardo Chailly
- Decca, 414 290-2 DH
comprometida dos músicos berlinenses e dirigida de forma magistral por
Chailly, que se afirmaria a partir daqui. Romantismo exacerbado e o som
sumptuoso da orquestra alemã a partir da Jesus-Christus Kirche. Um
registo de referência e imperdível.)
- Wiener Philharmoniker
- Herbert von Karajan
- Deutsche Grammophon, 429 226-2 GH
última gravação do mítico mestre von Karajan, realizada em Abril de 1989
no Muzikverein de Viena. O empenho e concentração dos músicos sente-se,
a espiritualidade e intimismo do maestro vive-se, e o resultado é uma
interpretação fluida e grandiosa. Uma escolha de excelência a não perder.)
[I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]
- Berliner Philharmoniker
- Herbert von Karajan
- Deutsche Grammophon, 419 195-2 GH
exuberante nas cordas e brilhante nos metais, com destaque para as trompas
wagnerianas, junta-se a visão precursora do mestre austríaco e ficamos com
um registo tão sensível quanto poderoso. Os nascidos em 1975 só poderiam
ser assim: recheados de emoções fortes. Uma maravilhosa opção.)
[I-IV] [youtube]
- Chicago Symphony Orchestra
- Georg Solti
- Decca, 417 631-2 DH
habituais na dupla icónica CSO/Solti. O poder orquestral sente-se e a visão do
mestre entende-se. Uma opção de qualidade para ouvir com atenção.)
- Kölner Rundfunk-Sinfonie-Orchester
- Günter Wand
- RCA, GD 60082
pode oferecer. Orquestra assertiva e em total consonância com a visão
magnânima do mestre Wand. Uma fabulosa proposta, também a não perder.)
[I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]
✰ Outras sugestões:
- The London Philharmonic
- Franz Welser-Möst
- EMI, CDC 7 54434 2
de 1991. Músicos concentrados na visão do mestre austríaco e o lirismo
em destaque numa opção a ter em conta.)
[I-IV] [allmusic]
- Berliner Philharmoniker
- Daniel Barenboim
- Teldec, 9031-77118-2
sentimentos delicados, acentuados pela sonoridade sumptuosa das cordas
berlinenses. A poesia da primeira metade sobrepõe-se à intensidade da
segunda. Opção de qualidade.)
- City of Birmingham Symphony Orchestra
- Simon Rattle
- EMI, CDC 5 56425 2
sonoridade exuberante da orquestra britânica. Uma proposta a descobrir.)
- Eliahu Inbal/Radio-Sinfonie-Orchester Frankfurt/Teldec, 2292-43147-2 (versão original de 1881-1883: A visão de um especialista em Bruckner.), [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]
- Philippe Herreweghe/Orchestre des Champs-Elysées/Harmonia Mundi, HMC 901857 (ed. Nowak: Uma interpretação por orquestra e instrumentos de época.), [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]
- Hans Rosbaud/Southwest German Radio Symphony Orchestra Baden-Baden/Maps, 221922-205 (versão original de 1881-1883: O registo histórico de Hans Rosbaud gravado nos anos 50.), [I] [youtube], [II] [youtube], [III] [youtube], [IV] [youtube]
∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞ ∞
"7A! Uiiiiiiiii que bom!" [Coimbra, 1998]
Porta do nº 7A do Bairro Sousa Pinto
(junto às Escadas Monumentais) [Coimbra, Abril/2022]