52. Bartók: Concerto para Orquestra |
Béla Bartók e o seu "Concerto para Orquestra"; uma música nova sobre a velha Europa, absorvida pelos ouvidos antigos de uma América moderna.
Para o Horácio.
...no dia do seu neto André, um pirata que hoje conseguiu reunir a família de humores mais eslavos. A do "Ladislav", é claro.
Béla Viktor János Bartók (1881-1945) foi um Homem excepcional.
O professor Béla era um extraordinário virtuoso do piano, docente deste instrumento na Academia de Budapeste, um pedagogo calmo e paciente, que adorava a companhia dos jovens e se sentia extremamente tocado pela admiração que os seus alunos tinham por si (Solti foi um deles, e isso nota-se em frente ao hi-fi!). Já o compositor Bartók foi um criador genial, introvertido e de poucas palavras na maioria das ocasiões, excepcionando-se porventura aquelas em que o "navegador", de gramofone à ilharga, percorreria os campos com o amigo Kodály à descoberta das melodias eslavas dos camponeses seus conterrâneos. Por outro lado, e mais importante ainda, o húngaro Béla Bartók era um ser humano livre, que acima de tudo desprezava a intolerância, a ditadura e o fascismo, motivos que o terão obrigado a abandonar o conforto da terra natal que amava, mas que via envelhecer com o ideal Nazi. Naquela época, outros houveram que, concordando com os mesmos ideais de liberdade, o não terão feito, tomando decisões que privilegiariam o status quo à defesa desses ideais. Provavelmente teriam os seus motivos; um dos principais poderia ter sido, seguramente, o medo da perda da própria vida, facto que por si só nos permitiria optar por enquadrar estes assuntos controversos (em tempos de paz...) na vertente humanista em desfavor da artística, uma vez que o que estará aqui em causa será, depois de tudo espremido e exprimido, o grau de coragem de cada um. O génio do artista é uma coisa, a coragem do homem é outra, e a polémica deveria acabar aqui, sem heróis nem vilões... entendo eu.
E assim, os ideais de Béla Bartók dariam à costa em Lisboa, cidade atlântica de onde aquele Homem e a sua esposa Ditta, tomariam o navio que os levaria para os Estados Unidos, no dia 20 de Outubro de 1940 (pelo que, como poderão compreender, a anterior referencia à palavra "navegador" não terá sido totalmente inocente... por inúmeros motivos).
Bartók estabelecer-se-ia em Nova Iorque com boas expectativas, e, em Dezembro desse ano, completa uma nova versão de concerto da sua sonata para dois pianos e percussão, elaborada quatro anos antes. A Universidade Columbia atribui-lhe uma bolsa especial em Março de 1941, e Bartók começa a trabalhar na colecção de Milman Parry, uma colectânea de gravações de música tradicional jugoslava que estaria guardada na Universidade de Harvard, enquanto editava, simultaneamente, as suas próprias colecções de música tradicional turca e romena. O salário seria modesto, mas o trabalho interessava-lhe, no sentido em que representaria, admissivelmente, a manutenção dos laços com o velho continente e a ligação à sua anterior actividade de investigação musicológica na Hungria.
Mas como tantas vezes na vida, depois de uma fase de felicidade viria uma época de angústia e desilusão. Em Dezembro de 1942, o posto na Universidade Columbia seria descontinuado e Bartók destituído do cargo. Posteriormente, em Fevereiro de 1943, é-lhe diagnosticada leucemia na sequência do colapso que tivera durante uma palestra realizada em Harvard. Á fragilidade provocada pela doença, seguir-se-ia a ausência de concertos do pianista e as preocupações financeiras daí decorrentes, ao que os constrangimentos sentidos pela separação da sua terra natal fariam agravar ainda mais a situação, na época menos profícua do compositor e também numa altura de rejeição na apresentação da sua música, considerada demasiado moderna pelos "americanizados" ouvidos americanos, mais interessados em Copland por aqueles dias.
No entanto, seria nesta situação desesperante que o apelo das raízes funcionaria e os amigos chegariam em seu auxílio. As contribuições mais importantes partiriam do violinista Joseph Szigeti e de Fritz Reiner, o maestro da orquestra Sinfónica de Pittsburgh e o futuro mago que daria fama mundial à Orquestra Sinfónica de Chicago (existem exemplos em baixo que justificam alguns porquês... é fácil de saber quais são... são os dois primeiros!). Na realidade, os dois amigos viriam a persuadir Serge Koussevitzky, o famoso maestro da Orquestra Sinfónica de Boston, a encomendar-lhe uma obra para grande orquestra. A trama estaria de tal forma bem engendrada, que o compositor seria induzido a acreditar que tal iniciativa teria vindo do próprio Koussevitzky. Com efeito, a realidade seria mantida secreta, na medida em que o seu orgulho (eslavo...) não lhe permitiria aceitar alguma coisa que se assemelhasse a qualquer espécie de caridade. E Szigeti e Reiner sabiam bem disso.
Depois de uma pausa criativa de mais de dois anos, Bartók começaria assim, em Agosto de 1943, a compor novamente a partir do sanatório onde estava hospitalizado, junto das montanhas de Adirondack e dos lagos de Saranac, no ambiente são que lhe proporcionaria o ânimo necessário para que, em menos de dois meses, em Outubro, conseguisse escrever o seu Concerto para orquestra, sz 116. Koussevitzky viria a dirigir a estreia a 1 de Dezembro desse ano, em Boston, e a obra atingiria o sucesso imediato. O compositor encontrar-se-ia demasiado debilitado para assistir ao concerto de estreia, mas os seus médicos dar-lhe-iam permissão para que pudesse estar presente em apresentações posteriores, já no final de Dezembro. O público brinda-o com uma aclamação tumultuosa, transportando-o subitamente da obscuridade redutora para a fama excessiva, Koussevitzky torna-se um defensor incondicional da obra, e, tomando em conta as palavras que o compositor escreveria numa carta daquela época, é reconfortante suspeitar de que ele ainda testemunharia uma parte deste enorme sucesso antes do seu falecimento, que viria a ocorrer a 26 de Setembro de 1945, em Nova Iorque: "Koussevitzky está muito entusiasmado e diz que é "a melhor peça para orquestra dos últimos 25 anos" (incluindo as obras do seu ídolo Shostakovich!)". Ainda assim, as últimas palavras dão-nos a sensação do algum ressentimento que ainda manteria pelo seu trabalho ter sido negligenciado, por contraste ao de Shostakovich e da sua Sinfonia nº 7, "Leninegrado", que com o seu "ridículo" (palavra feia, esta de Béla...) tema marcial, teria sido extraordinariamente bem acolhida devido aos sentimentos em tempos de guerra.
O nascimento deste Concerto para Orquestra representaria, assim, o triunfo da mente daquele homem sobre a matéria real da sua doença fatal. É extraordinário como Bartók, gravemente doente e com a vida a prazo, consegue criar uma das suas obras mais vibrantes e poderosas, sintetizando, ao mesmo tempo, tudo o que descobrira e aprendera durante mais de três décadas de estudo intensivo das canções populares e da música tradicional do leste europeu, escutadas segundo a tradição vienense, umas vezes, e através da inovação musical do séc. XX, noutras. Nas notas de programa para a estreia, escreveria: "Excluindo as brincadeiras do segundo andamento, o ambiente geral da obra representa uma transição gradual da severidade do primeiro andamento e da "lúgubre canção de morte" do terceiro, até à afirmação de vida do último".
Esta obra apresentaria cinco andamentos ao género de uma sinfonia, mas tratando, de maneira consciente e propositada, cada um dos instrumentos de forma concertante. Inicia-se [1] tranquila e misteriosa, com um tema tradicional húngaro nos contrabaixos, desenvolvendo-se em intensos apontamentos nos metais, ritmos herdados de uma dança popular búlgara e em harmonias do folclore romeno e eslovaco. O segundo andamento, Giuoco delle coppie: allegretto scherzando [2], ligeiro e airoso, destaca-se pelo "jogo de casais" mencionado por Bartók no título do andamento (nos editados até aos anos oitenta, pelo menos), onde os temas são apresentados aos pares, iniciando-se com a dança de roda dos fagotes, ao estilo do Kolo jugoslavo. Sobre este andamento, é interessante referir que após a consulta do manuscrito original, guardado na Biblioteca do Congresso, em Washington, George Solti apercebe-se de que o que Bartók teria na realidade escrito, seria: Presentando le coppie: allegro scherzando, uma "apresentação dos casais" que, de facto, mudaria a história sonora e tornaria a peça em algo diferente do que até aí era supostamente esperado. Seguir-se-ia o terceiro andamento [3], um nocturno pontuado por aparições de dor, possivelmente relacionadas com o contexto vivido pelo compositor naquele momento, quer fossem de ordem pessoal, com a desolação da doença, ou universal, com a ruina da cultura europeia naqueles dias negros da segunda guerra mundial. O quarto andamento [4] apresentaria melodias alegres, que entretanto seriam interrompidas por citações do tema da tal Sinfonia nº 7, "Leninegrado", que Shostakovich escrevera em 1941, e que Bartók ouvira numa transmissão radiofónica no Verão de 1943, enquanto compunha, ele próprio, o seu Concerto para Orquestra (destino dirão uns, timming perfeito dirão outros). Este tema, considerado banal pelo compositor, seria parodiado orquestralmente através da utilização de determinados efeitos, como glissandos e trilos, embora seja honesto dizer também, que a monotonia marcial do mesmo, já seria, ela própria, uma tentativa de Shostakovich em zombar com a pompa Nazi... ao ritmo de um bolero pelas botas da Wehrmacht. Contas feitas, e, no final, ficamos sem saber bem quem é que gozou com quem...
E o concerto chegaria ao fim no quinto andamento [5], com a celebração da vida e o triunfo sobre as visões obscuras do terceiro andamento e o humor grotesco do quarto, através do uso dos elementos concertantes e virtuosísticos que tão bem caracterizam esta odisseia sonora, e do "abuso" decorrente da derradeira "puxada de metais", introduzida nos vinte compassos finais que o compositor acrescentaria posteriormente... para, quem sabe, oferecer algum do glamour de Hollywood como forma de retribuição ao país que o acolhera e lhe servira de refúgio.
Aquele país certamente agradeceu... e a restante diversidade também.
Nuno Oliveira
"Concerto para orquestra, sz 116"
✨ Extractos que proponho para audição:
- Chicago Symphony Orchestra
- Pierre Boulez
- Deutsche Grammophon, 437 826-2 GH
brilhante e uma Chicago Symphony verdadeiramente virtuosa. Um registo
arrepiante, a não perder!), com alguns destaques, identificados a seguir;
[1]: tutti, aos 0:00-... (Do início nocturnal dum adormecer...); aos 3:09, 4:15
e 5:30 (...passando pelas várias etapas do sono...); aos 9:00 (...até ao súbito
despertar!) [youtube]
[2]: fagotes, aos 0:00-0:34 e 3:58-4:21 (...que dão voz à história!) [youtube]
[3]: tutti, aos 0:00-... (E os mistérios sucedem-se com dinâmicas variadas...)
[3]: tutti, aos 0:00-... (E os mistérios sucedem-se com dinâmicas variadas...)
[5]: metais, aos 0:00-0:66 (...Concerto da orquestra! Metais para começar...);
tutti, aos 0:07-8:21 (...o virtuosismo de todas as vozes a seguir... (tímpanos
inclusive aos 3:40-3:42)); metais e tutti aos 8:22-9:18 (até acabarmos no
turbilhão eslavo "do" Vitória!) [youtube]
- Chicago Symphony Orchestra
- Georg Solti
- Decca, 400 052-2 DH
especialistas na matéria: o mestre Solti e a Chicago Symphony... uma vez
mais. Uma referência para ouvir com atenção.)
- City of Birmingham Symphony Orchestra
- Simon Rattle
- EMI, CDC 5 55094 2
emoção, detalhe e o reconhecimento merecido num aplauso final.
Uma interpretação difícil de repetir, até mesmo para Rattle... Um minuto
que o prova reside entre os 7:23-8:23 (brutal!). A não perder também.)
- Philharmonia Orchestra
- Hugh Wolff
- Teldec, 9031-76350-2
vivo e ferocidade a condizer. Uma excelente escolha também.)
- Orchestre Symphonique de Montréal
- Charles Dutoit
- Decca, 421 443-2 DH
juntarmos a providência divina da sonoridade da Igreja de S. Eustáquio,
então ficamos com um registo a ter em conta.)
[1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube], [4] [youtube], [5] [youtube]
- Münchner Philharmoniker
- Sergiu Celibidache
- EMI, CDC 5 56528 2
e as idiossincrasias características do mestre romeno. Uma escolha a ter em
conta e obrigatória para os apreciadores de Celibidache. Sou fã!)
- Esa-Pekka Salonen/Los Angeles Philharmonic/Sony, SK 62598 (Para os adeptos do maestro finlandês.), [1] [youtube], [2] [youtube], [3] [youtube], [4] [youtube], [5] [youtube]
- Paavo Järvi/Cincinnati Symphony Orchestra/Telarc, CD-80618 (A visão diferente de Järvi, sentida de perto no Finale.), [2] [youtube], [3] [youtube], [4] [youtube], [1-5] [Spotify], [1-5] [iTunes]
- Andrew Davis/Royal Stockholm Philharmonic Orchestra/Finlandia, 0630-14909-2 (Um registo interessante a descobrir.), [1-5] [Spotify], [1-5] [allmusic]
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"O Pirata e o Ladislav junto dos seus, em Monte Gordo" [Agosto, 2010]
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